Em pleno janeiro de 2020, está nítido que não terei muito mais tempo de vida. Seja pela falta de saúde, seja pela ação policial contra os raros protestos de rua, dos quais nem mais participo, embora sofra as pancadas da lei e da ordem. Talvez nem atravesse o ano. Assim seja. Morar na rua ou depender de algum favor é humilhante. Cansa esse rame-rame, essa bateção de cabeça, esses murros em ponta de faca. Resultam em pouco mais que nada, além das feridas. De todo o tipo, inclusive as físicas, mas são as que menos contam na hora da dor. As doídas mesmo, as impregnadas como digitais, são as de outra natureza.
Minha vontade é escrever o tamanho do pretume que me invadiu desde 2018, mas nem isso eu posso: os desgraçados me arrancaram os dedos esquerdos, exatamente os da mão narradora. Resta-me gravar a voz neste telefone celular… Quem sabe algum escritor ou jornalista encontre, ouça, transforma essas lágrimas em algo digerível?
O ano de 2018 foi trágico e decisivo para o que sou hoje. Militante político da chamada esquerda (o que é isso? – só hoje me pergunto a sério), eu estava meio de saco cheio do mar de inabilidade estratégica em que ela imergira desde a nossa deposição. É claro que perdemos a disputa presidencial nas eleições de 2018, viciadas até dizer chega. Impossível o resultado fosse outro – uma obviedade que, entretanto, assim não nos parecia naquele ano. Ao contrário: tomávamos o pleito por favas contadas, muito confiantes na conscientização do povo mais sofrido.
Ai, ai… Santa ingenuidade… Os ônibus e os carros de passeio espirrando-me água empoçada das chuvas, os pedestres cada vez mais cabisbaixos, uma falta de alegria que definitivamente não nos pertence, mas, mesmo assim, a resposta à altura não vem. Assim como não veio há dois anos.
Eu, particularmente, vivi um drama. Vamos a ele: desde menino sou apaixonado pela seleção brasileira de futebol, em especial a comandada por Telê Santana, em minha opinião a melhor dentre todas as que pude acompanhar. E 2018, ninguém consegue esquecer, foi ano da Copa na Rússia. Nosso favoritismo se confirmou, a despeito das suspeitas de arbitragem comprada a peso de ouro para apitar a favor dos brasileiros na semifinal contra a França. No entanto, como vestir a camisa amarela depois que esse grande símbolo foi capturado para finalidades tão pilantras e para o desmonte do país? Eis o drama.
Eu não conseguia usar o uniforme, mas, sim, somava-me à grande parte do país que vibrava com o time, embora sem muito entusiasmo. Ao menos antes de a disputa começar para valer. Contudo, tinha de ser uma torcida secreta, uma espécie de amor platônico, pois meus colegas de partido consideravam quase traição à causa pintar o muro, o rosto, a rua.
– Gente, não vamos confundir Carolina de Alá Seitão com caçarolinha de assar leitão, pelo amor de Deus… O time é muito mais estandarte do povo – esse mesmo que defendemos – do que símbolo do Estado brasileiro. É possível torcer sem vestir a tal amarelinha, afinal de contas – eu defendia minha proposição ideológico-futebolística diante do presidente do diretório regional.
– Isso em tese, companheiro; na prática, no campo simbólico, as coisas se embaraçam. Além disso, torcer sem exibir as cores do time de algum modo é como não torcer. Pão com mortadela sem mortadela, entende? Por que o companheiro não torce para Portugal? A língua é a mesma, e…
– Tenho cara de português?
– Todos somos um pouco. Que tal a Rússia? Do ponto de vista ideológico… Ou você não é comunista?
– Nem a Rússia é – sabemos muito bem disso.
– Já chega desse falatório! Você conhece a orientação do partido.
Eu entendia bem o que significava aquilo. A patrulha ideológica do partido, da qual eu mesmo já fizera parte, daria um jeito de averiguar meu comportamento durante a Copa. De certa maneira era verdade o que me fora dito na reunião: algum adereço verde e amarelo seria necessário, nem que fosse na cueca. Era preciso fazer da paixão uma coisa tátil.
Após refletir um pouco sobre como fazer isso da maneira mais sutil possível, resolvi assistir ao menos a estreia do Brasil contra a Suíça com bandeirinhas nas cores da seleção atravessando o teto de minha sala de fora a fora. Um arraial doméstico de festa junina em que a fogueira era a minha paixão.
Tudo pronto, no congelador algumas latas da única marca de cerveja que não financiara nossa deposição em 2016. Aguada, mas vá lá. No escuro todos os gatos são pardos? Na temperatura ideal toda cerveja é ótima. Quer dizer, ao menos passável.
E sem a camisa verde e amarela, vesti-me do povo brasileiro, torcendo para que o ataque mostrasse àqueles gringos logo nos primeiros minutos quem mandava em campo. Desde que não fosse Neymar Júnior, aquele mercenário com “y” metido a besta e tudo. Coisa de colonizado. Um golzinho do Gabriel de Jesus ou do Firmino (brasileiríssimos os nomes!) já estava bom. O importante era a classificação para, de repente, encarar a Alemanha na fase seguinte e devolver aos chucrutes o 7 × 1 de triste memória.
Demorou um século… Não há brasileiro que não tenha bem vivo na memória o golaço feito pelo Marcelo, disparando na ponta após receber orientações de Tite próximo à linha lateral, invadindo a área e chutando cruzado. Indefensável para o tal de Yann Sommer, a besta-fera do time deles. Aos quarenta e tantos do primeiro tempo. Gritei muito, talvez por morar sozinho.
E foi aí que a campainha tocou. Se fosse o morador do apartamento de baixo, sempre reclamando dos barulhos quando eu trazia alguém para dormir comigo, eu o abraçaria, beijaria na testa, gritaria dentro de sua orelha: “é gol do Brasil, seu velho ranzinza!!!”. No entanto, era meu colega de partido. Um franzino macilento com quem nunca tive grande contato antes. Disse que o diretório disse que precisávamos iniciar naquele dia uma campanha mais contundente para impedir o avanço do autoritarismo, e…
– Mentira sua! Veio me fiscalizar, não é mesmo? Pois entre e vamos assistir ao jogo na sala.
Não esperava a contundência da resposta, por isso me pareceu ter ficado ainda mais amarelo quando explodi para cima dele.
– Calma, companheiro… É que temos uma tarefa urgente, só isso…
Sentamos em frente à televisão, o narrador durante o intervalo do primeiro para o segundo tempo pedindo aos comentaristas que falassem qualquer coisa espirituosa, mas, ao mesmo tempo, não permitindo que concluíssem seus raciocínios. Sujeitinho cansativo!… Enquanto isso, meu colega dava início à sua arenga, que eu conhecia de ponta à cabeça e de trás para diante, afinal sempre fui um combatente do autoritarismo fascista. Meu interesse por seu discurso era puro fingimento, não por causa do conteúdo, e sim porque ele sempre se utilizou muito mal dos elementos de argumentação. E, cá entre nós… de sério não havia nada: ele só queria me vigiar, cumprir a tarefa e escrever o relatório ao comitê regional. Eu ouvia, cervejávamos, comíamos o amendoim da cumbuca; ele não terminava nunca a homilia e olhava de vez em quando para a materialidade do crime: as bandeirinhas do teto.
Até que o segundo tempo começou. A Suíça voltou com os cães, babando, para falsa surpresa do narrador. Fulano para beltrano para sicrano… Quase gol! Como assim?! Cadê a nossa zaga?! E a mão de alface do Alisson? Será que se o Cássio tivesse sido escalado por Tite essa falha clamorosa teria acontecido com tanta tranquilidade, amigo telespectador? Grave um vídeo em seu celular, mande agora para a gente com a sua preciosa opinião. E você sabe: sempre na horizontal.
Os suíços marcando muito mais homem a homem que antes, fungando no cangote canarinho, matando tudo quanto era jogada. O vermelho do uniforme deles parecia bem mais intenso que no primeiro tempo. Nunca pensei em ter antipatia pela cor do meu coração. Onde raios aqueles sujeitos sem jogo de cintura aprenderam a jogar?
E não é que os caras conseguiram empatar enquanto eu reclamava?
Nem era preciso ser um grande observador do comportamento humano: claro estava que meu companheiro de partido aos poucos desistia do pretexto e do motivo real por que viera à minha casa: torcia, a princípio discretamente. Se me aproximasse dele talvez o escutasse sussurrar “vai, vai mais, Brasil…”. Reservado, fazia um ou outro comentário, discordava das bobagens do narrador piegas. Era questão de tempo: em breve ele também gritaria, de felicidade ou de indignação. Os velhos extremos aos quais parecemos estar condenados, os brasileiros.
Todo o Brasil sabe de nossa vitória por dois a um naquele jogo, e quem desempatou foi Neymar (fazer o quê?…) aos trinta e cinco minutos, mais ou menos. Minha birra com ele me impede de me aprofundar no segundo gol, mas o importante mesmo foi o companheiro gritando feito um louco, ajoelhando-se no chão, levantando as mãos para os céus (ou melhor, para as bandeirinhas do teto). Quando caiu em si, levantou-se e flagrou a quantidade de riso que saía de mim.
– Está vendo, companheiro? Torcedor enrustido dá nisso…
Quadrado como um gringo no samba, pediu que eu não falasse nada a ninguém do partido. Eu ri mais ainda, mal disfarçada vingança, e garanti-lhe segredo. Não acreditou muito. Nem eu, na verdade. Assistimos ao resto da partida e ficamos felizes, embora ele ainda estivesse cabreiro. Bom mesmo que assim fosse.
Término da gravação. Desligo. No horizonte da avenida, o blindado que atira jatos d’água nos que têm a infelicidade de morar na rua. Afinal, é preciso higienizar a cidade, livrá-la dos pobres e dos que foram física e psicologicamente inutilizados pela tortura do autoritarismo, que se aproveitou do hexacampeonato para se estabelecer sem máscaras em Brasília. E pensar que fez isso enquanto comemorávamos nas ruas e gritávamos o antigo e atual “pra frente, Brasil!”…
Lá vem o caveirão d’água lavar e enxaguar o espaço público. Para infortúnio deles, essa gente desagradável não somos hidrossolúveis. Ainda assim, tenho um problema: onde guardar o aparelho de modo a não perder a gravação?
Rewind.
Arquivo de texto salvo, após duas versões. Desligo o computador. Mergulho em mim mesmo, um pouco incomodado com o que escrevi. Na verdade, em pleno inverno de 2017, tenho medo dessas memórias futuras, dessa ponte imaginária.
Olá, Selga.
Gostei da distopia: feito comentaram, o uso do humor foi bom, pois quebrou o clima repressivo do seu Brasil 2020. Só achei que a situação do narrador em 2020 um tanto exagerada, mesmo um governo de exceção demoraria certo tempo para perseguir tão eficientemente seus opositores, fora que há hoje em dia órgãos internacionais e imprensa, que certamente causariam dores de cabeça aos futuros generais, isto é, mesmo com um golpe militar o resultado não seria algo como em 1964.
O conto causou-me certa reflexão. É uma pena, realmente, que o uso da camisa da seleção tenha adquirido tal conotação política, a ponto das pessoas com inclinação progressistas hesitarem em usá-la para celebrar o que sempre foi motivo de alegria e união.
Abraços.
Um conto que poderia ter resvalado para o panfletário. Aqui consegue-se manter o equilíbrio graças a uma boa dose de ironia e de sarcasmo, que emprestam ao texto um ar leve e em certa medida cômico. Feliz aquele que sabe rir de si mesmo – é que se extrai das entrelinhas deste conto. Na hora H, sucumbimos à meninice e a nossos instintos mais básicos. Ainda que a introdução e o final optem pelo clima soturno, de pessimismo, o que se tem no todo é um conto permeado por leveza pueril, como nas distopias adolescentes – e nem por isso inocentes. Enfim, um trabalho bem pensado, que dá seu recado e que mantém a posição com um leve gracejo.
Ando me surpreendendo ao ler os contos com tema de futebol. Apesar de não entender quase nada sobre o esporte (por pura preguiça e descaso), as narrativas aqui postadas Têm me agradado bastante. Este conto prendeu meu interesse pois mescla crítica social com humor, sem pesar a mão em nenhum dos dois aspectos. O narrador é bastante interessante e traz um toque cômico muito apropriado que invês de apenas distrair o leitor, faz com que reflita sobre a probabilidade do enredo se tornar real. Acho que nunca adivinharia que o texto é seu. Há uma certa mudança na forma como conduziu a narrativa, mas não sei precisar o que se modificou. Só sei que gostei bastante. Abraço.
Muito bom, Eduardo. Gostei imenso da história e também do tom em que a contou, mais solto do que lhe é habitual – e, em minha opinião, bem melhor assim. Uma excelente critica, bem verdadeira. Um abraço.
Muito divertido, Selga. E olha q eu nem gosto de futebol. Mas saboreei seu texto de uma talagada só. Dei risada com as suas analogias. Especialmente sobre as cores das camisas de Brasil e Suíça. Também me diverti pensando que a única cerveja que não apoiou o golpe é ruim e aguada. Brasileiro sofre! rsrsrs Abração!
Ótimo, lembrei-me do filme Brazil de Terry Gilliam, o celular na horizontal foi uóoo, pura distopia. Abçs.
Bom conto, Selga. Melhor, na minha opinião, ao explorar o lado mais descontraído do torcedor (a sacada de não poder usar o amarelo foi boa e cômica) do que ao enveredar no viés político daquela velha história do futebol distrair o povo enquanto os bandidos (aqui os “autoritários”) fazem a festa.
Muito bom! Parabéns, Selga. Também não vou muito com ‘os córnos’ do NeYmar… (rs!) Isso, temos em comum! 🙂
PS: adorei a escolha da foto.
Abrax,
Paz e Bem!