EntreContos

Detox Literário.

Último dia antes do próximo (Vitor Leite)

Na escuridão do quarto só havia o movimento silencioso dos pequenos traços de luz vermelha, que ritmadamente desapareciam sendo constantemente substituídos. O mundo começava sempre que o 6:59 se transformava em 7:00. O silêncio acabava interrompido por um besouro infernal e começava o lançamento da mão, a mais pesada, sobre aquele aparelho demoníaco, que, todos os dias, parecia conseguir esconder o botão off. Voltava o silêncio, logo interrompido, novamente por aquele som. Trrrrrr Eis o som do mundo a ruir, todo a cair.

Decidido a cair no mundo arrasta-se para fora da cama, passando por baixo do chuveiro e pendurado no transporte público, vai, junto de tantos outros para o trabalho. Porque vão todos para o trabalho, todos os dias e o trabalho nunca vem ter com cada um deles? Sim, um trabalho de verdade, daqueles onde não se faz nada e se ganha uma fortuna. Chega de sonhar. Naquele momento são todos macacos pendurados a ir, até voltar como preguiças, agarrados ao que podem naquele metro. Ir e vir, como ondas do mar.

Como sempre o dia corre insignificante até aquele momento em que acende o cigarro na ponta do outro. O sol cada vez mais distante. Aproveitava sempre aquele momento da morte do dia para fazer um resumo dos acontecimentos, antes de sair do último piso do edifício mais alto da cidade. Sabe que é sempre o último a ver o por do sol, talvez o único que, naquela cidade, para e assiste àquele momento solene. Enquanto todos correm para casa, embora sempre parados naquelas filas intermináveis de carros e cheiro a gasolina queimada, fuma o seu mais doce cigarro do dia a rever os assuntos que tenham sido arrumados, e o sol vai, segue o seu caminho, velozmente.

Não, não preciso de nada, obrigado, podes ir, até amanhã, o quê?! Ah… jantar?! Não, hoje não, estou cansado, quero ir para baixo do meu chuveiro, até amanhã! Ouvia os passos do amigo a afastar-se e começou a fazer discos com o fumo, perfeitos círculos furados. Riu-se ao lembrar-se como ecoava a voz da mãe, Isso mata-te! Sim, morro mais um bocadinho, disse para si mesmo. Sorriu e continuou a brincar com aquela fumaça. Decidiu ir para a rua sentir na face a aragem de início da noite.

Sentiu uma sensação estranha de andar sozinho na cidade. Estava habituado a andar sozinho em casa, mas, na cidade não era normal, muito menos sozinho. Haveria futebol na televisão? Teria o relógio parado e seria muito mais tarde do que lhe dizia aquela caixa de números? Bem, o sol nunca se atrasa e quase ainda se ouvia o eco do seu mergulho na água do mar. Os candeeiros de rua começavam a ter presença. Conseguia ouvir a sua respiração de tão sozinho que ia, nem atletas de rua, nem cães a passear os seus donos, nada, somente ele e a sua sombra, que rodava à sua volta conforme se aproximava ou afastava dos candeeiros. Hoje, parecia muito mais negra a cidade, sim menos cor e mais deslavada.

Começou a imaginar o que veria se conseguisse atravessar aquelas paredes desinteressantes. Talvez um homem a dormir no sofá enquanto a mulher lava a louça, ou seriam dedos a correr sobre pequenas letras a escrever para quem não existe, sorriu, não queria ficar deprimido. Imaginou corpos nus encostados no lado interior da parede, bocas sôfregas, uma da outra. Corpos a deslizar na parede, a procurar um chão ou um tapete voador. Uma luz pequena a reflectir no suor que untava as suas peles. Fechou os olhos e suspirou. Pareceu-lhe ouvir outro suspiro que não o da sua boca. Seriam ais e sorrisos daqueles corpos que se misturavam em um só. Fechou os olhos imaginando-se a entrar em casa, não na sua. Uma qualquer. Um silêncio tal que iria conseguir ouvir a roupa a cair do seu corpo. Já nu, em direcção ao chuveiro, via corpos, um volume de pele onde se misturavam corpos. Fechava os olhos e via corpos entrelaçados como dedos em mãos de apaixonados. Corpos e mais corpos, conseguia sentir o cheiro a sexo trazido pelo vento. Abriu os olhos e sentiu-se envergonhado, era somente o cheiro a maresia.

Decidiu que não podia ficar sozinho naquela noite. Pôs a mão ao bolso, parou. Decididamente tinha que parar. Tinha que olhar para o lado, procurar sons e sabores, queria ouvir vozes sem ter que as imaginar, saborear a vida real. Olhou para as pontas dos dedos, isso mesmo, tinha que tocar outro lado da vida. Tou? Olá, sim sou eu, vem rápido, sim corre… Ah! Pronto fica para a próxima, está bem desculpa… Adeus!

Pronto, já sei que vou acabar a noite num fundo de copo seco, será mais uma! e olhou para cima. No pano daquele enorme guarda-chuva ainda conseguia ler aloc-acoc. Pôs a mão ao bolso e tirou os cigarros, sorriu ao pensar És o último antes do próximo, disse para si e fechou os olhos, voltando a ver corpos a deslizar em cima de corpos, não via homens nem mulheres, nem velhos nem novos. Corpos e mais corpos com as suas imperfeições, os seus cheiros, a sua cor. Esticou as mãos como se fosse possível tocar, misturar-se, ser um outro corpo naquele emaranhado de peles. Suspirou.

Na realidade o mundo começa sempre que o 6:59 se transforma em 7:00. O silêncio acaba… e ele, sozinho, avança para o mundo. Sozinho.

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19 comentários em “Último dia antes do próximo (Vitor Leite)

  1. Fabio D'Oliveira
    17 de outubro de 2015

    ☬ Último dia antes do próximo
    ☫ Di Adia

    ஒ Físico: O toque português impossibilita uma avaliação mais profunda de minha parte. Fico nas impressões que a leitura me causou. A narrativa, por vezes, pareceu-me um pouco travada. Em outros momentos, no entanto, fluiu naturalmente. A estrutura também me incomodou um pouco. Mas o autor parece ter encontrado seu próprio estilo. E isso indica talento, na maioria das vezes.

    ண Intelecto: É uma estória rasa. Não há muito o que falar dela. O leitor acompanha um dia da vida do protagonista, uma pessoa desconhecida, e não existe nenhuma reflexão no enredo. Apenas acompanhamos. Olhamos de perto. Nada mais.

    ஜ Alma: Fiquei tão confuso nessa parte quanto no Físico. O texto fala do dia a dia do protagonista, mas parece que o próprio personagem quebra sua rotina. Não sei se isso era um costume dele ou algo semelhante. A falta de profundidade da estória impossibilita esse tipo de avaliação. Sendo assim, fiquei no meio termo. Sobre uma continuação, não me senti muito atraído.

    ௰ Egocentrismo: Em linhas gerais, não gostei do conto. No entanto, o tom poético me conquistou. Na parte final, então, adorei a leitura. Mas somente depois da terceira vez.

    Ω Final: Sou incapaz de avaliar o Físico do texto por completo. No geral, a narrativa oscilou um pouco, mas o tom poético compensa. A estória está rasa, sendo possível nos aprofundar apenas no que está acontecendo no momento. Não há algo maior a ser explorado. Fiquei confuso sobre a adaptação ao tema, porém, uma continuação não me pareceu atraente.

  2. Renato Silva
    30 de setembro de 2015

    Olá.

    Olha, não me empolguei muito com o conto, não senti vontade de ver uma continuação. O conto tá bem escrito, você usa bem as palavras, mas a estória em si não me envolveu. Acredito que você retratou o cotidiano tão bem, que ele acabou me parecendo um tanto chato 😛

    Boa sorte.

  3. Gustavo Aquino dos Reis
    28 de setembro de 2015

    Conto que aparenta ser mais um desabafo de seu narrador. Gostei da roupagem intimista, do viés melancólico da narrativa. Porém, achei que faltou um enredo melhor elaborado, mais arrebatador por assim dizer – muito embora tenha plena dimensão do restrito número de palavras do certame.

    Parabéns pelo trabalho.

  4. Thata Pereira
    28 de setembro de 2015

    Eu estava curtindo no começo, mas acho que o conto precisa de mais revisão. Tem alguns acentos faltando e a repetição da palavra “corpos” me incomodou muito. Não parece que o conto está terminado, parece um primeiro rascunho. Minha dica é que continue escrevendo sempre e tente encorpar a história, sem entregar tudo de mão beijada ao leitor.

    Boa sorte!

  5. Bia Machado
    28 de setembro de 2015

    Emoção: 1-2 -Não me envolveu, apesar de eu ter achado bem escrito, poético em algumas partes, até. Gostei do texto mesmo não tendo me envolvido muito com ele, mas faltou algo que “quebrasse” a linearidade dele.

    Enredo: 1-2 – Nada elaborado, muito simples, não há um conflito, além do narrador com ele mesmo, porém não é suficiente, na minha opinião, de prender a atenção, de envolver o leitor para além disso.

    Construção das personagens: 1,5-2 – O narrador é bem construído para o cotidiano que foi abordado no conto. Merecia um enredo mais complexo. E havia espaço para isso.

    Criatividade: 1,5-2 – Podia ter sido mais elaborado, repito. Mas foi criativo em algumas construções que deram um tom poético.

    Adequação ao tema proposto: 1-1 – Bem adequado, com certeza.

    Gramática: 1-1 – Está ok, mas em algumas partes há palavras repetidas muito próximas, mais do que deviam, como o “cair” no final do primeiro parágrafo e começo do segundo, a palavra “trabalho” no segundo parágrafo e a palavra “corpos” no sexto e também no 8° parágrafo, nada que revisão mais atenta não resolva.

    Trecho destacado: “Aproveitava sempre aquele momento da morte do dia para fazer um resumo dos acontecimentos, antes de sair do último piso do edifício mais alto da cidade. Sabe que é sempre o último a ver o por do sol, talvez o único que, naquela cidade, para e assiste àquele momento solene.”

  6. Felipe Moreira
    27 de setembro de 2015

    Texto lusitano? haha Muito bom. Gostei desse ambiente de crônica, um movimento cíclico que poderia soar repetitivo, mas que no final, achei legal, bem contado, profundo mesmo. Acho que você dissecou bem uma pessoa e o meio em que ela vive. Parabéns pelo trabalho.

    Boa sorte no desafio.

  7. Anorkinda Neide
    26 de setembro de 2015

    Que bonito, Vitor…
    e triste
    e por isso mesmo.. hehe
    Parabéns pelo texto. Me identifico muito, tirando o cigarro.
    Ainda bem que o homem no último andar do predio nao pensou em jogar-se de lá!
    Remeteu-me esta cena a minha juventude, pq meu ex-marido gostava de ver os anoiteceres de uma grande cidade como São Paulo no alto de um de seus predios mais famosos: O copam.
    Gostei demais da lembrança e da viagem poética.
    Obrigada!
    Abraço

  8. Gustavo Castro Araujo
    26 de setembro de 2015

    Interessante a digressão proposta. Chego a pensar que nenhum outro autor há de caracterizar o cotidiano ordinário de forma tão competente. Não me refiro apenas aos atos do protagonista, mas principalmente às suas “viagens”. Sim, acordar cedo, desligar o despertador, tomar o ônibus – tudo isso é conhecido e já foi descrito milhares de vezes, Kid Vinil que o diga! – um retrato perfeito do dia a dia de gente comum, daqui ou de qualquer outro lugar. Mas, o que cativa de verdade nesse pequeno mas instigante texto é o pensar, ou melhor, é o imaginar do protagonista, especialmente no trecho em que está a caminhar pela cidade vazia. Estará vazia realmente ou ele é que a sente dessa forma? É senão um homem invisível e como tal ousa criar a realidade de casas fechadas em sua própria mente, ultrapassando muros e paredes, trazendo à sua própria realidade fatos que jamais viverá. Mais do que invisível, um homem solitário, representante de muitos.
    Nota: 8

  9. Pedro Viana
    23 de setembro de 2015

    Senti falta de algo mais substancial na história.

    Naturalmente, é uma peça bem escrita, bem conduzida, gostei das reflexões sobre a insignificância do cotidiano, mas ao meu ver a história careceu de movimentação. Existem grandes admiradores de contos constituídos apenas por monólogos interiores, como o seu mais ou menos é. Infelizmente, eu não destes admiradores. Minha nota é 5: seria injusto eu dar mais que isso, uma vez que os contos que mais gostei souberam mesclar muito bem monólogos e ação. Abraços e até nosso próximo encontro!

  10. Lucas Rezende
    23 de setembro de 2015

    Olá,
    Muito rica a descrição do dia do personagem.
    Personagem que pode ser qualquer um, não tem nome nem rosto. Gostei muito disso.
    Quando a história se aproxima do final e os desejos do personagem surgem o conto ganha um conflito (que não se desenvolveu) que poderia ser bem explorado em uma segunda parte.
    O conto mostra bem o dia do personagem, sua simplicidade e a forma como acontece todos os dias. Parabéns.
    Boa sorte!

    Nota: 7

  11. pythontrooper
    22 de setembro de 2015

    Um conto bastante fraco, com erros de concordância temporal e repetição excessiva de palavras num mesmo parágrafo. A organização dos parágrafos, inclusive, é confusa.
    Apesar de o tema ser cotidiano, não acontece nada de interessante na história. Ficou insossa.

  12. Maurem Kayna
    17 de setembro de 2015

    O conto remete àquelas manhãs em que acordamos sem vontade de levantar, mas levantamos, vamos pro banho, nos vestimos, juntamos as chaves e quando vamos sair, abrimos os olhos e percebemos que a cara ainda está com as marcas do travesseiro, mas essa impressão só se dá no último parágrafo. Embora tenha achado alguns trechos imprecisos além do que seria útil para causar essa impressão, gosto as oscilações ao longo do texto que culminam com esse fim-recomeçar.

  13. Rogério Germani
    17 de setembro de 2015

    Olá, Di Adia!

    A abordagem do cotidiano através de um mero espectador traz uma análise universal de como o mundo gira dentro de veículos lotados de humanos “zumbis”. Isto é um ponto positivo ao seu conto. O lado ruim, no entanto, é que, caso não haja reviravoltas na trama, a trajetória do personagem situa-se num lugar comum, terreno onde todos caminham iguais.
    Mesmo com sotaque diferente do meu- rsrsrs- pude saborear diversos retratos de meu dia a dia no seu conto.

    Nota 6

  14. catarinacunha2015
    17 de setembro de 2015

    O TÍTULO reflete toda a angustia do personagem (2/2), honrando o TEMA (2/2). O estilo personalíssimo impõe um FLUXO sufocante e solitário (2/2), totalmente adequado à TRAMA (2/2). Se não houvesse a exigência de uma continuação eu daria 10 neste conto, pois ele está perfeito; mas não vejo necessidade de mais nada nele. FINAL sem gancho (0/2). Total 8.

  15. Brian Oliveira Lancaster
    15 de setembro de 2015

    Este texto traz um ponto de vista diferenciado, e apesar de origem lusitana, fácil de compreender. A história é muito boa, mas acho que certas passagens precisavam de uma divisão mais específica, bem como revisão. Trata nitidamente de um cotidiano mais reflexivo, quase depressivo. Neste caso, atingiu o ponto em cheio.

  16. Fabio Baptista
    14 de setembro de 2015

    É um bom conto, de leitura não tão fácil (em boa parte por causa do “sotaque” e também pela falta de marcação nos diálogos).

    Eu gostei (e até me identifiquei um pouco) dessa ambientação urbana noturna, desse fluxo de pensamento e das coisas que ficamos imaginando ao olhar pelas janelas fechadas. Tem uma cena assim no filme “Amélie Polain” (não sei se é assim que escreve), em que ela fica imaginando esse tipo de coisa.

    Como já disse num outro conto e talvez seja a regra no desafio, senti esse texto como uma história fechada… e não desejei ver uma continuação, pelo contrário – fico com impressão que uma continuação só venha por vir, sem muito propósito. Foi meu sentimento ao final da leitura, espero estar enganado. 😀

    – parecia muito mais negra a cidade, sim menos cor e mais deslavada
    >>> esse “sim” pareceu deslocado

    – Seriam ais e sorrisos
    >>> colocaria aspas: “ais”

    NOTA: 8

  17. Rubem Cabral
    14 de setembro de 2015

    Olá, Di Adia.

    Gostei do conto: não há muito enredo, apenas a solidão de alguém afogado na rotina das grandes cidades, mas as descrições estão muito boas e conseguimos nos imaginar na pele da personagem, o que é sempre muito bom.
    Não costumo apreciar muito a “mistura” de narração e diálogo, como usados por Saramago e Rubem Fonseca (discurso indirecto livre?, estou enferrujado), mas no caso específico deste texto não resultou em algo confuso.

    Penso que seria possível “esticar” um pouco mais ou introduzir algum ponto de tensão, pois me pareceu que o conto poderia ter dito mais. Talvez um encontro com uma profissional do sexo ou algo assim, poderia render um “pico” na “curva” do enredo que é um tanto linear.

    Não aprecio muitas repetições e, cada vez que a palavra “corpo” era repetida, me doíam os ouvidos.

    Enredo: 4,0 (0-6)
    Escrita: 3,5 (0-4)

    Abraços.

  18. Tiago Volpato
    14 de setembro de 2015

    Um bom texto. Achei alguns trechos bem inspirados. Gostei da metáfora do macaco e da preguiça no transporte público. Foi uma boa reflexão sobre o cotidiano e me identifiquei em alguns pontos do texto. Só achei que faltou alguma coisa pra gente almejar um segundo texto.
    É isso, boa sorte!

  19. Ruh Dias
    12 de setembro de 2015

    Há alguns erros de pontuação (falta de vírgula). Achei o conto muito descritivo e não prendeu muito a minha atenção,e não consegui me conectar com a personagem principal. Porém, mérito do autor em ter trazido o cotidiano sob uma ótica de amargura e tristeza, talvez até um pouco de raiva. Gostei muito da frase do início “O mundo começava sempre que o 6:59 se transformava em 7:00.”

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Publicado às 12 de setembro de 2015 por em Cotidiano, Cotidiano Meireles e marcado .
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