EntreContos

Detox Literário.

A Copa do Tri (Rubem Cabral)

Bem, isso tudo aconteceu antes dos supermercados modernos, talvez antes do iogurte de morango Chambourcy, em mil-novecentos-e-macarrão-comprado-a-granel-no-armazém. Móveis pés de palito, laquê, perucas Lady (tá?), picolé sabor toffee, anos de chumbo para os politizados, pátria de chuteiras para a maioria…

Escutávamos o tema da Copa o tempo todo: “90 milhões em ação, pra frente Brasil…” – sim, éramos só 90 milhões então. Eu, na inocência dos meus seis anos, girava o seletor da tevê ABC Voz de Ouro, inconformado: nada do Manda-Chuva, Pepe Legal ou Capitão Aza nos poucos canais que existiam; por todo lado apenas um monte de sujeitos de shorts correndo para lá e para cá, tentando colocar uma bola idiota nas redes do oponente e de gente falando de futebol. O tempo todo! De alguma forma aquilo se tornara a coisa mais importante do mundo… Ora, eu queria ver o Fred gritando “Yabba Dabba Doo!” ao escorregar pelo lombo de um dinossauro, mas os Flintstone aparentemente saíram de férias de Bedrock, seguramente junto com os Rubble. Eu queria cantar “Maguila Gorilla for sale…” (a minha versão, claro) e rir com a Tartaruga Touché e a hiena que só se lamentava, mas só falavam de Pelé, Rivelino, Gérson e Tostão.

A vida era boa então. Meu pai havia sido promovido recentemente, e era o gerente de vendas mais prestigiado da extinta rede de eletrodomésticos Bemoreira. Alguma loja da rede ia mal de vendas? Suspeitavam de algo estranho na contabilidade? Roubos de estoque? Lá ia meu velho pra Madureira, Rua Uruguaiana, Meier, Copacabana, colocar as lojas de volta aos eixos. Em função do sucesso em suas empreitadas, comissões generosas, presentes – tínhamos duas tevês, máquina de lavar, máquina de tricot, aspirador de pó e enceradeira brilhando de tão novas -, festas da empresa com Papai Noel chegando de helicóptero no Maracanãzinho… Um Oldsmobile azul-piscina e com bancos brancos recheados de palha brilhava na garagem. Algumas ameaças vieram também dos prejudicados por suas ações, que felizmente foram só ameaças vazias mesmo. Meu pai era então meu heroi: honesto, destemido, competente.

Morávamos numa casa grande, no subúrbio, perto da casa de meus avós. Havia um quintal à frente, com garagem, dois coqueiros, duas mangueiras e uma goiabeira. Nos fundos minha mãe mandara construir um galinheiro. É engraçado pensar que hoje em dia só compramos galinhas e ovos no supermercado, que não vemos pintinhos nascendo magicamente de dentro de uma caixa de sapatos com uma lampadazinha acesa ou através da labuta duma galinha Garnizé rabugenta, que chocava os ovos enormes das outras galinhas, se equilibrando precariamente e dando bicadas em quem se aproximasse.

No dia vinte e um de Junho, por alguma estranha razão, todos amanheceram muito nervosos. Havia uma tensão no ar, que estava denso feito gelatina Jello. Alguém soltara fogos ainda pela manhã na vizinhança, mas o semblante da maioria das pessoas era sério como o meu tio Eraldo, que nunca sorria, nem das próprias piadas. Meu pai só trabalharia até as 11:00 então, minha mãe levou-me à casa de minha avó e meu braço latejava de uma vacina que eu tomara na véspera.

A vó, que era baiana e meio índia, resolveu cozinhar um vatapá. Coisa que normalmente ela só fazia no próprio aniversário. Antônio, meu avô, meio português/meio italiano, aprovou entusiasticamente a empreitada culinária, talvez por ser um grande fã de açordas de marisco. A receita do prato baiano era complicada e cheia de ingredientes: camarão fresco e seco, azeite de dendê, leite de coco, farinha de arroz, peixe branco… A cozinha logo cheirava a pimentas frescas, cebolas e coentro. Vovó pingava provas do caldo na palma da mão pequena e lambia, e resmungava: “Tá com pouco sal. Já moeu as castanhas de caju, meu bem?”. Vovô, o velho magro e alto, em perfeita antítese à minha avó baixa e gordinha, obedecia como um soldado às ordens dum general. Só respondia: “Sim, Filhinha”. Vovó era a “Dona Filhinha” para os amigos e vizinhos.

“Ai, meu Deus… Mas será que tem o suficiente?”, ela choramingava enquanto mexia com uma colher de pau os gigantescos caldeirões. “Vá assistir tevê, Rubinho. Vá! A vó tá ocupada…”.

Liguei a tevê e suspirei, desolado. Reprise de uma entrevista com Zagalo, em outro canal alguém comentando sobre o Estádio Azteca no México, estatísticas sobre a “retranqueira” seleção italiana que só tinha dois empates e uma vitória magra naquela Copa, propaganda das formiguinhas da Bemoreira, vestidinhas de amarelo-canário. Nem sombra do Peter Potamus, Dick Vigarista ou dos Brasinhas do Espaço… Acabei por cochilar deitado no sofá cheio de almofadinhas de fuxico e forrado com uma colcha de cheline (pra não estragar o caríssimo couro sintético). Acordei assustado algum tempo depois, com o barulho de novos fogos, com a pequinês fedorenta que minha avó tinha, me encarando com os olhos esbugalhados e remelentos.

Minha mãe voltara e fritara bolinhos de mandioca recheados com carne moída. Meus irmãos menores vestiam verde e amarelo, mesmo o menorzinho. Meu pai chegara de camisa social e gravata, carregando uma bolsa com cervejas e guaraná. Todos se apertaram ao redor da tevê pequena. Meu avô ajeitou a antena, pois a imagem estava cheia de chuviscos. Uns tapinhas na lateral da caixa de madeira fizeram tudo funcionar. A vó falou que o vatapá era pra depois do jogo, pra não dar indigestão e mordiscou um bolinho da minha mãe, já criticando a falta de salsinha ao recheio: “A massa tá boa, mas o recheio tá sem gosto…”.

Mais foguetes e buscapés lá fora, a cadelinha se escondeu sob uma cama. Os jogadores, todos em tons de cinza no aparelho preto-e-branco, entraram no campo. O juiz mostrou uma moeda e jogou para o alto, os capitães trocaram flâmulas de presente. Alguém tocou a bola do centro do campo para outro jogador. “Começou”, pensei.

Por um tempo que me pareceu infinito, vi meu pai tremer e ficar gelado, a sua voz falhando depois de alguns gritos e um palavrão censurado/semipronunciado, sem conseguir decidir em ficar de pé ou sentado no sofá. Minha mãe esfregando as mãos, me acaraciando a cabeça com o polegar, com tanta força que faria um buraco nos meus cabelos (e quiçá no crânio) se eu não escapasse por seus braços de anaconda. Minha avó molhando os bolinhos de minha mãe num pote de molho de pimenta fresca que ela preparara pro vatapá, e suando profusamente,  e chorando de contentamento e ardor. Meu avô tão nervoso que ficou mudo o jogo inteiro, meu irmão mais novo boquiaberto, observando tudo com olhos arregalados de incompreensão, meu irmão do meio tirando melecas do nariz sem ligar para nada.

E quando Pelé marcou o gol aos 18 minutos, foi algo que fez o mundo inteiro tremer. Saltávamos como possuídos, como se tivéssemos pulgas no fiofó. Meu irmão mais novo abriu um berreiro. Ganhei um abraço e um beijo cheio de malaguetas da minha avó, que fez meu olho arder e me fez espirrar.

Os rojões, os gritos, os risos, os latidos… Eu começava a entender o que significava uma final de Copa do Mundo: era família, era amizade, era união, era tudo de bom e de ruim de todos nós, misturados. Era se transformar durante os 90 minutos, todos, num bicho raro que se retorcia diante da telinha que piscava, indeciso se por prazer ou por dor.

E quando Boninsegna marcou para Itália, foi como se fôssemos feridos mortalmente, foi como se o silêncio transmutasse em algo sólido e desabasse sobre nós tal qual avalancha de sombras. Minha avó, torcedora calejada e única botafoguense do grupo, não perdeu a esperança nem quando o primeiro tempo terminou empatado. Disse: “Vamos virar, vamos ganhar essa, eu sei”, e enfiou outro bolinho flamejante na boca e beijou meu avô nos lábios, que saiu correndo atrás de uma cerveja gelada.

E o segundo tempo foi só de alegrias. Dois a um, três a um. O quarto gol do Brasil, com bolas tocadas da direita à esquerda e vice-versa por oito jogadores brasileiros, passeando entre a seleção italiana, até que Carlos Alberto finalizou o passe perfeito de Pelé, foi uma apoteose.

Ora, eu não sabia o que era Jules Rimet, o que ganharíamos, afinal, depois daquela batalha de gladiadores de shorts e meias compridas, mas eu via minha mãe e minha avó abraçadas – elas eram nora e sogra e não se bicavam muito –, via meu pai beijando a testa calva do meu avô, a cadelinha pequinês correndo em círculos, o vatapá agora trazido à mesa da sala e inundando a casa com um cheiro fabuloso. E eu compreendi: futebol não era chato, e uma Copa do Mundo é algo que não tem exata definição ou explicação. É um evento maior, é algo poderoso que agarra nossos corações. É uma força da natureza, uma bagunça louca que nos sacode por dentro, mas ainda assim e de alguma forma organizada nos mínimos preparativos. É Brasil e nossa mistura, é índia fazendo comida de negro para italianos e portugueses. Somos todos nós.

E é tudo isso e mais um tanto, e tinha gosto mágico de vatapá e guaraná e beijos com pimenta, e de bolinhos sem salsinha.

***

Dias depois, já de volta às minhas sessões de desenhos animados, eu senti saudades daquilo tudo, e perguntei pra minha mãe: “Tem Copa de novo mês que vem, né?”.

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14 comentários em “A Copa do Tri (Rubem Cabral)

  1. Rafael Penha
    6 de junho de 2018

    Mais u excelente conto. Percebo que a Copa do Mundo tr[as um sentimento muito nostálgico e gostoso no brasileiro. A ambientação demonstrou bem a aflição de uma criança neste meio e, o seio familiar foi desenvolvido com carinho e bastante versossimilhança. Muito Bom!

  2. Leo Jardim
    5 de junho de 2018

    Poxa, você roubou o mote do meu combo hehehe (e assim arrumei a desculpa que não precisava para não escrever).

    Toda vez que converso com alguém que diz não gostar de futebol, me bate um pouquinho de pena, pois futebol não é só um jogo. Futebol é isso que teu conto mostra e muito mais… estou bem de saco cheio atualmente, mas domingo vi os jogos do Brasil e do Flamengo com meus filhos. Foi mágico como costumava ser (sorte que ambos ganharam, claro).

    Parabéns, Rubem, pelo belo conto. Valeu muito a leitura.

  3. Fabio Baptista
    4 de junho de 2018

    Muito bom, Rubão!

    Nostalgia em doses cavalares e um retrato perfeito do sentimento que a Copa trazia. Hoje, não traz tanto, assim como o Natal, foi perdendo o encanto. Ou eu que fui ficando velho rsrs

    • rubemcabral
      4 de junho de 2018

      Fala, Fabio!

      Obrigado pelas impressões. Boa comparação, essa com o Natal. Realmente, era uma coisa fantástica esperar pelo Natal; as musiquinhas, os comerciais, Roberto Carlos, pinheiro, a ceia… Parece que ficamos mais céticos e menos inocentes. A Copa, assim como o Natal, envolvia talvez alguma mágica, era um conto de fadas de garotos pobres, esforçados e honestos, que alcançavam o sucesso somente com o talento. Não simpatizo muito com o Pelé, mas ele, por exemplo, nunca aceitou fazer propaganda de cigarros ou bebidas alcoólicas. Enfim, foram tempos que deixaram saudades.

      Abraços.

    • Regina Ruth Rincon Caires - Caires
      6 de junho de 2018

      Ainda traz, o problema está no “olhar”. Passamos a “ver” de maneira diferente. Olhos de criança fisgam a magia…

  4. angst447
    3 de junho de 2018

    Que viagem mais nostálgica você me proporcionou, Rubens! Revi todos os desenhos animados e até me lembrei do nosso pequinês chamado Pretinho. Veio à mente a musiquinha 90 milhões em ação🎶🎶. Mas pra mim era 70 milhões kkkk. Como sempre, você esbanjou talento ao narrar um acontecimento marcante, dando toques precisos de humor e de certa poesia. Adorei!

    • rubemcabral
      4 de junho de 2018

      Oi Cláudia.

      Em fiquei na dúvida se eram 70 ou 90 milhões na música da época… A infância sempre marca, há mil histórias a contar. A tal pequinês, por exemplo, teve o pelo pintado pelo meu tio, que era adolescente à época e o fez para irritar minha avó. Minha avó tinha um cágado tbm, que somente morreu com uns 60 anos de idade.

      Obrigado e um abraço.

  5. Ana Maria Monteiro
    3 de junho de 2018

    Que conto bonito, Rubem. Até senti pena de não gostar de futebol. Parabéns.

    • rubemcabral
      4 de junho de 2018

      Olá Ana.

      Que bom que gostastes. o tal prato que minha avó costumava fazer lembra uma versão acalorada de açorda de mariscos. Há, inclusive, uma variação da receita de vatapá feita com pão amanhecido, ao invés de com farinha de arroz, como minha avó fazia.

      Abraços.

  6. Gustavo Araujo
    3 de junho de 2018

    Gostei muito do conto, talvez porque vá além do futebol, retratando uma época que longe se vai. É difícil ser nostálgico sem ser piegas, mas creio que você acertou bem a mão, Rubem. Embora eu só viesse a passar por situação semelhante em 1978 (quando eu é que estava perto dos seis anos), pude me identificar perfeitamente com a frustração dos desenhos da Hanna-Barbera substituídos pelo futebol na Copa da Argentina. Sim, o resultado não foi o que esperávamos, mas o clima familiar foi muito parecido com o que você descreveu. Enfim, um ótimo conto/crônica com ares biográficos e confessionais. Parabéns!

    • rubemcabral
      4 de junho de 2018

      Oi Gustavo.

      Obrigado pelas impressões. Sob alguns aspectos, dei mais sorte que você, pois a Copa de 78 foi-nos “garfada” vergonhosamente naquele Argentina x Paraguai. Lembro-me bem do sentimento de raiva por só haver futebol na tevê, e pelos desenhos terem desaparecido. Legal que hoje, com o advento da internet, podem-se ver muitos dos desenhos de tal Época de Ouro da Hanna-Barbera.

      Vatapá, até hoje, é um prato que evoca sentimentos fortes em mim. Talvez pela força das memórias, nem na Bahia comi um que fosse tão bom como o da minha avó.

      Abraços.

  7. Regina Ruth Rincon Caires - Caires
    3 de junho de 2018

    Que lindo! Não tem como a gente não se emocionar. A gelatina Jello, para mim, foi a cereja do bolo. Encaixei-me. Interessante como que cada um consegue lembrar o que estava fazendo naquela conquista do tri. E você, Rubem, descreveu, com delícia de detalhes, o seu momento. Parabéns, é muita lindeza… Naquele dia, eu era Normalista (último ano), morava em São José do Rio Preto, em uma pensão. O filho da dona da pensão era gago, e ele ficava tão nervoso e eufórico com o gol que quando ele conseguia gritar, o gol já ia longe! Quantas boas lembranças este seu texto me trouxe… Parabéns! Obrigada pelo presente… Abraços…

    • rubemcabral
      4 de junho de 2018

      Oi Regina.

      Obrigado pelas impressões. Eu, naturalmente, não me lembro de tantos detalhes da época e tive que acrescentar um pouco às memórias, mas é, grosso modo, o que me lembro do dia. Minha avó paterna era uma cozinheira fantástica e minha mãe era tão iniciante nas artes culinárias que comprou certa vez um quilo de filé mignon e mandou moer. Quando o açougueiro achou estranho, ela não quis confessar que não conhecia nada de carne e respondeu “metida”: “Meu marido só come carne moída de filé mignon”. As duas tinham uma relação de competição que melhorou somente quando eu era adolescente. Enfim, foi gostoso recordar disso tudo.

      Abraços.

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Informação

Publicado às 3 de junho de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
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