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Detox Literário.

Celebremos – Clássico (Carlos Drummond de Andrade)

A vitória do selecionado brasileiro na Suécia foi perfeita. Jogadores e técnicos abriram uma reta entre o ceticismo irônico do começo e a pura alegria nacional de domingo. Uma campanha metódica e segura fez o milagre. Quando partiram daqui, quem esperava a taça do mundo? Mas à proporção que se desenrolavam as partidas, um número cada vez maior de pessoas indiferentes ao esporte se ia identificando com a sorte deles, sentindo-se transportadas ao local da peleja e dela participantes, e no fim a confiança era tamanha que já não se afetaria com um mau resultado. Se perdêssemos, seria terrível, mas isso não abalaria a fé nos atletas, teria sido uma derrota individual nossa, imposta pelo capricho das coisas, injusta sem humilhação.

Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia e que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores práticos. Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de espírito, poder de adaptação e de superação. Não se trata de esconder nossas carências, mas de mostrar como vêm sendo corrigidas, como se temperam com virtualidades que a educação irá desvendando, e de assinalar o avanço imenso que nossa gente vai alcançando na descoberta de si mesma.

Esses rapazes, em sua mistura de sangues e de áreas culturais, exprimem uma realidade humana e social que há trinta anos oferecia padrões menos lisonjeiros. Do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas. Já tem caminhos abertos à sua frente e já sabe abri-los, por conta própria, quando não é assistido pelos serviços oficiais ou de classe a que cumpre melhorar as condições de vida coletiva. O futebol trouxe ao proletário urbano e rural a chave ao autoconhecimento, habilitando-o a uma ascensão a que o simples trabalho não dera ensejo.

Mas agora, vemos o futebol operando ou espelhando ainda maiores transformações, pois a conquista do campeonato mundial demonstrou a meu ver um maior entrosamento de forças sociais, a máquina burocrática do esporte deixando de operar suas porcas e parafusos de intriga, ambição e politicagem; consciência mais funda dos dirigentes; carta branca aos peritos para os trabalhos de formação e aprimoramento da equipe; e a contenção geral para evitar desbordamentos emocionais prévios, comprometedores do equilíbrio psíquico dos esportistas. Tudo isso, em termos de educação nacional, é confortador, e permite alongar a vista para mais longe do campo de jogo, dá à gente um certo prazer matinal de ser brasileiro, menos por haver conquistado a Taça Jules Rimet do que por havê-la merecido. Prazer límpido, sem xenofobia: é justamente por nos sentirmos iguais a outros povos capazes de vencer campeonato que nos despimos de pretensões de superioridade ou domínio político.

No mais, é celebrar como começamos a fazer ao primeiro gol e não sei quando acabaremos, que isso de sofrer rente ao rádio, vezes e vezes repetidas, embora de coração esperançoso ou por isso mesmo, exige expansão compensadora e farta, ai meu Deus, minha Nossa Senhora da Cancha, meu Senhor Bom Jesus do Tiro em Meta! Como deixar de lançar papeizinhos ao ar, sujando a cidade mas engrinaldando a alma, e de estourar bombas da mais pura felicidade e glória, mesmo que arrebentemos os próprios tímpanos, se não há jeito de reprimir a onda violenta de alegria que se alça até nos mais ignorantes do futebol, criando esse calor, essa luz de unanimidade boa, de amor coletivo, de gratidão à vida, que hoje nos irmana a todos?

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Publicado no Correio da Manhã em 01/07/1958

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Um comentário em “Celebremos – Clássico (Carlos Drummond de Andrade)

  1. Eduardo Selga
    13 de junho de 2018

    Se compararmos “Celebremos” com outras duas crônicas aqui recentemente publicadas acerca do mesmo tema – Copa do Mundo -, quais sejam o texto de Nelson Rodrigues e o de Mário Filho, percebemos que se trata de um texto mais contido do ponto de vista da linguagem, no sentido de que, ao contrário de “Complexo de vira-latas” e “Garrincha e o Mundial de 1962”, não há praticamente o uso do coloquialismo. Talvez em função de que ambos os autores antes citados militavam na imprensa esportiva, o que produz textos fluidos, necessariamente. Drummond, apesar de filiado ao Modernismo, que propunha uma renovação da linguagem e de conteúdos, ainda é bastante formal na expressão linguística do texto em prosa. Noutras palavras, ele não se propõe a ser um Macunaíma da linguagem, como o foi, por exemplo, Guimarães Rosa.

    Há um ranço do que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de vira-latas” em “Celebremos”, devidamente driblado pela linguagem. Acredito que o trecho que representa isso de maneira mais nítida é “Do Jeca Tatu de Monteiro Lobato ao esperto Garrincha e a esse fabuloso menino Pelé, o homem humilde do Brasil se libertou de muitas tristezas”, porque o citado personagem lobatiano é uma caricatura do homem rural brasileiro da época, não a sua expressão exata. Mesmo porque a realidade do campo era, como ainda é, multifacetada relativamente aos tipos humanos. Jeca Tatu era mais ou menos, a versão literária de Mazzaropi, para lembrar um personagem mais próximo de nossos tempos modernos.

    Há uma ambiguidade discursiva ou uma espécie de “morde e assopra” no seguinte trecho: “Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia e que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores práticos. Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica. Drummond parece hesitar entre concordar ou não com o preconceito”. Quando diz “e que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores práticos”, sugere que também ele concorda com esse viralatismo, amenizado por um anterior “Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia”. Some-se ambos os fragmentos do parágrafo e temos um indicativo de ironia.

    Continuando a falar do mesmo recorte, em “Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica”, “abrir os olhos de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização” é um encanto. Encanto de encantamento, no sentido de bruxedo? Claro, sempre pode ser entendido como enlevo, maravilhamento, mas a primeira acepção não pode ser negada como possibilidade interpretativa, e se for esse o caso temos que, por ser encantamento, não é real. Logo, o “abrir os olhos” é apenas uma impressão. .

    Não se trata aqui de negar a qualidade literária da crônica, afinal ela está muito presente na construção de discurso, com palavras escolhidas a dedo. A questão é demonstrar o posicionamento ideológico do autor, conforme minha leitura. Como todo texto de qualidade, mais de uma interpretação é possível.

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Informação

Publicado às 12 de junho de 2018 por em Clássicos, Copa do Mundo e marcado .
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