Podemos ver a leitura como um preenchimento de lacunas, a partir de quem lê, do texto escrito. Não num sentido em que falte alguma coisa (na verdade, falta sim, porém não é texto), mas em que a obra não entrega tudo, arquiteta-se para que a mente humana a complete com sensações, conjurações e emoções próprias. Assim, temos uma primeira lacuna já com o título: “Quais são os Outros Demônios?”. Ainda, “E esse ‘Amor’, Gabriel, o que vai nos entregar a partir dele que seja diferente?”. Só então abrimos o livro.
Encontramos, chute meu, os demônios. Um marquês incompetente no amor (seja ele paternal, carnal ou romântico) e nos negócios da família: descobriu certo dia que o gado todo de suas terras herdadas havia migrado para outras, por insatisfação com o dono. Some isso a uma extensão de terras improdutivas que levaria à plenitude eterna todas as famílias camponesas da Via Campesina e movimentos sem-terra agregados, e terá a dimensão de sua incapacidade administrativa. Para não dizer que sua inabilidade no amor é absoluta, pode-se citar o episódio em que se apaixonou por uma mulher louca simplesmente por teimosia. Não deu certo.
Pois, somada a ele, há Bernarda, a esposa que lhe tirou à força a virgindade e que odeia a própria filha, fruto da traição com um escravo chamado Judas Iscariote – não que o esposo autodenominado pai se importasse tanto. Na característica (diz o assíduo leitor de dois de seus livros) “bizarrice real” transmitida por Gabo, a tal filha é a protagonista (e inspiradora) da obra: Sierva María, ou Maria Mandinga – esta alcunha tendo sido conjurada por seus amigos escravos, na senzala onde ia por simples prazer, exemplificando o abandono e indiferença absolutos, se não cômicos, dos pais.
Cabelos longuíssimos e infinitamente ruivos moldam a menina que, sendo mordida por um cão raivoso, tem sua personalidade disparate e naturalmente mentirosa confundida com uma possessão demoníaca. Então que é engrenado o enredo, e o livro discorre sobre os relacionamentos entre as personagens, tendo adições como: um padre que nunca conversou muitas palavras com qualquer mulher e sonha ser bibliotecário do Vaticano; um bispo quase-morto e um tanto cansado do mundo; um médico negro, liberto, ateu e virgem; e uma abadessa que, por inabilidade em achar a ruiva endemoniada pelos corredores de um convento, atribui habilidades de invisibilidade à garota.
No entanto, há alguns aspectos foscos nesse brilho de luxúria e irreverência que é o romance, escrito por Gabo em uma de suas correspondências jornalísticas a partir de uma sepultura em que se lia: “Sierva María de Todos Los Angeles”. Uma paixão em específico, que é posteriormente desenvolvida, tem tantos tons de incomum quanto tem de barroca. A angústia e o platonismo, clichês, contrastam em certas partes com o tom único do livro. Nunca ele pode perder seu valor por isso: o desfecho é muita coisa que não óbvio, e a indiferença do universo que o livro traz também é uma mensagem, por si. Mas há certos trechos em que a beleza inconfundível das notas do amor parece muito dissonante da música desarranjada que percorre aqueles personagens, e é essa a crítica mais plausível que consigo fazer à obra.
Uma leitura rápida, divertida e significativa, “Do Amor e Outros Demônios” traz uma visão sobre o afeto, as relações e o que move os corações das pessoas. Deus, sexo, facilidade, conforto e até negação são propostos como dirigentes, mas cabe a quem lê enxergar-se nas diversas facetas caricatas – ao mesmo tempo que insuportavelmente reais – das personagens, e entender o próprio amor assim como absorve as tantas outras formas exibidas pelo melhor escritor colombiano.
Resenha muito bem estruturada e com uma fluidez feroz! Fica evidente que o autor soube se debruçar e se deliciar sobre o amor e os outros demônios de Gabriel.
Gostei Guto, fiquei interessada no livro. O final da resenha é show. Parabéns… O autor teria gostado de lê-la…beijos…
Ótima resenha. Daquelas que dá vontade de sair correndo para comprar o livro.
Maneiro que curtiu! Primeira vez que faço uma resenha, é muito bom pra retomar o livro e consequentemente manter na mente os meandros dele, não só o enredo.