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Bonina – Fernando Cyrino – Resenha (Gustavo Araujo)

Fernando Cyrino tem um segredo. Quer dizer, não é exatamente um segredo, desses que a gente guarda e conta só para quem é muito próximo. Na verdade, o segredo do Fernando está mais para o estilo em que é perito, algo que mantém recluso, sem alarde, sem arroubos de auto promoção. Não que não pudesse se gabar, pois nele, nesse estilo, transita com a tranquilidade dos soberanos.

Refiro-me ao padrão regionalista, típico do sertão brasileiro, que domina a coletânea de contos Bonina, de sua autoria. Em meio à aridez do horizonte de vermelho, Fernando nos arranca da passividade oferecendo-nos uma leitura ao mesmo tempo densa e cativante, com tipos que parecem pinçados da prosa de João Guimarães Rosa.

Lá está o típico homem do interior, com suas crenças inabaláveis, com seus preconceitos, com sua religiosidade exalando pelos poros. Fernando tem a capacidade invejável de reproduzir-lhes as falas, os trejeitos, as superstições, entregando-nos histórias fantásticas. Em certos momentos, é possível imaginá-lo, o autor, bebendo da fonte, ouvindo ele mesmo esses relatos extraordinários dos próprios moradores do semiárido e do agreste.

Exemplo disso, o sensacional “Ave Noturna”, ambientado no clima do sertão, que conta uma história de vingança e suspense, em que o personagem principal, numa crise machadiana, imagina que sua esposa o traiu o com o irmão. O texto é desses que nos prendem, que nos fazem sentir raiva e compaixão ao mesmo tempo. Outros nesse estilo, também ótimos, são “No Escuro do Eclipse” e “O Bispo na Casa de Sinhana”, que brincam com o excesso de masculinidade de seus protagonistas. Mais: “Deus e o Diabo, a peleja do Humano” e “O Filho que envenenou a mãe” mostram que até o interior profundo leva a digressões psicológicas interessantes, permeadas pelo apego ao sobrenatural.

Mas nem só no sertão navega Bonina. O livro também nos apresenta fábulas instigantes, como o ótimo “O Criador de Dromedários” e “Praça de Touros”, onde sentimentos humanos e não humanos adquirem o mesmo valor, levando o leitor a se indagar sobre a validade e a legitimidade de nossa devoção aos animais e vice-versa.

Há também textos em que Fernando parece ensaiar um romance, como “Mulher Velha” e “Bonina”, e “Os Cadernos da Falecida”, todos narrados em primeira pessoa por mulheres fortes, que passam ao leitor os fatos mais marcantes de suas vidas. Todavia, embora se possa aplaudir a construção dessas narrativas, fato é que não se revelam tão atraentes como as demais, lembrando esboços esquemáticos (ainda que bem montados) de novelas ou tramas de maior fôlego.

Em certos momentos, por outro lado, a perícia do autor surge com toda força. Em geral, isso ocorre em tramas menores, mais fechadas. Algumas delas possuem reviravoltas surpreendentes, como o conto que abre a coletânea, “Sessão de Psicanálise”, o que a fecha, “Lesma Lenta”, mas também “O Velório do Juiz”.

Outros contos porém, preferem prender o leitor ao fazê-lo mergulhar em temas universais, como a saudade, o amor e o remorso. Dentre esses destaco o ótimo “O Carnaval do Bonde” e o espetacular “Ah, aquele olhar…” Talvez este concentre o que há de melhor na prosa Cyriniana, pois é um texto que exige atenção do leitor, obrigando-o a ler e reler de forma a encaixar peças aparentemente soltas; em troca, porém, entrega-se uma história pungente, instigante e com fortes traços filosóficos, daquelas que a gente, como leitor, prefere que não chegue ao fim.

Em suma, Bonina (caso você não saiba, trata-se de uma cor) é um ótimo livro, garantia de uma leitura inteligente, fruto de um autor calejado – no melhor sentido da expressão – que conhece os temas de que trata. Imperdível para quem aprecia o clima que permeia o homem sertanejo, mas interessante, também, para quem não dispensa histórias provocantes em outras vertentes.

Às vezes é preciso deixar a segurança das cidades e encarar o campo aberto. Sair da mesmice e abandonar o conforto.

Esse é convite que Bonina faz ao leitor.

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Um comentário em “Bonina – Fernando Cyrino – Resenha (Gustavo Araujo)

  1. Emanuel Maurin
    27 de fevereiro de 2021

    Olha, que resenha da hora. Deu vontade de comprar o livro.

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Publicado às 10 de outubro de 2019 por em Resenhas e marcado , , .
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