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Detox Literário.

Dribles do Passado (Regina Ruth Caires)

A igreja era modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos moleques. As peladas aconteciam.  

Todas as crianças da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de tirar uniforme, engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um bom tempo até tudo se ajeitar.

Todos descalços, as botinas só eram usadas na escola. Os times eram divididos em: de camisa, sem camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente era medido por cinco passos, motivo de muita briga, era delimitado por botinas regaçadas recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado por tijolos, paus, pedras. Depois de muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram pelas velhas botinas. As passadas eram motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava que a perna do contador era grande demais, o artilheiro queria que o mais alto da turma fizesse a marcação. Era um tal de puxar o sapatão para lá e para cá…

A bola era de meia. Bola de capotão era artigo de luxo que só aparecia quando chegava algum primo distante.  Assim mesmo, só podia ser usada se o primo escolhesse o time, o que não agradava a molecada. Os meninos da cidade grande eram sem ginga, sem malemolência, e sem contar que as chuteiras espantavam os pés dribladores dos moleques da vila.

A cada semana a bola era revestida com velhas meias catadas nas casas. Material cada vez mais escasso.

E, sob sol escaldante ou chuva mansa, as peladas eram sem fim. Interrompidas apenas quando os raios cortavam o céu e os trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria era tanta que nem os sapatões das traves eram recolhidos. E quantas camisas ficavam para trás! Ai! E quantos puxões de orelha…

As crianças nem percebiam o tempo passar, os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava. Satisfazia, era prazeroso.

De repente, um novo pároco chegou. Por inúmeras vezes as crianças o avistavam na porta da igreja, com as mãos em conchas protegendo as vistas do sol, olhando de um lado, olhando de outro… Nem imaginavam as caraminholas que estavam sendo urdidas dentro daquela cabeça.

Não demorou muito e a notícia se espalhou. O padre decidira fazer uma igreja do tamanho da praça. De ponta a ponta!

Os meninos, de início, ficaram assustados, mas esqueceram. As peladas continuaram. Continuaram até que um dia, ao chegarem na praça, a escavação estava iniciada. Muitos pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas, ocupavam a área do campinho. Dois caminhões carregados de tijolos estavam alinhados na beirada do terreno.

Os meninos, desapontados, foram se esgueirando pela velha igreja, calados. Caminhavam e olhavam, com tristeza, a terra vermelha sendo retirada das valas. O padre, na porta da igreja, nem percebeu a decepção das crianças.

Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem havia burburinho, silêncio cavernoso.  Não houve escolha de time, não houve onde colocar os sapatões, não houve medição… Tudo quieto.

Passados alguns dias, outro canto foi arranjado para as peladas. Ficava na baixada, um descampado de capim verde. Sem a menor graça.

E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam recursos para erguer a igreja do pároco megalômano.  E ainda bem que a capelinha foi mantida dentro do esqueleto suntuoso da construção. As paredes começaram a ser erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal, um colosso. Não havia material que bastasse para a construção, um despropósito.

Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição exacerbada e majestosa do pároco, o bispado entendeu certa patologia naquele empreendimento. Então, o padre foi substituído. Na vila, como herança, restou o esqueleto vermelho, inacabado, inconcebível, da catedral que nunca foi.

Os meninos poderiam ter o campinho de volta. Não quiseram. O encanto, para eles, havia passado. Estavam crescidos.

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7 comentários em “Dribles do Passado (Regina Ruth Caires)

  1. Fabio Baptista
    9 de junho de 2018

    Gostei, Regina!

    Texto permeado por uma inocência de encher os olhos. Esse final é muito bonito e também triste, com o gosto agridoce das boas lembranças que não voltam.

  2. Gustavo Araujo
    6 de junho de 2018

    Incrível como essa temática futebolística está intrinsecamente ligada à nostalgia que sentimos de nossos tempos de criança. Nesse caso, num contexto interiorano, em que tudo parecia simples, fácil, o horizonte uma tábula rasa. O texto é feliz por retratar esse sentimento sem resvalar no sentimentalismo ou na pieguice – culpa (no bom sentido) do pároco ambicioso que surge para contrapor o enredo adocicado. Um belo trabalho, sem dúvida. Parabéns.

  3. Juliana Calafange
    5 de junho de 2018

    Que belo retrato do que é o Brasil bom de bola das cidades do interior, para mim o princípio de tudo. Muito bem escrito, o conto vai construindo as imagens na cabeça do leitor sem pretensão ou afobação. Vai levando a história, batendo bola com o leitor, até que uma ideia estúpida e insensível de um padre megalômano, que não enxergava o milagre que as peladas dos meninos produziam na vida da cidade, empata o jogo, no melhor da partida… O religioso não percebeu algo muito mais valioso que altares ou paredes de tijolo. Lindo, lindo conto!
    Agora me lembrei do Gustavo Araújo, que me disse que eu gosto de futebol e não sei disso… rs
    Parabéns Regina!

  4. rubemcabral
    4 de junho de 2018

    Olá, Regina.

    Leitura deliciosa. Muito interessante notar as minúcias da “pelada”, a bola de meia, as traves improvisadas, com camisa x sem camisa, e tudo mais. Batia no cachorro e entrava no gol valia como gol? rs

    Meu irmão mais novo era o craque lá em casa e por causa do futebol já caiu em buraco de obra, atravessou a rua com a bola na frente de um ônibus (que tinha bons freios, felizmente), e vivia eternamente estropiado e imundo.

    Obrigado pelas lembranças! Abraço.

  5. angst447
    3 de junho de 2018

    Que conto mais lido sobre um tema que eu nem aprecio. Bela a sua visão peculiar, sensível de um grupo de moleques cujo o sonho era o jogo de sempre, o bate bola sem requintes, bem raiz. Pena que só sobrou o esqueleto da igreja e das memórias de infância. Leitura deliciosa.

  6. Rafael Penha
    3 de junho de 2018

    Conto saudosista. Impossível não lembrar da infância. Muito bom!

  7. Cilas Medi
    1 de junho de 2018

    Eita coisa boa de se ler.

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Publicado às 1 de junho de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
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