Uma criança vai ao estádio pela primeira vez ver seu time jogar. O garoto não tem mais de seis anos, mas esse dia ficará na sua memória para sempre; não por conta do estádio gigantesco, nem pelo placar – nem mesmo pelo delicioso espetinho na rua, carinhosamente chamado de “filé miau” pelo seu pai.
O embate é entre dois grandes clubes paulistas, um clássico de rivalidade acirrada. O garoto fica abismado com a imensidão daquele palco, um Coliseu moderno, preparado para uma tarde de batalha.
Visto por um desavisado, esse espetáculo parece um culto extremista; dezenas de milhares de pessoas com as mesmas vestes em um único local, pelo mesmo motivo. Dezenas de milhares de vozes cantando em uníssono. Isso gera algumas questões na mente do moleque.
“Será que todo mundo se encontrou antes do jogo pra ensaiar as músicas? Por que ninguém me chamou? Por que esse amendoim tem um gosto esquisito? Tanto faz, meu pai me deixou xingar os jogadores do outro time falando até palavrão!”
O jogo começa!
A primeira coisa que o garoto repara é que ali não vai ter replay de lance nenhum. As jogadas são vistas pelo mesmo ângulo e os jogadores estão tão longe que parecem até parte do seu joguinho de futebol Gulliver; e, pelo tanto de passe errado, alguns têm os pés tão chatos quanto os seus bonecos!
Mesmo assim, no estádio é tudo muito mais legal; o garoto sente que, se gritar muito, os jogadores do time adversário vão se assustar e fazer besteira. E isso acontece várias vezes. Ele é parte do jogo!
Acaba o primeiro tempo, nada de gol. Mas isso não abala a caravana do Parque São Lucas, principalmente na hora de se agachar e depois pular, bem alto, pra participar da Ola. O avô do garoto, até então com uma tremenda dor nas costas, põe o menino em cima dos ombros, para que fique mais alto que todos naquele degrau da arquibancada.
Arquibancada, essa, totalmente insana; o cara à esquerda da sua família já não tem mais unhas. O velho à direita fica de costas para o gramado, com um rádio no ouvido, olhando pro chão. Já o cara do degrau de baixo já está rouco, por tanto gritar que o juiz é um “filho duma rapariga”.
– Pai, o que é uma rapariga?
– …. é uma fruta, filho.
– Acho que nunca comi uma dessas, né?
– Ainda não.
Começa o segundo tempo!
O zero a zero perdura por mais meia hora; apenas os olhos puros de uma criança conseguem enxergar a beleza dessa partida.
Até que, de repente, sem aviso de narrador algum, um cruzamento da direita vai em direção ao cabeludinho que veste a camisa 9 do time do garoto; ele se estica como um dos lutadores favoritos do menino no Street Fighter e, com a ponta do pé esquerdo, manda a bola pro fundo do gol.
E tudo explode.
Algo mágico e inexplicável nasce com o simples toque da bola no barbante. Para um apaixonado pelo futebol é mais fácil falar sobre física quântica ou sobre o amor do que descrever, com fidelidade, esse momento.
A mente do garoto não consegue assimilar o que acontece ali. Todos estão pulando, o barulho atinge o seu ápice, desconhecidos se abraçam; o cara do degrau de baixo até para de homenagear o juiz por um instante.
O tio do moleque joga-o pra cima, e é assim que ele se sente; voando. O seu time é o melhor do mundo. Ele é a pessoa mais feliz do mundo!
“Mas, espera aí; por que os jogadores não estão pulando também? Por que alguns torcedores estão xingando ao invés de pular?”
Culpa do vilão de amarelo e sua arma, em forma de bandeira, levantada aos céus.
O gol foi anulado. Aos poucos, todos sentem a apunhalada.
E tudo explode pela segunda vez.
Só que agora, a explosão é venenosa.
A cabeça do cara do degrau de baixo vai explodir, o garoto tem certeza. Até o velho do radinho se vira para o gramado, pela primeira vez, para atacar o juiz. E tudo o que o garoto consegue pensar é que, se ele está tão devastado, o jogador que teve seu gol anulado deve estar em prantos.
O gol impedido é, mas não foi. É uma espécie que entra em extinção segundos após sua criação. É um pêndulo que bate no lado extremo do amor, impulsionado, com força, para o lado do ódio. Em milésimos, toda uma realidade se expande à sua frente, uma dimensão em que prognósticos positivos são feitos, problemas são esquecidos, doenças são curadas; apenas para que tudo desmorone e te soterre. Um portal se abre, é possível contemplar o paraíso e sua magnitude, até que o inferno te suga, tal qual um buraco negro. A queda é incomparável.
O garoto não consegue traduzir tudo isso, mas sua alma sabe. E a dó do jogador continua.
Só há um elemento capaz de gerar mais potência que o gol impedido.
O gol nos acréscimos.
Tudo parece perdido, nada mais faz sentido, todas aquelas horas gastas e a energia depositada parecem em vão; as dezenas de milhares de almas já sofrem, antecipando o retorno de suas rotinas em preto e branco; e uma aquarela multicolorida se apresenta em forma de gol aos 48 minutos do segundo tempo.
O mesmo cabeludinho, uma fênix com caneleiras, supera o goleiro novamente, agora com a cabeça.
Dessa vez, o garoto não é mais o mesmo; tal qual um animal faminto quer um alimento com todas suas as forças, mas lembra-se do choque que tomou quando o alcançou da última vez, o menino inocente agora é um homem amargurado. Ele não terá reação efusiva alguma até que aquele desgraçado com a bandeira corra pro meio do campo. E é bom que ele corra; caso contrário, ele terá que correr é para casa, por sua segurança.
E ele dispara para o meio do campo!
O gol valeu!
Pela terceira e última vez, tudo explode.
A felicidade não escapa pelos seus dedos. Ela permanece ali, em seu peito.
E o jogo acaba logo em seguida.
De alguma maneira, o garoto sabe que é mais feliz por tudo ter ocorrido dessa maneira. O sabor do gol foi doce da primeira vez, mas ficou ainda mais açucarado após o azedume do gol impedido.
Mesmo assim, certas feridas nunca cicatrizam totalmente. Até hoje, o garoto, que cresceu e já chorou e sorriu inúmeras vezes por culpa do futebol, é sempre o último a comemorar um gol do seu time.
Olá, Vitor.
Um conto bem bacana. Muito interessante essa questão do temor de se entregar à alegria, de se tornar desconfiado para não sofrer outra vez.
O conto foi bem feliz em reproduzir as sensações que se tem ao assistir um jogo ao vivo, num estádio cheio. Pena que hoje, em função de torcidas organizadas, nem sempre é seguro levar crianças a jogos assim, principalmente os clássicos, os decisivos.
Vi um pequeno erro no texto: “a dó”. Acho que “dó” é masculino…
Abraços.
O conto trata de uma espécie de lição que todo mundo que vai ao estádio um dia aprende. Assim como não existe já-ganhou, também não existe gol-certo. Tudo pode acontecer até que o juiz valide definitivamente o tento marcado. Às vezes, até mesmo quando o juiz dá o gol como válido é possível que se volte atrás, acabando com a alegria geral. Todo mundo conhece uma história assim e o conto acerta justamente porque reflete algo que ocorre com todo torcedor, tornando fácil a identificação. Ótimo trabalho!