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Detox Literário.

Dia Estranho (Jowilton Amaral)

Era uma terça-feira oito de julho de dois mil e quatorze, feriado estadual. O sol se mostrava opaco entre as nuvens carregadas, amornando a temperatura e dando a cidade um tom lúgubre. As ruas vazias e o vento correndo forte aumentavam o clima fantasmagórico. Abri o consultório, não sei porque cargas d’água, as oito da manhã, como sempre fazia, apesar de ser o dia da emancipação política de Sergipe e o tempo estar propício para dormir até mais tarde.

Não costumava trabalhar em feriados, mesmo meu consultório sendo em casa. No entanto, naquele dia eu me arrumei para atender como se fosse um dia comum. E de dia comum não havia nada, naquela tarde a nova família Felipão jogaria a semifinal da Copa do Mundo contra a Alemanha. Um jogo e tanto, que colocaria a prova o escrete canarinho depois de passar por adversários teoricamente mais fracos. Eu estava bastante otimista, não pelo que o time vinha fazendo durante o torneio e sim pelo que havia demonstrado um ano antes, na Copa das Confederações, quando foi campeã jogando muito bem e batendo a temida Espanha na final por três tentos a zero. Seria a hora de mostrar aquele ótimo futebol novamente. Então, que viesse a Alemanha, ora bolas!

Eu costumava assistir os jogos em Aracaju, porém, naquela semana eu me encontrava durinho da silva, completamente liso, e para minha irritação não seria muito prudente viajar para a capital. Eu ruminava minha decepção de não poder pegar a estrada, sentado ao birô, passeando pela internet no notebook, ouvindo a chuvinha fina cair, quando entrou um jovem rapaz na sala da recepção. Ele disse seu nome e falou que era filho de um homem, fulano de tal, que aparecia esporadicamente para fazer extrações comigo, mas, que tinha tempo que não vinha. Afirmei que lembrava sim do pai dele, mesmo não sendo verdade. Ele disse que queria fazer um tratamento e que começaria naquele dia. Conduzi-o para dentro do consultório e percebi um grande machucado na parte de trás da cabeça dele, na nuca, um corte feio. Um calafrio estremeceu todo o meu corpo. Perguntei o que tinha ocasionado aquilo, ele respondeu que fora um acidente de moto. Acidentes de motos são comuns entre os jovens daqui da região.

Fiz o orçamento — o rapaz estava realmente precisando de um grande tratamento bucal — e disse a ele que precisaria restaurar vários dentes e que também havia algumas exodontias para realizar. Perguntei por onde ele gostaria de iniciar, se pelas extrações ou pelas restaurações. Ele preferiu começar por uma restauração de um dente da frente que o estava incomodando. Falou que tinha arrumado uma namorada e que a menina havia pedido que ele tratasse dos dentes, principalmente daquele. De pronto concordei e realizei o procedimento em uns trinta minutos. O Rapaz pareceu bastante satisfeito com o resultado final.

Na hora do pagamento, para minha surpresa, o jovem deixou pago quase que o valor total do tratamento, um ótimo valor, diga-se de passagem, e pediu que eu marcasse um outro dia para que ele viesse dar continuidade no serviço, o que foi feito prontamente.

Assim que o cliente saiu, ainda sem acreditar naquela sorte, avisei a minha mulher e as minhas filhas que iríamos para Aracaju. Foi uma grande animação. Aquilo só podia ser um bom sinal, pensei. Ledo engano.

Chegamos na casa do meu irmão, em Aracaju, uma hora antes do jogo. Colocamos carne na churrasqueira, compramos umas cervejas e abrimos uma garrafa de uísque que meu irmão tinha em casa. Entre uma golada e outra de cerveja, eu virava uma dose de uísque, queria entrar logo no clima, meu irmão e seus cunhados já estavam bebendo desde cedo. Sei que, quando o jogo começou, eu já estava ficando daquele jeito, animadão. A euforia durou pouco.

Como todos sabem, fomos atropelados por uma carreta ainda no primeiro tempo. Muita gente diz que foi um sofrimento, para mim não foi. Aquilo foi uma execução fria, certeira, feita por um matador competentíssimo, morremos imediatamente, não deu tempo nem de sofrer. Aos vinte cinco minutos da primeira etapa já perdíamos de quatro ou cinco a zero. Já tínhamos a certeza que não dava mais. Só um milagre, acho que nem isso. Era um tal de “lá vem eles de novo…”, “lá vem eles de novo…”, e “gol da Alemanha”, “gol da Alemanha”, “gol da Alemanha”, que a bebida evaporou do meu sangue e a sensação que ficou foi a de um sonho esquisito. Era um misto de incredulidade e vergonha, acompanhado de um formigamento que tomava todo o meu corpo. Nem raiva eu sentia, de tão atônito que eu fiquei. Aliás, não só eu, acredito que todos que estavam na casa, no bairro, na cidade, no estado, no Brasil, na Alemanha inteira, no mundo todo, sentiram o mesmo. Meu irmão, muito puto, gritava que nunca mais torceria para a seleção, minha mulher chamava os jogadores de vagabundos, minha cunhada ria de nervosa, as crianças corriam para lá e para cá indiferentes à tragédia e eu nada falava, para mim aquilo não estava acontecendo, não podia estar acontecendo, era muito bizarro. E aquele assombramento e aquela apatia continuou durante o resto do jogo e seguiu me acompanhando, como uma névoa quimérica, por toda a noite.

Visitei alguns barzinhos da cidade antes de ir para o condomínio onde minha mãe morava, e todos os torcedores pareciam tão perplexos quanto eu. Culpavam o Felipão, culpavam o cone, quer dizer, o Fred, diziam que o Neymar inventou que estava machucado porque sabia o que iria acontecer, e, logicamente, a teoria da conspiração, que o Brasil havia vendido o resultado, rolava solta.

Fui dormir de madrugada, passei a noite me revirando, envolto num sono intermitente cheio de imagens do jogo e do ferimento da cabeça do garoto da restauração. As poucas horas tentando descansar foram bem ruins. Levantei cedo para retornar para Nossa Senhora de Lourdes e a ideia que eu estava sonhando ainda me perseguia.

Sei que fiquei anestesiado por uns dois dias. As cenas dos gols e a voz do Galvão gritando gol da Alemanha rondavam minha mente feito mosquitos em volta da luz. Foi realmente um fiasco Homérico, digno de Copa do Mundo, indigno para uma seleção pentacampeã. Sem dúvida, aquele foi um dia estranho.

Contudo, o mais estranho mesmo, estranhíssimo, diria mesmo inacreditável, foi que o rapaz que pagou praticamente todo o tratamento, na manhã antes daquele sete a um inesquecível, e que só fez uma restauração, não retornou ao consultório para dar continuidade ao tratamento. Quando eu ligava para o número do telefone que ele deixou caia direto na caixa-postal. Fiquei preocupado por um tempo. As semanas foram passando e acabei esquecendo dele.

Seis meses depois, vendo o facebook, parei para ler uma chamada de uma missa de um ano da morte de um rapaz que havia falecido num acidente de moto, morador de um povoado de Gararu, cidade próxima daqui de Lourdes. E advinha de quem era a foto do morto? Isso mesmo, não era a do rapaz que veio aqui no consultório, era de um outro, que eu nunca havia visto. O garoto das restaurações? Esse eu realmente nunca mais vi. Vai fazer quatro anos que tomou doril. Sumiu!

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8 comentários em “Dia Estranho (Jowilton Amaral)

  1. Fabio Baptista
    9 de junho de 2018

    Kkkkkkkkk

    Boa, Jowilton! Esse último parágrafo me enganou, pensei que seria terror e no final dei uma boa gargalhada!

    Não sei exatamente o quanto tem de realidade e o quanto tem de ficção, mas ficou ótimo de qualquer forma.

    Abraço!

  2. Leo Jardim
    4 de junho de 2018

    Show! Crônica gostosa de ler, daquelas quer parecem ser contadas na mesa do bar. A pegadinha do final rendeu uma risada hehehe

    Eu fiquei literalmente branco enquanto via esse jogo. Tinha os ingressos pra final e mantinha a ilusão de poder ver uma final de Copa do Mundo com o Brasil em casa. Fiquei tão tonto naquele dia, que parecia que eu tinha levado um soco mas cara… enfim, um dia para se esquecer, mas que nunca sairá da minha memória.

  3. Rafael Penha
    3 de junho de 2018

    Achei que o conto pouco teve a ver com Copa do Mundo mesmo, a situa;’ao interessante foi a dor rapaz, que podia ser um fantasma, mas no final só havia tomado Doril mesmo. Final bem engraçado ! Grande abraço.

  4. Fernando Cyrino.
    1 de junho de 2018

    Um conto com cara de crônica, uma crônica com cara de conto… Legal a sua história. Revivi aquele dia fatídico através das suas palavras. Ficou bem legal a sua narrativa, apesar da tragédia que vivemos aquele dia. E o fato de ter me enganado ao final, me fez rir aqui. grande abraço.

  5. Gustavo Araujo
    1 de junho de 2018

    Gostei muito do conto, dessa atmosfera fácil, divertida, bastante íntima até. Dá para te imagina contando essa história a um grupo de amigos, incluindo a pegadinha no final. Impossível não rir – mesmo com o resultado do jogo. Parabéns, Jowilton!

  6. rubemcabral
    1 de junho de 2018

    Fala, Jowilton. Divertida e triste a crônica. Gostei. Quem sabe o seu paciente foi preso ou algo do tipo?

    Acho que todo mundo tem uma história sobre esse dia terrível. Eu não esperava que o Brasil ganhasse, feito você, mas nunca pensei numa derrota tão expressiva.

    Se eu fosse culpar alguém, eu diria que não fizemos o dever de casa. Não treinamos o suficiente, apenas contamos com o talento de nossos jogadores e muito pensamento positivo. Pra piorar, a maioria dos jogadores estava extremamente nervosa, errando passes, chorando por qq bobagem, ainda nos primeiros jogos. Um trabalho melhor sobre a pressão de se jogar em casa também teria feito diferença.

    Abraços.

  7. Pedro Luna (@P3droluna)
    31 de maio de 2018

    Hahahaha, boa, Jowilton. Trollagem total esse último parágrafo. Dei boas risadas. Texto bem da hora.

    ps. O principal culpado pelo 7×1, na minha convicta opinião, se chama Felipão Scolari.

  8. Cilas Medi
    31 de maio de 2018

    Culpavam o Felipão, culpavam o cone, quer dizer, o Fred, diziam que o Neymar inventou que estava machucado porque sabia o que iria acontecer, e, logicamente, a teoria da conspiração, que o Brasil havia vendido o resultado, rolava solta. Esse é e será sempre o resultado quando o ‘patrocinador’ é que manda quem vai levar a taça. Vide os 3 x 0 contra a França. Ótimo conto. Abraço.

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Informação

Publicado às 31 de maio de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
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