Estaciono embaixo de uma amendoeira na rua. Pelo número de carros, percebo que não fomos os primeiros a chegar. Apesar do protesto da mãe, Miguel corre na frente, feliz pela visita à família. Entramos pelo portão, que me parece encantado, uma visita à minha infância. Logo, Gustavo, meu melhor amigo de longa data, surge com dois copos na mão. Já sei que o segundo é meu, e brindamos com a cerveja que rega nossa amizade desde quando ainda nem podíamos beber. Amanda, esposa de Gustavo me dá um abraço apertado e um beijo em Camila, minha esposa.
Eles são os precursores. Logo, uma romaria de parentes se apresenta e, uma torrente de ósculos e amplexos toma conta da família que há muito não se reunia daquela forma.
Carlos, marido de minha prima, já está exercendo seu papel de churrasqueiro. Vou até ele e, em poucos momentos, me vejo rodeado de primos e tios, todos encerrados numa discussão sobre o desempenho de seus respectivos times no Campeonato Brasileiro. Argumento de leve, mas logo sou engolfado por críticas e zombarias ao meu time, o Heroico Português não anda muito bom de bola e, quando o papo envereda para o torneio de técnicos de futebol online, me esgueiro do grupo para passear sozinho pelo quintal de minha infância.
Lembranças me vem à mente quando estaco à frente da casa de minha falecida avózinha. Não seguro as lágrimas e me agacho, encolhido pela nostalgia e pela dor da perda daquela que fora minha segunda mãe. Sinto um abraço reconfortante me envolver. Não preciso abrir os olhos para saber que é Camila. Ela não me pergunta nada. Sabe o que sinto…
Voltamos para o centro do quintal onde a estreita, mas gigantesca televisão já está pronta, e o público reunido ao seu redor. Tomo meu assento ao lado de Gustavo e Téo, meus melhores amigos da infância, e juntos, vemos ambas as seleções entrarem em campo. As cores amarela e azul turvam meu pensamento.
Olho para o copo de cerveja e vejo a cor dourada tornar-se mais escura, mais doce. Levo o copo à boca e sinto gosto de guaraná. Noto não ter mais pelos nos braços. Minhas canelas estão finas e russas pelo futebol com os primos. Volto os olhos para a frente e vejo que todos rejuvenesceram comigo.
Téo e Gustavo ainda estão ao meu lado. Gustavo com bem mais cabelo e bem menos peso, Téo com um copo de coca-cola cantando o hino nacional. Aliás, todos cantam. Todos estavam ali. Alguns, ainda estavam. A casa de minha avó está na velha cor verde, descascando, e quando meus olhos descem, vejo a cachorrinha Laika rodeando pelas pernas, aguardando ansiosamente um pedaço de carne cair. Vejo minha mãe pela janela da cozinha, terminando de preparar o arroz para o batalhão. Vovó está lá também, matrona, forte, viva.
Ainda estou nesse deleite fantástico quando o jogo começa. Dentro da imensa TV de tubo, as mesmas cores que me trouxeram a este devaneio, agora se digladiam pela Taça do Mundo. Me entrego ao sonho no momento em que os dois baixinhos tabelam perto da defesa adversária, mas o goleiro narigudo defende o chute mal batido.
Tio Fúlvio pragueja, reclama da escalação do atacante. Tio Edmilson se junta ao coro para queixar-se da escalação de mais meia dúzia de titulares. Um falatório começa, mas, rápido como o contra-ataque Azzurri, as bocas se calam. A pelota é lançada na área Tupiniquim e, com um único mover de perna, o centroavante adversário se livra do zagueiro verde e amarelo. Era ele, o goleiro e nossos corações, que creio, faziam coro a mais uns 100 milhões de corações verde-amarelo. O jogador chuta sem equilíbrio, e seu ataque morre nas mãos do defensor da meta canarinho.
Todos soltam a respiração. Alguns uivam de alívio. Eu bebo o oitavo copo de guaraná. Minha mãe e avó vem ver o motivo da comoção. Não foi nada, graças à Deus.
E nesta levada, a partida progride. Acirrada, aguerrida. Poucas vezes se viu dois times tão poderosos e respeitosos. Era o duelo entre as mais formidáveis potências do futebol mundial. O jogo final pelo torneio. O mundo estava parado, acompanhando a peleja.
O tempo regulamentar se encerrou e o fantasma dos pênaltis assombrou a toda uma nação. Provavelmente, à outra também.
Não sei se devido à mandinga de dezenas de milhões de tupiniquins, ou só mesmo pelo nervosismo do momento, o primeiro batedor ítalo atirou um petardo, muito longe da meta. O narrador urrou. Nós urramos.
Tal regozijo só durou até o próximo batedor canário entregar a bola facilmente nas mãos do goleiro adversário. Decepção. Raiva. Xingamentos. Refrigerante. Cerveja.
O baixinho-mor se apresentou. O maior campeão daquele time. Em seus ombros, a esperança verde-amarela. Ele correu. Corremos junto. Ele bateu, nossos corações pararam. A trave deu uma ajuda e, a bola atingiu sua meta, sob nosso grito de júbilo e a frustração do goleiro adversário.
Agora, a responsabilidade não recaía sobre pés, mas repousava sobre mãos. As mãos santas e enluvadas de um gigante loiro, que não decepcionou sua gente e espalmou firme o balaço adversário, concedendo-nos a vantagem.
O capitão se prontificou. Sério. Sizudo. Resoluto. Seu nome foi repetido diversas vezes por diversas bocas. Abraçado, o time o olhava do meio de campo, enquanto nós, a meio mundo de distância, aguardávamos para finalmente gritar: GOL!
O momento final chegou. A estrela da seleção adversária se aproximava da bola. O nome do artilheiro azul despertava medo e angústia em nossos corações. Sua calma, confiança e frieza contrastavam com nosso calor, temor e esperança. Ele estava de pé. Todos nós agora também estávamos. Eu esqueci do guaraná. Os adultos esqueceram da cerveja. Talvez, até a Laika esquecera de olhar para o chão atrás de pedaços de alcatra. Era ele e a bola. Nós contra Ele. Ele partiu. Milhões de orações lhe desejavam má sorte, ou sorte pra nós, dava na mesma. E fomos agraciados. A bola havia sido isolada!
O berro do narrador, abraçado aos comentaristas só era superado pelo nosso próprio, no quintal. Felizes, pulávamos abraçados. Os adultos bebiam grandes goles da cerveja enquanto nós, crianças, corríamos apenas de prazer. Os fogos estouravam pelo bairro e a comoção podia ser ouvida também nas casas vizinhas.
Afinal, me volto para o refrigerante em minha mão. Era cerveja outra vez. Camila está sorridente e linda ao meu lado. Miguel brinca com seus priminhos ao longe e, olhando ao redor, vejo que toda minha família envelhecera 30 anos novamente.
Com um sorriso, finalmente provo o amargor da cerveja e ouço o apito iniciando a primeira partida da Seleção na Copa. Copa que assim como naquela época, vale menos que o prazer de ter os entes queridos ao lado, e os que se foram, para sempre no coração.
O conto acerta a mão ao abordar aquilo que talvez seja a característica mais comum associada às Copas do Mundo de Futebol: o modo como funcionam como referência temporal. Invariavelmente nossa memória associa a passagem do tempo a eventos marcantes e as Copas são, por certo, um marco a cada quatro anos. Sempre que nos recordamos de algo – e isso funciona para a maioria dos meninos pelo menos – usamos como parâmetro o intervalo entre duas Copas. “Ah, isso aconteceu logo depois da Copa de 2002”, p.ex. Acho que o conto usa bem esse jogo de memória ao sobrepor momentos entre duas copas, utilizando lembranças vívidas em comparação com o instante atual. Uma boa sacada.
Creio que as Copas s’ao extremamente marcantes para maior parte do povo brasileiro. De fato, um divisor de aguas que define bem certas etapas da nossa vida. Obrigado pelo comentário, Gustavo.
Olá, Rafael.
Uma crônica muito boa. Interessante o recurso do guaraná e cerveja, servindo de guias para os dois momentos na linha do tempo. Bacana também a reflexão sobre o ciclo, onde as pessoas trocam de papel conforme o tempo.
Abraços.
Valeu, Rubem!