Som de violência, bate-estaca, britadeira, machuca os ouvidos. Podia ser ritmo de rap, de funk, mas são máquinas trabalhando, derrubando bestialmente casas e passando por cima dos homens. Podia ser cena de filme de ficção futurista, mas é hoje, aqui e agora. O sol é quente, a gente não vale nada e a poeira do chão está subindo. Não é arrasta-pé de forró bacana. Podia ser. As pessoas ali também gostam de dançar. Mas não é música, é a poeira da miséria, do abandono, a poeira que cobre a lente da minha câmera e mostra para o mundo o poder perverso soterrando os já oprimidos. Mundo cão esse que enterra sorrisos tão impunemente.
E as pessoas contam que já se vão muitos anos de luta insana para permanecer ali na Vila Autódromo, nesse lugar que teimam em chamar de lar. E agora minha câmera já era um enorme cemitério de sorrisos, e de mãos amarradas que um dia cavaram seu próprio destino, e de pés que um dia pisaram a terra com orgulho, mas que já já se perderão no mundo, no tempo, sem registro, vão virar arquivo-morto, sem direito à lápide ou plaquinha inaugurada por político.
A poeira sobe, engasga na goela e tenho um acesso de tosse. O pó cobre a pele da gente, enche os olhos de lágrimas. Penso que podiam ser lágrimas de alegria, de vitória. Lágrimas olímpicas de orgulho, de quem levanta um troféu, ou pendura uma merecida medalha no pescoço. Mas na verdade é o choro de quem já não vence a tanto tempo que se esqueceu. Se esqueceu que não é espírito olímpico o que move aquelas máquinas, é só dinheiro, cobiça, poder. Que a medalha quem ganha é quem compra e vende, é quem aceita a barganha. Mercadores do templo. Negociantes das almas dessas famílias sem importância. E são tantas, afinal…
Enquanto isso, cartazes de Crepúsculo sobre paredes em ocres ruínas, mostram que ali viveu uma adolescente, certamente tem a idade da minha filha, cheia de sonhos, de fábulas, uma jovem que acreditou num futuro melhor amanhã. Que futuro tem ela agora? Pra onde foi, que deixou os cartazes da ilusão pra trás?
Sigo caminhando e filmo um ursinho de pelúcia pendurado num varal imundo, que me faz pensar: pra que lavar, se antes mesmo de secar, já vai estar coberto de poeira outra vez? Essa poeira fina que envenena lenta e irreversivelmente o íntimo daquela pessoinha, que gosta de brincar com um urso, tão pequenina ainda, ainda tão cheia de possibilidades. Que esperança é essa que não morre nunca?
O barulho constante da maquinária lembra diariamente que não existe merecimento, não há saída, não há futuro, a não ser: recomeçar. Recomeçar a vida em outro lugar, remover as lembranças, reconhecer o novo terreno, tentar respirar, manter a retaguarda, engolir a retórica, o bla bla bla de quem não sabe o gosto que a poeira tem.
Porque do outro lado da lagoa de Jacarepaguá é o paraíso, mas aqui na poeira é Sarajevo.
Tenho um nó na garganta. Falta de ar. Penso na minha casa, minha família, banho quente, comida e carinho depois de um dia de trabalho duro.
O que significa, afinal, a palavra lar?
Conforto? Liberdade? Dignidade? História? A concessão de um prefeito? Ou a assinatura de um juiz? Memória? Lar é intimidade, é consolo, é amor e amante. Lar é cúmplice, é filho, mãe, pai, avô. Lar é o templo. Onde se reza e se paga pelos pecados, no silêncio da cama, nas contas a pagar e na panela inútil. Lar é orgulho da parede construída com o próprio suor, é a base da família.
Mas naquela Sarajevo, lar é um amigo muito querido, que morreu.
Sim, há algo de panfletário no texto, mas isso está longe de ser um defeito. Numa crônica, assim como em qualquer produção literária, na verdade, o autor precisa tomar certas posições. Isso, agradará alguns e fará com que outros torçam o nariz. O que é “Olhai os Lírios do Campo” e “Os Capitães da Areia” senão libelos contra o capitalismo? Sem querer tomar parte deste ou daquele viés ideológico, creio que o bom texto é aquele que leva o leitor a pensar, quer concorde com as ideias defendidas, quer delas discorde. É o caso aqui, em “Lar Cidade Morta”, em que se denuncia o abandono e a miséria de quem está do outro lado da cerca. Um texto pungente, que funciona como um tapa na cara. Parabéns!
Obrigada, chefia!
parabéns Juliana, aqui em Portugal discute-se muito se as “crónicas-noticias-descrição” devem ter a “impressão digital” do autor e cada vez mais todos os textos (jornais e tv) são “formatados” parecendo respostas a encomendas para entidades amorfas, por vezes iguais em diversos meios de comunicação. Aqui, quando queremos ler algo interessante temos que ir a sítios muito específicos, temos que fazer uma filtragem permanente. Este texto é um belo exemplo para essa discussão. Proporcionaste-me uma excelente leitura com esta escrita saída do teu lápis. obrigado e parabéns
Caro Vitor, não se iluda porque aqui também temos que passar o filtro permanentemente… Fico muito lisonjeada com seu comentário, você é claramente uma pessoa sensível. Não sei se você conhece a situação da comunidade da Vila Autódromo, mas é uma gente de muita coragem, a maioria construiu as suas casas com o próprio suor. Chegaram a receber título de posse oficial do terreno por um Governador no passado, e agora anularam o documento e, sem mais nem menos, eles estão sendo despejados, numa usurpação escancarada da prefeitura, para a construção da Vila Olímpica. Alguns atletas chegaram a pensar em boicotar os jogos por causa disso. Mas, como sempre, a corda arrebenta do lado mais fraco. E em pouco tempo as pessoas esquecem, a mídia não dá a notícia, quando dá é assim, de maneira “formatada”. Minha utopia é que um dia a literatura possa mudar o mundo… Obrigada e um grande abraço!
Uma ótima crônica!
Trata de um assunto localizado, mas consegue, com a beleza em que os assuntos cruéis são tratados, ampliar o discurso de forma que funcione mesmo para aqueles que não sabem sobre o problema em questão: a remoção da Vila Autódromo. É um texto sobre opressão e oprimidos e por isso a comparação com Sarajevo é tão bem encaixada, deixando a situação ainda mais triste.
A técnica utilizada é muito apurada, conseguiu suavizar as imagens terríveis com frases belas, sem deixar o texto enfadonho. Acredito que ficou na medida.
Dá pra criticar o lado planetário da crônica, pois muitos defendem que esse tipo de coisa é necessário em prol de um progresso (pelo “bem maior”). Como não não é o meu caso, ainda mais no caso específico, o texto me emocionou e revoltou. Ou seja, cumpriu o objetivo.
Parabéns!
Leo, muito grata pelo comentário! Eu também me emocionei e me revoltei. O q pude fazer por eles foi escrever. Perdi todo o interesse na Olimpíada quando conheci a história deles. Me identifiquei, de alguma forma, com aquele sentimento de “sarajevo”. Tô muito feliz que as pessoas estejam gostando do texto, se revoltando e se emocionando também. Grande abraço!!!
Juliana,
A crônica, nos grades jornais da atualidade, não por acaso vem perdendo o tom de abordagem e questionamento da realidade social, em prol de umas cores intimistas, em que o cronista traça reflexões que em nada abalam o discurso social dominante. Fala-se de situações e sentimentos altamente subjetivos, que funcionam como um quadro na parede: admira-se. Até podem arrancar observações do tipo “esse artista é realmente um talento”, mas é fundamentalmente uma peça decorativa a crônica que se pratica hoje na grande mídia. Serve para decorar o espírito, para nos enganarmos quando nos emocionamos com frases de efeito, mas sem profundidade que ultrapasse o ego e vá para a rua.
A sua crônica segue o caminho oposto. Felizmente. Embora existam passagens bastante trabalhadas do ponto de vista literário, a dureza da situação dos moradores de Vila Autódromo está em seu texto. Ou, por outras palavras, o uso de recursos estilísticos não funcionam no sentido de amenizar a tragédia. Antes pelo contrário, na medida em que se o texto fosse francamente panfletário a dimensão humana muito provavelmente estaria perdida.
Não acho que a crônica esteja panfleto, como pode parecer. Ocorre é que o leitor está muito acostumado a certo discurso, e quando surge um contra-discurso este é imediatamente tachado de político, panfletário etc. Como se ao falar das vaguezas que sitei no início o autor não fosse profundamente político.
Eduardo, muito obrigada pelas palavras. Não tenho muita experiência escrevendo crônicas. Pra falar a verdade, passei muito tempo sem entender completamente o que significava esse gênero… rs. Pra mim, não tem como falar da realidade sem mergulhar fundo no que sinto quando vejo o mundo. Talvez por isso eu seja mais adepta a escrever contos. Eu realmente não pensei em política quando escrevi o texto, só pensei na questão humana da situação. Abraço!
Você me fez lembrar do grande cronista João do Rio em “A encantadora alma das ruas”, que nos leva a passear por ruas cariocas traduzindo as grandes tragédias e divisões de classes através de imagem marcantes. Poucos têm esse dom e você me surpreendeu. Eu chamo de “repórter de sentimentos”. O texto pode parecer planfetário, mas o que é um cronista que não assume posições?Parabéns.
Catarina, q delícia seu comentário. Eu adoro o João do Rio. Em 2013, adaptei, junto com meu amigo Quiá Rodrigues, um conto dele para um filme de animação. O conto era “O Homem da Cabeça de Papelão”, não sei se vc conhece. É bem panfletário, mas é aquela coisa de realmente definir de que lado vc está, nessa guerra diária q é a nossa sobrevivência. A situação dos moradores da Vila Autódromo realmente me comoveu muito e eu estarei sempre do lado deles. Muito obrigada pelas palavras! Abs!
Ótima crônica!
Triste por ser a representação fiel do que acontece, especialmente aqui no Rio de Janeiro, onde fomos obrigados a engolir sem água tudo que diz respeito as Olimpíadas.
Esse trecho é excelente “E agora minha câmera já era um enorme cemitério de sorrisos, e de mãos amarradas que um dia cavaram seu próprio destino, e de pés que um dia pisaram a terra com orgulho, mas que já já se perderão no mundo, no tempo, sem registro, vão virar arquivo-morto, sem direito à lápide ou plaquinha inaugurada por político.”
Parabéns!
Que bom q vc gostou, Rafael. Eu te admiro como escritor e sua opinião realmente me interessa! Eu sempre tendo a estar do lado dos oprimidos, dos q não têm amparo, mas têm coragem. Eu vi o documentário “Se Essa Vila Não Fosse Minha”, do Felipe Pena sobre a situação da comunidade, e fiquei muito emocionada. A crônica partiu dali, daquela gente tão cheia de coragem pra brigar, mas tão desamparados diante do “capital olímpico”, sem justiça alguma… Obrigada pelo comentário!
Não sou muito de crônicas, mas os textos que fazem pensar, como esse, aliado à melancolia e sentimentos escavados do baú das lembranças, bem como a escrita suave, cativa. O cenário é bem vívido, mesmo sem a imagem ilustrativa. Triste e realista.
Obrigada Brian. Eu tb sou mais de contos, mas essa eu não pude deixar de escrever, pq a situação daquela comunidade me emocionou muito. Não tive como não me envolver de alguma forma, nem q fosse escrevendo essa crônica. Abs!
Que linguagem poética para retratar um ambiente tão decadente. Parabéns pelo texto!
Obrigada! A poesia, afinal de contas, é a recompensa que resta, não é?
Gostei imensamente de seu “trabalho”.
História pungente que consegue colocá-lo
como o personagem sofredor da crônica.
Quando digo trabalho é porque não sei se
propositalmente ou se por mera
“criação minha” talvez alguma vontade de
querer que dê certo:
-Sua crônica lida do Início para o final retrata
o mesmo que lida do final para o princípio.
Parabéns
Jose O.
Que legal, José! Nunca tinha pensado em ler do final pro início. Muito interessante essa sua perspectiva! Eu escrevi porque fiquei muito emocionada quando soube da situação daquela comunidade, e precisei escrever pra desabafar a minha própria angústia, imaginando a angústia deles. Foram mesmo sentimentos muito fortes. Obrigada pelo comentário.
Belo texto, comovente.