Eu estava olhando o mar quando um cachorro veio tirar minha solidão. Que instante! Um cão desanuviou minha mente. Balancei a cabeça desacreditada de mim mesma, e ele o rabo de alegria. É bom estar acompanhada e é bom também que cachorro não fale. Às vezes o silêncio é melhor que ver e ouvir passarem os carros com pessoas destinadas. E eu sem sentido algum. Pensando bem… Como os cães são felizes! Logo eu que vivi em tantos mundos “cão”. Muito embora os cães daquele meu mundo não soubessem balançar o rabo. Fitei-o e observei-o novamente. Seus olhos me pediam carinho. Mas como dar afago quando eu não os tenho quase sempre. Mesmo assim afaguei sua cabeça com o pouco da ternura que me restava naquele resto de tarde melancólico. Ele lambeu meus lânguidos dedos. Disfarcei, procurei não mais corresponder aos seus pedidos. Olhei no horizonte, no zênite, no recôncavo da abóbada celeste. Por entre os dedos um punhado de areia fina esvaiu-se, como o tempo das horas numa ampulheta. Olhei o cão e olhei-me fechando os olhos vagarosamente. Pensei nos pedaços que eram resquícios de minha vida. Afundei-me em profundas recordações, reminiscências de uma vida atribulada. Quando expunha a existência de um mundo onde não havia retorno, mas apenas o substancial para o simples viver. Carros zumbem na avenida. Voando para um mundo torto, jogado no escárnio do tempo. Mas o que importa? Se a falsa alegria encoberta uma dor oculta. A mente fétida, a alma poluída, um sorriso amargo, um gosto de fel, um céu negro, um mar sujo. Olho em volta e sinto o ser tenso. Indeciso. Perguntando para si mesmo: qual a razão das coisas? Quem me advoga? Meu pensar? E a razão, em que fundo de poço haverá de estar? Que alma humana aloja verdades? O que importa agora é o vento soprando meu rosto, afastar os cabelos e respirar fundo. Nada há muito tempo não me acompanhara a não ser, roupas, perfumes, relógios, sapatos, brincos… A maquilagem sustenta meu riso, que de base em base se desfaz ao término da noite. E tu cachorrinho o que fazes de tua vida? Ela também é atribulada como a minha? Tu tens nome?,.. Não! Queres um? Deixe-me pensar… Vou dar um nome pra ti… Pacífico! Você me pacificou. Nada mais justo. Sorte dos cachorros não ter que usar máscaras venezienses nem estas estúpidas máscaras do cotidiano que devassam o ser e o sentido. Mas não importa cachorrinho, tu não tens máscaras, nem eu. Tu és Pacífico e eu pacífica. Dá-me um beijinho no focinho… Hum… Hum… Eu me perdi de mim e tu te perdeste de alguém?… Engraçado, e eu que poderia ter dito adeus inconscientemente ao que jamais me veio. Pensando bem, somos dois perdidos numa tarde suja. Tu tiveste a sorte de me encontrar e eu que nem isso quero, encontrar alguém. Ergo o corpo dolorido e saio andando. O mar espraia brisa e vento. Meus pés afundam na areia frouxa… Estou com a boca seca, o peito mole, doendo. Caminho mastigando meu gosto amargo, ouvindo a campainha dos meus tímpanos tocando sem parar. A angústia fazendo do desespero uma faca silenciosa cortando as fatias do medo. Pacífico me acompanha por vinte e sete segundos. O suficiente para me aborrecer. Pois de pacífica eu não tenho nada. Tenho muita impaciência. Então gritei: vá embora Pacífico! Suma de minha vida você também! E fui embora pela esquerda da vida e à direita do mar atlântico.
Olha só, o que temos aqui? Narrativa em prosa poética, cheia de simbologias e com o apelo de um atencioso cachorrinho. Pacífico era o seu nome? Pacífica não era a sua interlocutora, decerto. Ela aproveita a sua presença, o silêncio do animal, o silêncio primitivo, para dialogar consigo mesma, um monólogo que há muito evita. No fim, se irrita com ela mesma, com qualquer reflexão mais profunda em uma tarde sol, e também não quer mais a companhia do cão, que só quis ser companhia para quem parecia tão perdida sem rumo, sem oceano, sem nada. Gostei!
Olá!
É um conto realmente muito bonito, amei o jeito que narrou os acontecimentos. É uma leitura agradável, com muitos significados. E o que gostei também foi mostrar um breve momento na história da vida da narradora, mas que mostra como a narradora é, o que ela sente, entre outros fatores que nos fazem conhece-la. Também traz questionamentos que nos fazem refletir. Tudo escrito de uma forma um pouco poética.
O título também é muito bom. Tenho que admitir que não gosto de títulos grandes, mas desse eu gostei.
Realmente muito legal, parabéns!
P.S: Perdoe-me por comentar tanto tempo depois de você publicar o texto, espero que não se importe.
Olá, Bianca! Que o quê! Não há nada a se desculpar. O que importa é saber que fui lido e que houve certa empatia e entendimento pelo conto. Grato pelos elogios críticos.
Olá, Paulo! Um recorte bastante rico do cotidiano de uma narradora, com seu encontro incomum. Sua escrita é bem interessante, criando várias imagens e despertando simbologias, mostrando um cuidado com a elaboração do texto, que acho muito importante. Além da frase citada pelo Marco, destaco o jogo de palavras Pacífico/ Pacífica, em relação ao oceano Pacífico e Atlântico, ao pessimismo da narradora, ao zero à esquerda. De início não curti tanto o conto ser num parágrafo só, mas talvez combine com a ideia de representar um momento, um sopro.
Olá, Fil, tudo bem!
Grato pelo comentário, fico lisonjeado. Quanto aos parágrafos citados, acredito que ouve algum problema com a transição do texto para a plataforma do entreContos, pois o texto, no original, está subdividido em 03 (três) parágrafos, a ver em:
1) Ergo o corpo dolorido e saio andando….
2) Carros zumbem na avenida…
3) E tu cachorrinho…
Eeeita. Manda um email pro Gustavo Araújo ou pra alguém da moderação que acho que resolve =)
Sua escrita é muito bonita, e o conto é cheio de significados. Gosto de leituras que me fazem pensar. O conto, apesar de ser apenas uma fotografia de um momento – um curto clipe de míseros segundos da vida de Pacífico e da narradora – fala muito.
Destaco o trecho:
“A maquilagem sustenta meu riso, que de base em base se desfaz ao término da noite.”
Profundo.
Parabéns!
Oh, Marco! Muito bacana seu comentário, Grato!