EntreContos

Detox Literário.

Cabeça Vermelha (Jowilton Amaral)

O homem ferido aponta sua Parabelo 9mm para a fronte de um sujeito ajoelhado.

— Fala logo, cabra. Cadê o maldito?

— Tenente, por favor, tenha dó de mim, o Capitão ameaçou minha família.

— E eu lá quero saber disso, cabra? Quero saber é do “cabruquento”. Avia, macho, desembucha, “fi de rapariga”!

— Ele passou por aqui tem dois dias, tenente, foi pras bandas de Poço Redondo, ouvi que ia se “acoitá” em Angico.

— Coiteiros filhos de uma égua. — O tenente Belmiro esbraveja, aperta o gatilho e cospe no rosto ensanguentado do homem que tomba.

O corpo cai aos seus pés, juntando-se aos outros quinze que estão esticados sobre o solo semiárido da caatinga. Três volantes, dez cangaceiros e dois coiteiros mortos.

O esconderijo fica numa pequena clareira cercada por uma formação florestal densa, composta por vários tipos de árvores. A choupana é circundada por Juazeiros, Mororós, e incontáveis Espinheiros, que formam uma verdadeira muralha de acúleos, folhas e galhos retorcidos, dificultando o acesso e a visualização do coito.

A empreitada fora boa, apenas três baixas. E ele sabia que estava muito próximo do Bandido Rei, a lenda do cangaço. Um braço forte e fiel do bando acabara de ser eliminado ali. Boticão de Ouro, compadre da besta-fera de um olho só, havia morrido junto com seus comparsas.

É uma pena que ele não poderá continuar na captura do facínora. “Cheguei tão perto”. Ele pensa.

O militar manquitolou até seus comandados e disse:

— Vocês ouviram o homem. Rumem para a fazenda Angicos. Agora!

— Não podemos deixar o senhor aqui sozinho, tenente.

— Podem sim. E irão deixar.

— Mas tenente…

— Não tem nem mais mas, nem menos mas, cabra. Isto é uma ordem. Caminha ligeiro e não me volte aqui sem as cabeças do corno caolho filho do demo e da quenga que trepa com ele. Me ouviu bem, Sargento? — O Sargento Getúlio acena resignado e segue com a tropa. A noite ia alta.

O tenente arrasta-se até o casebre. Acende o candeeiro e senta-se na beirada da estreita cama. Retira de dentro do seu bornal dois cantis, um com água, o outro com aguardente, uma vasilha metálica, redonda, contendo uma maceração de mata-pasto e pimenta malagueta e uma cabaça com chá de arnica.

O tiro o atingiu pouco acima da região ventral do lado direito. O sangramento era severo.

Abriu com cuidado sua gandola, afrouxou as calças. Lavou a lesão. Primeiro com água, depois com pinga. Bebeu toda a infusão da cabaça, com a intenção de controlar a hemorragia. Em seguida esfregou o emplastro sobre a ferida, empurrando parte da pasta para dentro da fissura, tentando vedá-la. O queimor que sentiu foi lancinante. Urrou. Cobriu o local com folhas de juá. Tomou um longo gole da cachaça limpa.

Deitou-se de costas e pousou seu velho rifle “papo amarelo”, companheiro de duras batalhas, ao seu lado. A pistola continuava no coldre.

A luz da lua invadia o pequeno cômodo, pelas fisgas da janela entreaberta, iluminando seu rosto desfigurado pela dor.

Ele não consegue parar de matutar sobre sua tropa dirigindo-se para a cidade de Poço Redondo sem o seu comando. Eram bons homens. Fortes, corajosos e com sangue nos olhos. Confiava no triunfo deles. Queriam vingança pelos amigos, familiares e amores mortos. Principalmente; almejavam justiça. E não poupariam esforços para conseguirem êxito.

O que o tenente não compreendia, era como as pessoas poderiam dar asilo àqueles assassinos e ladrões. Isso martelava em sua cabeça, aborrecendo-o.

“Nós, os membros das Volantes, representamos o Estado. Somos a lei. No entanto, muitos dos populares simpatizam com os cangaceiros, e os protegem. Eles são considerados heróis por alguns. E isso é um absurdo. Tá certo que muitas vezes agimos igual ou mesmo pior que os bandoleiros, já que deveríamos dar o exemplo. Saqueamos, matamos e abusamos do nosso poder em muitas oportunidades. Porém, isso é tudo em prol de algo maior. Nós somos a lei, eles são os bandidos, e ponto. O povo haveria de entender isso. Por bem ou por mal”. Seus pensamentos agitam-se. Tenta encontrar uma posição melhor no colchão cheio de buracos. Não consegue. Pega o frasco de pinga e traga uma grande quantidade.

Belmiro tem a perfeita noção que a violência gera mais violência. Contudo, nada neste mundo o havia deixado tão em êxtase quanto o poder da intimidação. Nenhuma aguardente, por melhor que fosse, deixava-o tão inebriado quanto o uso da força. Parecia uma comichão, um prurido enlouquecedor e perene. Quando o tenente começava a agredir não queria mais parar.  Convenceu-se, tendo ele mesmo como modelo, que a violência viciava tanto quanto a cachaça.

Começou a falar sozinho, olhando para as frestas da janela a sua frente. “Estamos em vinte e três de julho, se acelerarmos, e se não tivermos contratempos, no dia vinte e sete, no mais tardar, vinte e oito, nos aproximamos da fazenda. Chegaremos na surdina, sim, na surdina, e pegaremos aqueles frescos antes deles darem o pinote.”. Levantou-se de um salto, esquecendo-se da dor, e berrou;

— “Avia com isso, Sargento. Vamos esfolar esses cabras da peste!”. — A febre o dominava.

Despertou assustado de um sonho em que se encontrava cercado por criaturas demoníacas. Um vulto negro apareceu na janela. Segurou o rifle e apontou, ainda deitado, para a abertura na parede. Percebeu que seus movimentos encontravam-se tolhidos pela dor aguda que o atacava quando tentava se mexer. Seu corpo ardia.

Não podia mensurar o quanto dormira, contudo, o sol se anunciava altivo e sufocante.

O estranho visitante parecia com medo. Apontava a cabeça de mansinho e a retirava no mesmo instante.

— Aparece, fi de quenga! Aparece que eu vou arrancar sua cabeça fora. Disparou uma vez.  Silêncio absoluto.

Dormiu por um dia inteiro, embriagado e enfraquecido, entre delírios e pesadelos.

Levantou-se a pulso, nauseado e com dores terríveis por todo seu corpo. Tomou um gole de água, muitos de pinga, e só assim teve a disposição necessária para verificar o estado da ferida.

Assombrou-se com o que viu. Suas carnes ao redor do ferimento pareciam putrefatas, uma coloração esverdeada circundava a pequena cavidade por onde entrara o projétil e um imenso arco-íris de matizes malignos envolviam todo o seu ventre, da virilha ao umbigo. Despejou uma boa parte do que restava da cachaça em cima do furo. Tentou gritar, mais não tinha mais forças, por isso, apenas chorou baixinho. A certeza da morte foi muito dura para ele.

Com muito esforço esticou-se para cima, arrastando o rifle, e sentou-se apoiando suas costas na parede de taipa da cabana. Nesta posição, desmaiou.

Acordou com um pestilento odor queimando suas narinas, barulhos no telhado do barraco, e com um visitante vigiando-o silenciosamente da janela.

Lembrou-se dos corpos do lado de fora decompondo-se sob céu aberto. Passou a mão levemente em sua chaga e supôs que em breve seria ele. Contudo, ainda estava vivo e armado. Enquanto houvesse forças e munição, não se entregaria.

Mirou a winchester 44 e atirou. Errou o alvo. Contudo, fez com que seu espião fugisse. Não por muito tempo, haviam mais.

Outro apareceu por um buraco na palha que cobria o teto. Mais um disparo sem êxito. Dois apontaram suas cabeças vermelhas por uma falha na madeira da porta. Desta vez dois tiros em sequência atingiram o objetivo, espatifando a porta e os dois intrusos. O Tenente sorriu de satisfação e com o último fio de energia gritou: “— Comam chumbo, seus pestes”.

A munição da carabina havia acabado, deixou-a cair no chão. Empunhou a pistola e mandou para o inferno mais cinco miseráveis que teimavam em entrar no esconderijo. Ficou sem balas.

Suas forças definhavam ao tempo que os invasores surgiam aos borbotões.  Pareciam se multiplicar como por encanto. Retirou seu punhal da bainha e aguardou a aproximação dos malditos. Contudo, não havia nenhuma chance. Eram centenas deles contra um moribundo segurando uma faca.

Dezenas de urubus-de-cabeças-vermelhas invadiram o casebre aos pulos e de asas abertas, cercando o tenente em seu leito de morte, ao passo que outras dezenas se empanturravam com os homens apodrecidos do lado de fora.

Rodearam-no em silêncio, como parentes que velam um ente querido. No entanto, aquela reunião macabra, de carpideiras mudas, estava apenas esperando a hora do jantar; pacientemente.

Ainda havia uma réstia de vida no corpo do destemido caçador de cangaceiros quando ele sentiu a primeira bicada em seu ventre…

3 comentários em “Cabeça Vermelha (Jowilton Amaral)

  1. Evelyn Postali
    29 de abril de 2017

    Gostei muito do conto, Jowilton. Me senti em outro lugar. A ambientação contribuiu de uma forma perfeita para isso junto das expressões. Ficou tudo do jeito que precisava ser, sem excesso e sem carência. Parabéns!

  2. Gustavo Araujo
    21 de novembro de 2014

    Muito bom. Gostei bastante da ambientação — essa atmosfera do cangaço é mesmo inebriante — e você soube dosar bem o regionalismo sem cair no ridículo. Bacana o enfrentamento da morte pelo tenente, os delírios, os sonhos, os desejos. Enfim, um conto na medida certa.

    • Jowilton Amaral da Costa
      22 de novembro de 2014

      Obrigado Gustavo. Este é o segundo conto que eu escrevo tendo o cangaço como tema. Aqui onde moro fica relativamente próximo da gruta de Angico, o lugar onde foi morto Lampião. Confesso que fiquei preocupado com as expressões regionais, para que não ficasse caricato demais, como nas novelas que vemos por aí. Que bom que gostou. Abraços.

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Informação

Publicado às 21 de novembro de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .