EntreContos

Detox Literário.

Campeão do Mundo (Fernando Cyrino)

Levanta-se incomodado. A caminho do banheiro, inseguro, arrasta os pés. Atenção que precisa tomar a toda troca de empregada. O calombo dolorido na canela esquerda é prova da última substituição. “Culpa da vaca atual que, igual às outras, não tem nenhum cuidado em repor os móveis aos seus exatos lugares e que já a devia ter mandado pastar”. Range entre dentes, enquanto rumina a ideia de se pôr marcas no chão, com a localização correta para os pés da mobília.

No escuro da cegueira, sem a mulher por perto, que isto mais nunca haveria de querer, resigna-se. Impossível manter o apartamento sem a invasão semanal da arrumadeira, da mesma maneira que ninguém seria capaz de aguentar por um tempo, razoável que fosse, suas manias e humor do cão. A conta das que tinham passado por ali depois que ela, fatal, fora embora, era feita nas cicatrizes de pés e pernas.

Com o rojão que espoca na favela por perto, chega a lembrança da copa próxima. Não é que tinha voltado a gostar de futebol? A radical implicância com a bola aconteceu porque o esporte se tornara simples negócio. “Amor mesmo que é bom, de se jogar por prazer e paixão, esse tinha acabado fazia tempos”. Era esta a explicação que se concedia para a desilusão havida, sem negar que mesmo no passado tivesse existido um ou outro atleta mercador. Definitivo que não levava em conta a coincidência da chegada da cegueira ter ocorrido junto com o desengano com a bola.

Quem sabe não tenha sido o baque surdo dela batendo, de vez em quando, nas paredes da quadra numa escola das vizinhanças, trazendo à imaginação lances, ao ouvir a algazarra das crianças, que fez retornar o amor antigo.

A empregada, uma delas, quando repreendida, sussurrara e elas pensam que cego é surdo: “só mesmo um bruto assim para viver num lugar tão escuro e triste”. Foi o que disse e de imediato rebateu o “vai pastar, vaca prenha”. Ela bateu a porta da cozinha aos prantos, sem nem receber a última diária. “O banco de reservas está quase vazio”, era o que lhe repetia o porteiro, também agenciador de mão de obra, no alerta da dificuldade crescente de reposição, ainda mais para ele, ao ser acionado pelo interfone quando dos cartões vermelhos de cada faxineira.

Nunca fora de ataque. Era beque e os sonhos de jogar na frente ficaram perdidos nas sombras do adolescer. Mesmo com gente melhor para ser escalada, raríssimas vezes permaneceu no barranco à beira do campo. Razão de que a cobiçada “Número Cinco – Oficial”, apesar de já muito sofrida pelo mau trato de tantos pés e o pó do chão, era dele. Substituí-lo era correr riscos de que se queimasse e saísse para mais além ainda do campo, indo embora para casa e deixando-os sem bola. Comitivas de atletas, aflitos por uma pelada, costumavam convocá-lo. Nesses momentos, saía rodeado feito capitão em hora de receber taça, peito estufado, sorrindo com o troféu redondo e ensebado para proteção do couro debaixo do braço.

De time mesmo, apesar de que tinha o seu de preferência, nunca curtira grandes apreços. Prazer era do jogo em si. Só importava que houvesse craques. Agora, paixão verdadeira, que fazia ferver o sangue e dar tremura no corpo, era coisa de acontecer só com a Seleção. Esteve no Maracanã, final de 50. Assistira a tudo. O título, tão sonhado se esvaindo nas lágrimas da criança desentendida de se poder acontecer desgraça tão grande. Assistira pela televisão, ainda que somente conseguisse perceber vultos, a última, a de 82. Daí em diante, ao mesmo tempo em que avançava célere, numa das pontas, a escuridão dos olhos, corria também, pela outra, a crescente descrença com os rumos tomados pelo futebol.

“Só se quer dinheiro”, tinha escutado da vaca de plantão, que ao invés de cumprir com a obrigação, ficava mugindo ao telefone com alguma outra bovina irresponsável. Ela contava ter se emocionado com o gesto do goleador novo do seu time: ‘Fez o gol e beijou o escudo na camisa’. Tremendo dum mercenário. Na temporada que vem estará lambendo outro distintivo, com a mesma cara com que babujou no da equipe que lhe pagara uma baba para jogar nesse ano”.
 
É o que fala sozinho enquanto, automático, balança o corpo na cadeira ouvindo mais os chiados, do que os acordes do long play da coleção de música clássica. O sono foi chutado para distante e há que se aproveitar a quietude da madrugada. Em breve, hordas de bárbaros invadirão o colégio próximo. No lusco fusco da consciência, nem nota que Mozart adormecera no disco que continua rodando. Acolhendo de volta e amortecendo no peito o longo passe com a bola do sono, também dorme.

E não há véu nenhum nos olhos. Enxerga límpido como uma tarde azul de junho, faz tanto tempo. O estádio agora é só dele. Vê tudo. Bem diferente daquele domingo quando, espremido na arquibancada, só avistava de se olhar mesmo uma faixa no meio de campo e um pedaço da trave direita.

Passa Gighia correndo com a bola. Bigode que chega junto e lhe fecha o ângulo. Da linha de fundo o uruguaio cruza. A bola voa alta na área e Barbosa salta socando-a longe, como se exorcizasse para bem distante da memória a tristeza longínqua de um país inteiro. O inimigo continua no ataque, mas a defesa pátria é um bater e rebater infinitos. Barbosa, santo de altos milagres, parecendo ter doze pés e mãos na garantia do empate. O estrilo do apito fecha o jogo e da goela rouca do Maracanã de sonho, sai o berro imenso do menino e dos duzentos mil em delírio. Somos campeões do mundo.

Abre os olhos opacos e está sorrindo como há muito não era capaz de. A frase ecoa forte diante de poucas janelas iluminadas: “Põe mais uma estrela na Amarelinha, Brasil!”.

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22 comentários em “Campeão do Mundo (Fernando Cyrino)

  1. Fabio Baptista
    9 de junho de 2018

    Oi, Fernando.

    Eu não estava gostando do conto, até a metade mais ou menos. Depois acho que comecei a entender melhor e consegui me envolver mais. Eu imagino a tristeza que deve ter sido em 50. E quantas vezes Barbosa não afastou a bola nos sonhos de quem acompanhou a derrota.

  2. angst447
    3 de junho de 2018

    Apesar de não apreciar muito o futebol, sempre me empolgo com o clima gerado em época de copa. O protagonista, cego e ranzinza, desperta um misto de piedade e irritação. Vai saber que dissabores o tornaram tão rabugento. O entanto, no âmago de suas memórias, bate um coração descompassado de alegria pueril. Revive uma final de copa, em uma versão mais feliz para os brasileiros. Muito boa a caracterização do protagonista, assim como as analogias futebol/cotidiano doméstico. Parabéns pela ótima narrativa!

  3. Leo Jardim
    2 de junho de 2018

    Muito tocante. Quando as pessoas dizem que não gostam de futebol eu sinto pena, pois elas dificilmente entenderão momentos como esse que ele imaginou. Um texto que me comoveu pelo personagem cego e ranzinza e me arrebatou pelo final. Parabéns!

    Ps.: para não dizer que só elogiei, a premissa do velho em sofrimento no fim da vida é um tanto batida, mas geralmente funciona e, neste texto, encaixou como uma luva.

    • Fernando Cyrino.
      3 de junho de 2018

      ô Leo, ainda na lamentação de não ter podido estar com vocês, tô aqui pra lhe agradecer o carinho para com o meu conto. E esse ps pra mim soou também como um elogio, sô. grande e agradecido abraço, Fernando.

  4. Fernando Cyrino.
    31 de maio de 2018

    puxa, Marco Aurélio, que alegria receber um comentário assim. Fiquei todo feliz aqui. Você voltar e já ir elogiando a minha história. Isto não tem preço. abraços agradecidos.

  5. Pedro Luna (@P3droluna)
    30 de maio de 2018

    Gostei do personagem. A sua rabugice foi bem delineada. Particularmente o meu parágrafo preferido foi o penúltimo. Achei uma ótima narração futebolística, estilo as melhores crônica esportivas. Simples e imaginativa. Curti o texto.

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      obrigado pelo seu comentário. Fico feliz que tenha gostado da minha história e curtido. Grande abraço.

  6. Tamires
    30 de maio de 2018

    Que maravilha de texto. Gostei muito!

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      puxa, Tamires, fiquei feliz que tenha gostado. Obrigado pelas suas palavras. Abraços, Fernando.

  7. José Américo de Moura
    30 de maio de 2018

    Esse velho cego me faz lembrar do meu avô Américo Moura, do qual sua esposa, sua , não do meu avô, já deve ter lhe falado. Cego que era nos tempos da copa de 50, ele ouviu pelo rádio de sua filha a tia fia, uma dos poucos felizardos que possuíam um rádio naquela cidade. Ele falava dos jogos como se estivesse ido ao Maracanã. Falava do gol que o fdp do Barbosa tinha papado, um frango dizia ele. Parabéns amigo Fernando, grande escritor, gostei muito do seu conto.

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      olá, Zé. Que legal receber este seu comentário. Obrigado. Vou saber do povo daqui sobre o seu avô. Abraços agradecidos, fiquei feliz por ter gostado.

  8. Antonio Stegues Batista
    30 de maio de 2018

    Muito bom! Parabéns, Cyrino

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      obrigado, Stegues, partindo de você, sempre muito crítico, este comentário ganha ainda mais sabor. abraços, Fernando.

  9. Carmelita
    30 de maio de 2018

    Gostei muito Fernando. Parabéns pelo texto!👏👏👏👏👏👏

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      oi, Carmelita, que bacana que tenha gostado da minha história. Deixou-me feliz. Abraços agradecidos, Fernando.

  10. rubemcabral
    30 de maio de 2018

    Ótimo conto. Muito inspiradas as analogias futebolísticas como “cartão vermelho”, “dribles”, etc. Triste, mas muito bonito tbm, em especial a final de 1950 desta vez com final feliz para nós.

    Abraços.

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      olá, Rubem, obrigado pelo seu comentário. Deixou-me aqui todo feliz. Abraços. Fernando.

  11. Gustavo Araujo
    29 de maio de 2018

    Um conto incômodo e desconfortável na melhor acepção dos termos. Um homem, pelo que se vê, já em idade avançada, rabugento, ranzinza, desgostoso com a vida, passa por um momento de epifania ao recordar, ou melhor, ao imaginar como teria sido a alegria pela vitória em 1950. O êxtase realizado em lugar do sentimento lúgubre que entrou para a História. É um belo ensaio que brinca com os extremos das emoções. Eu poderia dizer – até porque o texto dá essa liberdade – que essa sensação de desapontamento também aconteceria em 1982. Mas é a primeira decepção que marca. E por isso, enquanto fato a forjar a identidade nacional, a derrota de 1950 é imbatível. Parabéns pelo conto.

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      com certeza, amigo, que esta sensação se repetiu em 82 (e esta eu vivi). Bacana ter feito esta comparação. Grande e agradecido abraço, seu comentário tem um valor todo especial para mim.

  12. Regina Ruth Rincon Caires - Caires
    29 de maio de 2018

    Quando comecei a leitura, instintivamente, senti piedade. Um incômodo danado com a limitação que a cegueira proporciona, e depois, com o mau-humor do cabra sempre crescendo, fiquei um pouco irritada. Coisa de feminista, só pode ser… Mas, aí, a gente vai pegando gosto, tropeçando na poesia, enroscando os pés nas lindas construções que exalam sentimentos, e, quando vê, cai de boca na belezura do texto.

    É. Contou um momento da vida, mas reviveu ela toda. Que o diga o nosso Barbosa. A morte o pegou duas vezes.

    Pérolas:

    “O banco de reservas está quase vazio”
    “…quando dos cartões vermelhos de cada faxineira.”
    “O sono foi chutado para distante e há que se aproveitar a quietude da madrugada.”
    “Acolhendo de volta e amortecendo no peito o longo passe com a bola do sono, também dorme.”

    E, particularmente, retrata o que seria o desejo (do menino) e de todo brasileiro naquele triste 1950:

    “A bola voa alta na área e Barbosa salta socando-a longe, como se exorcizasse para bem distante da memória a tristeza longínqua de um país inteiro. O inimigo continua no ataque, mas a defesa pátria é um bater e rebater infinitos. Barbosa, santo de altos milagres, parecendo ter doze pés e mãos na garantia do empate. O estrilo do apito fecha o jogo e da goela rouca do Maracanã de sonho, sai o berro imenso do menino e dos duzentos mil em delírio. Somos campeões do mundo.”

    Parabéns, Fernando Cyrino! Estou comovida…
    Abraços…

    • Fernando Cyrino.
      31 de maio de 2018

      puxa, Regina, não imagina o quanto seu comentário me deixa feliz. Obrigado, amiga. Legal demais ter sacado do texto o que mais curtiu. E, olha, concordo totalmente que o Barbosa pagou com a morte duas vezes… e a sua primeira morte durou muitos e muitos anos… O país devia pedir perdão a ele, eu acho. Abraços.

  13. Marco Aurélio Saraiva
    29 de maio de 2018

    Rapaz… eu ando um pouco ausente do Entre Contos… confesso que faz tempos que não lia texto bom assim. Quanto sentimento! E quanta habilidade na escrita! As imagens são tão bem elaboradas que a leitura é de arrepiar. PARABÉNS!! (como sempre)

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Publicado às 29 de maio de 2018 por em Copa do Mundo e marcado .
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