EntreContos

Detox Literário.

A laranja decepção (Estela Goulart)

Nunca ganhei nenhuma copa. Na verdade, não que eu lembre, mas não quero entrar no mérito anti-neural daquela criança de 4 anos. Ainda assim, considero uma façanha incrível presenciar tal realidade e imaginar o Galvão gritando novamente “É Tetra… Hexa… Hepta” como se não houvesse amanhã.

A questão que venho ressaltar não é nem o fato de vitória, mas uma tradição familiar e uma derrota.

Desde que me lembro por gente, meus pais colecionam suvenires Padrão Fifa. Meu pai, a cada quatro anos, faz questão de colocar mais uma bola temática na estante de casa. Já minha mãe e eu, colecionamos os álbuns da copa (de preferência completos, mas não vamos entrar nesse mérito também).

Confesso que não sei o fim dos álbuns antigos. Custa-me imaginar sobre possíveis lixeiras para eles tão grande é a dor que vem a mente. Mas, nesse caso, a essência de colecionar figurinhas é bem mais importante. Aquela atmosfera de união, entre jovens e adultos, muitos idosos também, recordando uma tradição que perpassa gerações. Uma digna tradição propriamente dita. Trocar figurinhas minimiza as extensões da nossa realidade tecnológica atual. É como se notássemos o quão simples é a mágica de trocar e colecionar, e nenhuma tecnologia pode sequer melhorar ou piorar. Quase como chinelos: eles são perfeitos àquela simples maneira.

Essa descrição de interação entre as pessoas, no entanto, resulta de uma realidade atual para mim. Quando mais nova, aquela que sempre colecionou comigo foi minha mãe. Lembro de contarmos aquelas singelas moedas de troco em casa, buscando dezenas de pacotes de figurinhas na banquinha da quadra mais próxima. Comprávamos o que estava ao alcance e nunca completávamos, sempre faltando umas quinze – as mais difíceis. Mesmo assim, era tão legal.

E de igual sensação era o período da copa. Querendo ou não, por mais que você deteste futebol, há um clima de esportividade e comemoração visível ao seu redor. Algumas bandeiras brasileiras que só aparecem de quatro em quatro anos estão por aí, basta procurar. Mas o que venho relembrar em questão nos conta o contrário.

Era 2010 em uma Brasília verde amarela… estou falando da capital… e uma copa de uma África marcada pelas vuvuzelas. Foi a primeira copa que acompanhei com afinco, e a primeira a me proporcionar a melancolia de uma derrota. Quartas de final. O Brasil encarava a Holanda e, a princípio, pouco se imaginaria que aquela equipe de atuação forte e segura durante o primeiro tempo, cuja torcida sorria com o gol do Robinho, sofreria com uma bola aérea desviada em Felipe Melo e com a virada em menos de dez minutos. É o clássico: basta um gol para estremecer as bases e o nervosismo dominar os lances. Além disso, não é infelicidade do destino. São coisas do futebol.

Minha confiança inocente com aquela seleção do primeiro tempo se esvaiu. Os berros dos vizinhos do prédio também se calavam. Lembro que, nas horas mais tensas do jogo pós primeiro gol holandês, estava sozinha na sala enquanto minha mãe e minha tia cozinhavam pipoca na cozinha. Meu pai estava a quilômetros de distância, era difícil imaginá-lo ali na concentração do jogo. Era um silêncio que crescia gradualmente. A vuvuzela amarela que eu fazia de bengala perdia a euforia.

Nunca me esquecerei daquela torcida laranja. De Sneijder, o careca, correndo pelo campo depois de marcar o gol da virada. Ou do narrador lamentando em rede nacional sem dar o braço a torcer, como se pela sua voz acontecesse um milagre. Na cabeça, eu berrava: “Cala a boca, Galvão!” de raiva. Mas eu acho que que a minha tristeza chegou de caminhão: geralmente lento, às vezes rápido numa descida, enquanto eu encarava descrente o decorrer de uma partida que, a cada minuto, liquidava a esperança de milhões de brasileiros (naquela época, se não me engano, não tinha greve). E depois da expulsão do Felipe Melo, eu nunca mais escutaria uma vuvuzela alheia com a mesma entonação de uma vibração em copa do mundo. Eu piscava, sem reação. Talvez fosse a passagem gradual e dolorosa, o meio termo entre o que antes era euforia se tornando decepção.

Mas eu não chorei. Recusei-me a derramar qualquer lágrima. Quando o jogo acabou, me arrastei até a janela. A quadra em que ficava o meu prédio, antes alegre e vibrante com seu verde amarelo pingado aqui e ali em cada janela dos prédios vizinhos, voltava a ser cinza e monótona. Eu encarava aquela serenidade ensolarada nos azulejos dos edifícios, mais conhecida como melancolia naquela hora. A tranquilidade da pracinha e a natureza seguindo a vida como se nada tivesse acontecido enquanto, em cada apartamento, os brasilienses e moradores da capital sentiam o gosto de uma derrota e retiravam suas bandeiras, lentamente. De repente, elas tornavam-se estáticas, de volta às suas gavetas.

É o poder das copas. E, se você sabe do que estou falando, algumas nos marcam magistralmente. É claro que a copa continua, mas não com o mesmo brilho. Naquele dia, meu álbum de 2010 ganhava a última figurinha: a imagem do silêncio de uma quadra, a decepção daquela careca virada holandesa.

Publicidade

2 comentários em “A laranja decepção (Estela Goulart)

  1. rubemcabral
    21 de junho de 2018

    Olá, Estela.

    Bem bacana a crônica; passa bastante bem as sensações díspares de todas as copas: alegrias, tristezas, pequenos detalhes, como colecionar figurinhas ou ter algum amuleto de sorte. Muito bom!

    Abraços.

  2. Gustavo Araujo
    18 de junho de 2018

    Ótimo texto. Uma narrativa segura e que não apela ao sentimentalismo, típico de contos que se utilizam de nostalgia. Isso é ainda mais relevante porque se trata de copa do mundo, uma espécie de marco que nos leva inevitavelmente à infância, quando ainda éramos permeados por certa inocência, pela fé que nos levava a crer que éramos os melhores do mundo. Talvez as copas funcionem como uma espécie de vetor para o amadurecimento, um rito de passagem para uma fase em que a pureza cede lugar à resignação. Seu texto mostra bem isso, especialmente quando se refere à solidão que as praças vazias evocam – logo após a derrota. Todo mundo passa por essa experiência. Ninguém esquece.

E Então? O que achou?

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Informação

Publicado às 17 de junho de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
%d blogueiros gostam disto: