EntreContos

Detox Literário.

Nove Anos (Gustavo Araujo)

Curitiba, 4 de julho de 1982.

Oi, vô,

Tudo bem aí com você e a com a vó aí em Erechim? Estou escrevendo esta carta porque minha mãe disse que é o melhor jeito de passar o tempo quando a gente está nervoso. E eu estou bastante nervoso. É que a Copa está chegando no fim e eu queria muito que a gente ganhasse. Acho que todo mundo quer, né? Você viu o jogo do Brasil com a União Soviética? A gente foi assistir na casa do tio Luís. Foi legal, mas ele não faz que nem você, que abaixa o som da TV e liga o rádio para assistir a partida ouvindo aquela narração que é bem mais emocionante! Mesmo assim, eu quase morri do coração! Nem acreditei quando o Sócrates fez aquele gol no ângulo! Eu já achava que a gente ia perder… Foi um golaço, não foi? E o gol do Éder, então? O gol mais bonito que eu já vi na vida! Pegou na veia! O goleiro deles nem se mexeu!

Vô, você sabe o que quer dizer CCCP, que tem escrito na camisa da União Soviética? Segundo meu pai, significa “Cuidado Camaradas Com Pelé”, porque eles tomaram uma surra do Brasil lá na Suécia, em 1958, com o Pelé comandando a nossa seleção. Por isso eles avisam os outros. Acho que essa história não é verdadeira. Meu pai acha que eu acredito em tudo o que ele diz, esquece que eu já não sou mais criança. Mas acho engraçada a cara que ele faz quando tenta me enganar e por isso finjo que acredito. Se você souber o que essas letras querem dizer, por favor me avise!

Bem, depois dos 2X1 contra a URSS eu e os meus amigos fomos jogar bola. Só podia, né? Fizemos um mini torneio de embaixadinha, que é a nossa mania atual, por causa de uma propaganda da coca-cola que tem um menino da nossa idade fazendo um monte de coisas com a bola. Eu consegui fazer 78 embaixadinhas, mesmo com o pessoal tentando me desconcentrar, caçoando de mim por causa do jeito que eu amarro meu kichute! Eu já estava me achando o máximo por ter conseguido tanto, mas veio o Mexicano, um amigo aqui do prédio, e fez 85! Ele é muito bom, não perde a concentração de jeito nenhum! O curioso é que ele não tem nada de mexicano – foram uns meninos mais velhos que deram esse apelido para ele, quando ele estava sentado num cano na calçada, desses que a prefeitura põe para os carros não subirem o meio-fio. Ele estava lá sentado, esperando a gente para jogar controlinho, mexendo de um lado para o outro, pensando na vida. De repente esses meninos chegaram e começaram a dizer “Mexe-Cano”, rindo que nem uns idiotas… “Mexe-Cano” e riam… Eu não entendi, mas o apelido pegou e agora ele é o Mexicano, o campeão de embaixadinhas aqui da rua!

As outras partidas da Copa foram mais tranquilas, não foram? A Escócia e a Nova Zelândia tomaram quatro gols da gente. Foi uma alegria só! Quer dizer, quase, porque quando eu estava comemorando o gol do Zico contra a Escócia (aquele que ele fez de falta), em vez de assoprar a corneta acabei sugando o apito e me engasguei! Foi um sufoco! Fiquei roxo e tossi que nem um cachorro louco! A mãe quase teve um treco, me fez comer uns quinze pedaços de pão para engolir o apito, até que ele desceu. Fomos no médico e ele disse que temos que esperar até que… Bem, acho que você entendeu, né? O problema é aguentar as piadas do Minhoca (um menino aqui de outro apartamento) dizendo que se eu soltar um pum vai sair um barulho de apito. Para quem ainda brinca de Falcon ele está muito engraçadinho.

Vô, ainda bem que os jogos são de tarde, né? Porque se fossem de noite você ia perder tudo, já que gosta de dormir às oito meia. Nem ia adiantar acordar às três da madrugada porque nessa hora já teria terminado tudo de qualquer jeito. Só ia restar aqueles filmes de bangue-bangue que você gosta. Para mim, esse horário dos jogos (de tarde) é muito bom, principalmente porque a gente não tem aula, como amanhã, por exemplo. Aí dá para aproveitar bem a vida!

Tô marcando os resultados dos jogos na tabela que tem no álbum de figurinhas do Ping Pong que ganhei do Rica, um vizinho que mora numa casa do lado do nosso prédio. Você comprou esse álbum? É muito legal! Tem o mascote da Copa (o Naranjito), os estádios e um montão de coisas mais. O único problema é que provavelmente vou ficar com cáries o resto da vida de tanto chiclete que tenho comido. Todas as seleções da Copa estão lá, até a Argélia e  Camarões. Já quase completei a coleção, mas é muito difícil encontrar a figurinha do Panenka, da Tchecoslováquia. Por outro lado, tenho uns quinze Shilton, da Inglaterra (não aguento mais olhar a cara dele), mas não consigo trocar com ninguém.

Uma das partes que eu mais gosto no álbum é aquela que fala das outras copas. Você sabia que o Brasil já foi campeão três vezes? Claro que sabe, né? 1958, 1962 e 1970. Podiam ser quatro, se a gente não tivesse perdido pro Uruguai em 1950. Meu pai falou que esse foi o jogo mais triste da nossa história, que tinha novecentas mil pessoas chorando no Maracanã no final, quase a população de Curitiba inteira!

Outro jogo que gostei de conhecer foi a final da Copa de 1954. Você deve ter visto ou escutado no rádio. Foi Alemanha Ocidental X Hungria. Meu pai (ele de novo) disse que a Hungria era o melhor time do mundo naquela época, que eles não perdiam um jogo desde 1952, que tinham goleado a Inglaterra duas vezes e tudo mais (acho que dessa vez meu pai não mentiu para mim). Na Copa, até a final, eles tinham feito uns cinquenta gols e derrotado a Alemanha no meio do caminho por 8X3!!! Só que na final perderam para a mesma Alemanha por 3X2, depois de estarem ganhando por 2X0! Já imaginou a decepção deles? Coitados, nem devem ter dormido!

Pena que hoje em dia as copas não têm tantos gols como antigamente. Antes os placares pareciam de jogo de tênis: 6X4, 7X3, 9X0… Hoje é tudo magrinho, 1X0, 2X1, 1X1, 0x0 (o placar mais chato de todos). Os artilheiros marcavam muito mais. O Kocsis da Hungria fez onze gols em 1954 e o Fontaine, da França fez 13 em 1958! Hoje ninguém chega perto disso. Se não fosse a nossa seleção de agora, eu ia dizer que numa dessas o futebol pode ficar chato.

Você viu o baile que demos nos argentinos? 3X1! Até o Valdir Peres parece que se recuperou depois do frango que levou da URSS! Aliás, lembrei de uma coisa: você sabe o Christian, aquele meu amigo que você conheceu a última vez que veio pra cá? Ele é metido a goleiro e se acha muito melhor que o Valdir Peres, mas disse que tem medo de bater a cabeça na trave. Para não se machucar, quando for convocado (ele tem certeza que isso vai acontecer), ele vai pedir para o Telê estofar as traves. Assim vai se sentir mais seguro e fechar o gol. O Christian tem umas manias estranhas (acho que a pior é ficar cantando sem parar aquela música do Marcos Sabino, “cheiro-uma-flor-de-cravo-e-canela”), mas dá para concordar que uma trave macia é bem melhor para qualquer goleiro.

Bom, amanhã é o dia do jogo do Brasil contra a Itália. Depois que fizemos tantos gols na Copa acho que vai ser fácil mandar os italianos para casa (eles empataram todos os jogos da primeira fase – lembra quando falei sobre os placares chatos? Pois é, eles são especialistas!), mas que estou um pouco nervoso, isso estou!

A semi-final, eu imagino que será contra a Polônia (o time do Papa, segundo minha mãe, tem que ser respeitado!), mas fora o Boniek não tem ninguém que seja bom mesmo. Depois, a final, que aposto que será contra a Alemanha Ocidental. Ganhamos deles duas vezes no ano passado. O Valdir Peres pegou dois pênaltis num dos jogos, você lembra? Tomara que agora tudo se repita.

Bem, vou indo. Espero que você esteja bem e que a vó tenha parado de pedir para você arrumar a garagem (tendo lugar para o Passat, não precisa se preocupar tanto assim, né?). Se por acaso você comprar algum chiclete do Ping Pong mande a figurinha para mim pelo correio. Talvez você tenha sorte e encontre o Panenka.

Um beijo do seu neto,

Gustavo.

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4 comentários em “Nove Anos (Gustavo Araujo)

  1. rubemcabral
    20 de junho de 2018

    Fala, Gustavo.

    Bem saudosista e bem escrita crônica (ou crônica-conto?). Pena que o Rossi iria estragar as expectativas do menino.

    Abraços!

  2. Fabio Baptista
    18 de junho de 2018

    Mais nostalgia em doses cavalares nessa carta ao estilo “mal sabia ele… que Paolo Rossi tinha outros planos para aquela tarde” rsrs.
    Bom texto, patrão!

    O hexa já é realidade, como o tetra era em 82.

    Espero que ninguém tenha esquecido de combinar com os russos.

    Abraço!

    • Gustavo Araujo
      18 de junho de 2018

      Seremos hoje a Itália daqueles dias. Primeira fase pífia para depois erguermos o caneco. Neymar será o novo Paolo Rossi quando despacharmos a Bélgica de volta para Bruxelas nas oitavas! Mãe Diná baixou aqui, pode apostar kkkk

  3. Ricardo Gnecco Falco
    16 de junho de 2018

    Muito legal. Eu tinha de sete para oito anos. Podia mudar o título para “Saudade”… Das brincadeiras, dos brinquedos, kichutes (entortava os pés!); até mesmo da Telerj (só faltou isso!). Agora, saudade, saudade mesmo… Acho que os nossos avós é que vencem esse campeonato…
    Parabéns pela cartinha!

    Abrax,

    Paz e Bem!

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Publicado às 15 de junho de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
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