É um dia qualquer em julho, você acorda com a garganta seca, consulta o relógio, são duas da manhã. Pé ante pé para não acordar ninguém, vai até a cozinha. Está abrindo a geladeira quando alguém tosse na sala de estar.
Você entra e acende a luz. Papai Noel está muito à vontade na poltrona, como se a casa fosse dele. Imediatamente você assume posição de defesa, como um boxeador antiquado.
— Não se mexa! Vou chamar a polícia.
Papai Noel sorri.
— Eu não pareço um ladrão, pareço?
Seu primeiro impulso é saltar sobre ele e dominá-lo. Mas o sorriso é tão doce… Aquele sujeito não pode ser um ladrão. É apenas louco. Um louco sereno.
— Tem razão — você diz. — Vou chamar o hospício.
Papai Noel sorri ainda mais.
— Boa ideia. Diga que o Papai Noel está sentado na sala e que “ele” é louco.
Você bate o telefone.
— Quem é o senhor?
— Eu sou o Papai Noel.
— Ora, senhor, convenhamos! Papai Noel? Veio um pouco tarde este ano, hein? Ou talvez muito cedo.
O velhinho responde com serenidade.
— Que diferença faz se há mais de trinta anos eu não te visito?
Você fica desconcertado. Responde em tom de deboche.
— É verdade, Papai Noel. Por que você nunca mais me visitou?
— Para que eu visite alguém esse alguém tem que acreditar em mim. Só ganha presente do Papai Noel quem acredita nele.
Você pergunta com indisfarçável desdém.
— E o senhor me trouxe um presente?
Lenta e pesadamente o Papai Noel se põe de pé. Dá um passinho tímido à frente, juntando as pontas dos dedos sobre o grande arco da pança. Ele parece embaraçado, mas fala com doçura, num tom quase solene.
— Sim, eu trouxe um presente: um abraço e uma esperança.
A frase te toca. Aqueles olhos, aquele sorriso… É ele! É ele! E você abraça o Papai Noel, que é sólido como bolo de chocolate. Abraça-o como uma criança, de olhos fechados e sorriso aberto.
Então você acorda.
Consulta o relógio, são duas da manhã e você está com a garganta seca. Vai até a cozinha, vira um copo d’água e fica escutando.
Nenhum ruído. Só o silêncio desolador.
Como quem não quer nada, você entra na sala de estar e acende a luz.
Vazia.
Para não fazer papel de bobo, verifica se a fechadura está trancada (é claro que está, você mesmo trancou).
Então você sorri. Sem desculpas, sem remorsos, contente por ter sido tolo, mas de uma tolice plena de significação e beleza. De uma pureza do tamanho do Universo. E volta para cama cheio de esperança, contente consigo mesmo e com a vida.
Na sala, atrás da cortina, Papai Noel não se contém de tanta felicidade.
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Extraído de “Deus no Labirinto”, Editora Baluarte
Uma delícia.
Já li e reli diversas vezes e sempre me emociona.
Muito bom!
Um dos melhores contos de natal que já li!
“(…) o Papai Noel, que é sólido como bolo de chocolate” Sabor inocente de infância. Adorei. Parabéns!
Simples e bonito, gostei.
Abraço!
Uma leitura doce, gostosa mesmo! É de “tolices cheias de significação e beleza” que o mundo está precisando! Parabéns!
Que excelente maneira de começar a manhã. Um conto doce, uma fábula na verdade, que nos traz de volta aquela alegria ingênua da infância, o instante fugaz em que mesmo depois dos quarenta nos pegamos acreditando no (im)possível. Parabéns, Ricardo.
Obrigado, Gustavo. Pelo carinho e pela ‘hospedagem’ no EntreContos.
O prazer é nosso, Ricardo. É sempre um privilégio ter um conto seu por aqui. Aliás, seu texto me trouxe à lembrança uma experiência pessoal muito parecida com a vivida pelo seu protagonista. Falei dela neste post aqui (http://pontopacifico73.com/2012/12/25/mensagem-de-natal/). Obrigado mais uma vez!