* Contém spoilers.
Pretérito imperfeito, romance de Gustavo Araújo publicado em 2015 pela Caligo Editora, trata, aparentemente, da idílica descoberta do amor entre dois adolescentes numa cidadezinha do Paraná, tendo como pano de fundo a Intentona Comunista ocorrida no Brasil em 1935, cujo propósito foi destituir do poder o presidente Getúlio Vargas. Apesar desse aspecto, entretanto, não nos parece adequado afirmar que se trata de um romance histórico, pois o real empírico não assume ares protagonistas. Além disso, personagens historicamente importantes como Luis Carlos Prestes e o presidente do Brasil à época são apenas mencionadas aqui e ali. O personagem histórico que mais se destaca, com algumas falas, é Filinto Müller, chefe da polícia política de Vargas na “vida real”.
Mas, definitivamente, não está aí o ponto nevrálgico, pois mesmo se a contextualização do enredo não fosse calcada no real empírico o eixo da narrativa se manteria o mesmo. Ou seja: ser ou deixar de ser romance histórico nem enaltece nem prejudica a obra, é elemento de pouca importância para o desenvolvimento do enredo frente a algumas questões outras, colocadas ao longo da trama. Por exemplo, o protagonista, Toninho, é “de carne e osso”, mas seu amor, sua quase namorada, não. Muito embora ele desconheça esse fato. É que quando se encontraram o falecimento dela se dera há 30 anos. Muito embora ele desconheça esse fato. No entanto, apenas aos poucos o leitor vai se dando conta disso, pois a narrativa paulatinamente vai apresentando umas estranhezas que funcionam como pequenas dicas ao leitor a respeito da condição dessa personagem.
Outro ponto relevante: a verdadeira narrativa, a que se esconde debaixo do nível mais evidente, é outra, diversa de um amor que não se concretiza: Pretérito imperfeito trata, no fundo, no fundo dos poços em que se encontram Toninho, a sua Cecília e o pai dele, Pedro Vieira, trata do quanto a ausência de uma honesta comunicação interpessoal pode vitimar as pessoas, no real empírico. O romance se ocupa, portanto, não apenas do desabrochar do amor adolescente, e sim da comunicação imperfeita, no sentido de ser truncada ou ausente, pois a perfeita inexiste.
Recorro aqui ao escritor contemporâneo argentino Ricardo Piglia. Ele afirma que o conto não conta uma estória, e sim duas, sendo a segunda caracterizada por estar em elipse e fragmentada, o que me parece profundamente acertado quando volvemos nossa memória aos melhores contos que nossa vida já leu. O deslumbre do leitor médio está ao enxergar a ponta o iceberg, mas nem sempre ele percebe que há, enterrado nas águas turvas das entrelinhas, um bloco muito mais denso que sustenta o visível e é a sua razão de existir no conto. Ou, fazendo outra analogia, raiz e árvore.
Se Toninho é um menino tímido, de poucas falas e torturado pela necessidade de se expressar para toda a classe por meio da leitura, menino que não consegue traduzir seu sentimento para Cecília, não está sozinho: ele o mais recente broto de uma longa árvore genealógica em que o masculino é silêncio: o avô tem poucas palavras para o filho e este não se comunica com seu descendente, Toninho. Pedro Vieira, o pai do protagonista, quando criança tinha aspirações pessoais não completamente ditas ao velho Francisco; Toninho, engaiolado em um silêncio que é tanto que o personagem não tem muita consciência disso, encontra uma rota de fuga, uma clareira na mata onde dialoga consigo mesmo, com o desejo de ser pesquisador de passarinhos (algo desconhecido pelo pai) e com a falecida Cecília.
A protagonista, que se identifica como Mariana porque foi esse o nome falso com o qual fora enterrada, tem um pai que desaparece do convívio familiar por causa da militância política, e não há muito diálogo com a mãe. Não que esta seja inflexível: apenas uma mulher muda de tanto esperar, em aparente calma, o retorno do marido. Verdadeira tortura.
Disso resulta na menina a tentativa de ampliar-se, dialogar com dois outros espaços, representados pela “fuga” para a mesma floresta frequentada por outro prisioneiro, Toninho, e o exercício ficcional. É, portanto, o silêncio que a faz leitora e produtora de textos em dois gêneros: o conto e o diário, este com feições de carta. O romance é atravessado do início ao fim pelas falsas epístolas que a protagonista escreve à Carol, amiga invisível e alter ego, e pontualmente marcado por dois contos de sua autoria: um escrito para o pai e outro —“O menino que queria laçar a lua”—, que é a metáfora de seu estranho relacionamento com Toninho. Curiosamente, ela “esconde” do seu alter ego o nome do personagem, e o identifica como Felipe.
Dissemos serem falsas missivas porque, sabemos ao final, elas permanecem no diário da menina. E se não são remetidas a ninguém é porque não há destinatário, em função do silêncio insular imposto à família pela atuação política do pai. Todas as mensagens são dirigidas a si própria, pois Cecília se recria no “disfarce” de Carol que, como todo alter ego que se preze, está próximo de seu criador. Por isso, Cecília, ao escrever uma das “cartas’ diz o seguinte à Carol sobre encontrar-se com Toninho: “O problema é que ir lá é a única alegria que eu tenho nesses dias, mesmo tendo que ralar meus dedos para sair por aquele poço. É uma desculpa aceitável, não concorda? Bem, ainda posso perceber que você não pensa assim” (p. 135, grifo nosso). Ora, como ela consegue perceber a reação de Carol se esta, em tese, ainda receberá a carta?
Na vida de Toninho a falta de comunicação produz pequenas e grandes tragédias, todas torturantes, em maior ou menor grau: ele se julga diretamente responsável pela morte da mãe, pois supõe que se tivesse chamado o pai a tempo quando ela sofreu um colapso diante dele, não teria ocorrido o falecimento; por achar difícil conseguir a autorização por escrito do “Seu” Vieira de modo a pegar livro emprestado na biblioteca da escola, surrupia-o para agradar sua paixão, mas é descoberto; a tentativa de finalmente expor-se diante de Cecília é frustrada pela queda em um poço abandonado na floresta, supostamente por ela usado para encontrar-se com Toninho, conforme palavras escritas em seu diário.
Não é simplesmente o despencar de um menino no oco de uma cacimba tão solitária que sem água no vazio escuro de uma floresta brotada à margem do perímetro urbano: metaforicamente, Toninho cai em si mesmo, na vida um tanto silenciosa que leva ao lado de seu pai —esse desconhecido— e mesmo quando conversa com quem não poderia por já estar morta. Ferido, o personagem se vê cara a cara com a completa impossibilidade de localizar o suposto túnel. Logo, reencontrá-la é impraticável. E o silêncio se faz infinito, mas não o suficiente para se transformar em túmulo, porque ele comete algumas esperanças, como, fazendo o leitor lembrar-se do boneco do conto escrito por Cecília, dizer para si mesmo ao perceber o lento passeio da lua na boca do abismo: “Ah, se pudesse laçá-la” (p. 267). “Laçá-la” é, metaforicamente, abraçar a liberdade e, ao mesmo tempo, Cecília.
Quando o pai, ex homem de confiança de Filinto Müller e torturador finalmente o encontra, não ocorre apenas uma operação de salvamento: o menino é retirado, mas há uma destilação, um ato purgatório, pois o menino que é içado já não é o mesmo de quando desabou. Mais leve, ainda mantém o silêncio em relação ao pai, porém não mais forçado; há um cálculo de sua parte, ele não quer saber de possíveis realidades desconstrutoras de convicções positivas sobre o pai e Cecília. O silêncio se mantém, mas agora é cantante, como o uirapuru verdadeiro que nas últimas linhas estufa o peito e solta a voz.
Ao longo dessa resenha crítica, e agora que a releio antes de me dar por satisfeito, percebo que citei as palavras torturado, tortura, torturantes e torturador, nessa ordem. Tanta insistência sem querer não pode ter sido à toa: é que, caio em mim, não apenas o silêncio é a “outra história”, subjacente à primeira, de que tratei no início: também o é a tortura que acompanha todos os personagens principais. Tal constatação faz com que a escolha, como pano de fundo, de um período da história brasileira em que a tortura era prática comum, definitivamente não tenha sido aleatória, mero filigrana, ainda que não configure romance histórico.
Há mais a dizer a respeito de Pretérito imperfeito, o romance de um tempo que não acaba porque eternizado no drama de Toninho e de Cecília. Ele, crescendo, carregará consigo a “namorada” impossível; ela, em sua condição imaterial, o terá como lembrança. Se bem que… lembrança como, se ela já estava morta quando o personagem pela primeira vez entrou na floresta? É que, embora Toninho exista “de carne e osso”, talvez a relação entre ambos tenha sido ficcionalizada por ela, que gostava tanto de escrever contos. Ela inventou a Carol, é possível tenha criado os encontros com Toninho.
Pretendo escrever uma segunda parte dessa resenha, falando de dois outros pontos do romance: o uso do espelhamento narrativo e a presença, no enredo, de Luis Carlos Prestes e sua esposa, Olga Benário, simbolizados pelos pais de Cecília.
Bela resenha.
Jamais teria pensado nessa possibilidade de tudo ser (mais) um conto da Cecília.
Não é impressionante como ele enxerga longe?