EntreContos

Detox Literário.

Ismaël (José Geraldo Gouvea)

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras pro­fe­ri­das pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à amurada de um velho navio con­tem­plando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me real­mente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas per­di­dos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e distante, quase incompreensível. Eu piso o chão destas montanhas, e Ahab pisa a inefável bruma das minhas lembranças.

Eu nasci longe desta terra triste em que estou morrendo. Voei sobre o mar e cruzei desertos e flo­res­tas para chegar até aqui e poder ouvir as palavras do velho profeta. Sou parte de um grupo de escolhidos, eu levo a morte estampada na testa, em verde, estou pronto para ela, como um kami­kaze nos mares do Oriente. Apenas não sigo imperador algum deste mundo, mas ao supremo Rei cuja forma ninguém verá. Não tínhamos a per­mis­são de chamar o velho, nosso líder, pelo seu ver­da­deiro nome. Era apenas o “chefe” e entre os voluntários do Oeste, como eu, alguns o chamaram de “Ahab”, em homenagem a outro capitão, este fictício, que também enfrentava o desconhecido de peito aberto, como o velho o fez, mais de uma vez.

Nossa luta deixou marcas na alma e no corpo. Perdemos tantos amigos que nem contamos mais. Preferimos ser amigos apenas de Deus, porque ele não será nunca morto pelo inimigo e nunca deixaremos de contá-lo. Quem tem amigos demais não quer morrer: o herói precisa da mais abso­luta solidão. E estamos sozinhos nestas montanhas. Vivi isolado aqui há tantos anos que perdi a noção da realidade. Desde que segui Ahab em seu Pequod imaterial, que singra rumo à glória, eu não leio mais jornais e nem tenho acesso ao rádio. Vivemos como ascetas, buscamos a pureza, esperamos que a morte nos ache prontos. Heróis não têm tempo a perder com a matéria. Suponho que Ahab soubesse mais sobre o inimigo do que nós, mas nos poupava disso. Talvez tivéssemos menos esperança se soubéssemos exatamente contra qual Moby Dick tocaiávamos nas montanhas. Tal como a lendária baleia, o inimigo está além. Não vamos até ele, é ele que nos vem.

Ahab não tinha esperanças, mas um destino. Tal como todos nós, também sabia que morreria cedo. Preparou-se para isso. Temeu isso. Superou o medo e se identificou com a morte. Seu corpo frágil foi precocemente encurvado pelo peso de uma idade que ainda não tinha, mas sua alma nunca se curvou. Mas a sua alma era como um sabre de aço, afiada e luzidia, inatacável pela poeira ou pela umidade, e brilhava sob o sol quando ele nos falava, mesmo quando sua voz saía débil e seus gestos pareciam doídos. De sua boca saíam palavras calmas, confortantes. Quando falava, nós esquecemos que estamos precariamente sobre a terra, tal como o Pequod singrava precariamente as ondas bravas do grande mar. Ahab nos inspirava a dar de nosso sangue para forjar o grande arpão com que trespassaria o coração do inimigo quando ele saltasse sobre nós. O navio seria despedaçado, mas o Monstro levaria nossa vingança cravado no peito. Morrer para causar a queda de seu cadáver, isto seria glorioso.

Seguimos Ahab pelos desertos, como marujos de uma expedição sem rumo pelos sete mares. Esti­ve­mos em tantas cidades que nem pude guardar seus nomes. Cada nova cidade era um amigo a menos. Mas Ahab, meu herói e minha inspiração, logo se mostrou um profeta cujas palavras não traziam novos conversos. Nosso grupo diminuiu e nossos inimigos se somaram. Vivemos ulti­ma­mente de favor, quase como prisioneiros, em uma casa que nenhum de nós escolheria, sob pro­te­ção de inimigos. “Nosso passado nos condena, Ismaël” — as palavras do velho ecoam na minha cabeça com sílabas de metralhadora.

***

Era madrugada quando acordei sobressaltado. Um silêncio pesado e amordaçante reaía no mundo. As montanhas dormiam sufocadas como se uma manzorra apertasse a boca da cidade. O ar arra­nhava nas narinas e eu tinha uma vontade de chorar ou de sair correndo. Nada disso era inco­mum, eu vinha sentindo todas essas coisas com relativa frequência. Alguns chamariam isso de covar­dia, outros de arrependimento, outros ainda diriam que era só minha lenta volta à racio­na­li­dade. Penar nessas montanhas, sem um sentido definido, mesmo na presença constante de um pro­feta, é algo que abala a fé do mais firme dos crentes.

Eu não sabia ainda exatamente o que estava me incomodando naquele silêncio, que parecia dife­rente, como se vibrasse algo monstruoso, em uma faixa inaudível pelo homem, mas sensível pela alma que há dentro do homem. Saí ao terraço para tomar ar, mas era inútil até isso: o ar estava quente, as montanhas sopravam opressão e as luzes das casas pareciam delimitar as cercas de uma prisão. Respirei com força, violentando os meus pulmões com aquele ar cortante e grosso, depois entrei, resignado, e fui procurar um lugar quieto onde dormir.

No térreo encontrei Fátima, ainda de pé, preparando bilhas de água fresca para levar aos nossos quartos, para a purificação matinal. Estava vestida de negro e tinha os olhos tristes como de cos­tume, como os de alguém arrancada de toda perspectiva de felicidade e atirada naquele beco entre as montanhas. “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Tive pena de Fátima. Gostaria de ter sido seu marido, se ainda houvesse tempo no mundo para constituir famílias e ter filhos. Acredito que ela também teria gostado, muito embora para isso devêssemos ter fugido, de Deus e de nossas fide­li­da­des. Viver como renegados, em uma pátria alheia, um pensamento mais agradável do que mor­rer nas montanhas da Casa da Paz. Viver…

Saudei Fátima e saí ao quintal. Apesar do calor que fazia e da quietude opressiva eu me sentia bem. Saudei o garoto de olhos verdes que estava na guarda. Não sabia o nome daquele curioso espécime. Ninguém sabia. Ele nunca o dizia a ninguém. Soubemos apenas que viera do leste, como tantos, e que não tinha esperança alguma neste mundo. Somente os que haviam perdido a espe­rança a vinham sorver da boca de Ahab, que lhes dava um motivo para viver ainda, à espera do instante de glória.

— Quer que eu fique em seu turno, garoto? Não estou conseguindo dormir mesmo.

— Não carece, não, Ismaël. Nenhum de nós vai precisar amanhecer descansado mesmo… Então que pelo menos eu cumpra meu turno fielmente, como deve ser. Por que você não sai para um passeio, para arejar um pouco?

Dei de ombros, conformado, e me preparei para sair. Aconteceu algo, porém, que me fez estacar ao portão, congelado de medo: uma sombra pareceu cruzar a fímbria de céu despejado que aparecia entre as montanhas ao sul. “A morte por lá voa como um dragão assombrando os céus, Ismaël.” Não foram palavras de Ahab, mas de meu falecido pai, no dia em que lhe contei de minha vontade de seguir o caminho dos heróis. Eu não me importei naquele dia, porque tinha pressa de morrer, para esquecer toda culpa, todo arrependimento e toda frustração. Mas aquela forma fantas­ma­gó­rica, como o rabo do Dragão derrubando as estrelas do céu, me fez tremer e chorar. Era ela que vinha, e eu não estava preparado. Eu me acovardara e não estava pronto.

— O que foi isso, Ismaël? — perguntou o garoto de olhos verdes.

— Eu não sei, garoto, só tive um poderoso pressentimento de algo muito ruim.

O garoto me encarou, com medo no olhar, e disse:

— Vamos fugir, Ismaël. E começou a correr pelo campo em direção à cidade.

Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arro­zais. O som surdo do voo do dragão se aproximava, desorientando-me. Encontrei Fátima des­cendo dos quartos, depois de entregar as bilhas de todos os homens. Agarrei-a como pude, pres­sio­nando minha mão sobre sua boca com toda a força que conseguia ter, enquanto ela esperneava, desesperada por gritar, como se eu a estivesse prestes a estuprar. Subi com ela ao meu quarto, no segundo andar, e me tranquei, ainda segurando a boca trancada, porque meu coração pulava lou­ca­mente querendo cair dela.

Aliviei lentamente a pressão dos dedos nos lábios de Fátima. Ela não gritou quando os removi. Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno. Os cães dos vizinhos começaram a ladrar furiosamente. Sussurrei-lhe baixinho aos ouvidos:

— Não sei o que está acontecendo, meu amor, mas vou tentar te proteger de alguma forma.

Ela assentiu com a cabeça. Apenas murmurando um rogo entre os dentes doloridos, para que Deus tivesse piedade dela e que eu lhe poupasse sua pureza. Os instantes foram passando, o ruído foi persistindo e eu continuei sem atacá-la. Ela foi aos poucos entendendo que não se tratava de uma violação.

Lá fora se ouviram ruídos de disparos repetidos. Alguma arma automática moderna. Tiros isolados de fuzil e um longo grito agoniado, que terminava morrendo num engasgo:

— Deus é grande, Ismaël. E eu me chamo Khaliii…

Passos soaram apressados pelas escadas. Mais tiros. Portas arrombadas como se fossem de pape­lão. Cães lá fora latindo. Mais tiros. Gritos. Os heróis não morrem berrando como cabritos. Os invasores gritavam apressada e nervosamente. Eram estrangeiros e impacientes. Nem sempre esperavam a resposta para atirar. Uma mulher soluçou e foi calada por um tiro no meio de um grito que não pude distinguir.

Então percebi o quanto estava exposto. Embora a porta do quarto ficasse meio oculta debaixo do lance da escada, dificilmente escaparia da vista dos invasores, mesmo se eles fossem estúpidos e desastrados. Ninguém sobrevive contando que o inimigo falhará. Olhei para o rosto de Fátima. Ela estava pálida e seus lábios, machucados pelo peso de minha mão, tremiam num choro silencioso. A pobrezinha queria chorar, mas não tinha coragem nem para isso.

Era preciso sair do quarto e achar um lugar seguro. A primeira coisa em que pensei foi em saltar para o chão. A janela do segundo andar não era tão alta que nos quebrasse as pernas. Só havia um problema: ela ficava fora do quarto. Por isso era preciso pensar rápido. O lado bom era que ela ficava sempre aberta para ventilar a casa, e havia de palha de arroz e grama seca ao longo de todo muro. Com alguma sorte escaparíamos com alguns arranhões apenas, se Deus nos permitisse cruzar três metros de corredor e saltar por ela sem que os invasores vissem.

Abri a porta de uma vez: não adianta ter medo numa hora de desespero. Se houvesse algum mal­dito cão infiel do lado de fora ele atiraria através porta assim que girasse a maçaneta. Só não devia fazer barulho, e isso não fiz porque a porta era nova e não rangia, os Arcanjos lubrificaram suas dobradiças. Lá estava a janela: um metro e vinte por um e dez. Suficiente espaço para pularmos sem segurança, mas com facilidade, mesmo Fátima um pouco acima do peso.

Não dava tempo para pensar. Não havia plano alternativo. Não era possível nem mesmo explicar à coitada o que eu pensava fazer. Só podia contar que fosse esperta o bastante para entender. Saí correndo pela porta, arrastando-a atabalhoadamente pelo braço, enquanto ouvia os passos dos inimigos que trotavam pela escada acima, vindo para o segundo andar. Saltei no vazio, esperando morrer ou miseravelmente quebrar as pernas ou ainda ser esmagado pelo peso de Fátima caindo sobre mim. Nada disso, felizmente. Caímos os dois sobre a palha e rapidamente eu me envolvi nela, aproveitando que a cor de minha roupa era clara. Não tendo a mesma sorte, Fátima mostrou agilidade para correr até as sombras das árvores e se ocultar atrás do tronco de uma delas.

Eu não tinha acabado de cair quando tiros se ouviram no segundo andar. Algumas balas saíram pela janela, faiscando como dardos de Satanás. Cães ladravam novamente, mas nenhum naquela estrada, nenhum que viesse me farejar. Um a um, os que defendiam o chefe caíram. Foram muitos tiros, de dentro e de fora. Uma das aeronaves inimigas girou em parafuso, com o motor atingido e o tanque de combustível vazando, e caiu no quintal. Poderia ter sido meu tiro a derrubá-la: nin­guém era tão bom quanto eu em pontaria. Mas eu estava aco­var­dado, cansado de morte, cansado de tudo, mas não de viver. Então os tiros pararam. Os bravos estavam todos mortos, apenas o covarde respirava, escondido no meio de palha, capim seco e esterco de vaca.

Os estrangeiros tagarelavam. Eu não conseguia entender o que diziam, mas era evidente a sua excitação. Eu não imaginava o que poderia ter acontecido, não até ouvir a própria voz de Ahab, cansada e conformada de uma maneira que eu nunca sonhara que ele seria capaz de dizer, quase num gemido subserviente:

— Que a maldição do Altíssimo recaia sobre vossas cabeças!

A ira espremida naquelas palavras me cortou o coração. Não era somente eu, o covarde, que sobre­vivia. Ahab estava destinado à humilhação. Não morreria na tentativa quixotesca de exter­mi­nar o monstro que assombrava os mares. Teria simplesmente seu Pequod arrestado em um porto qualquer. Terminaria seus dias pensando na liberdade de Moby Dick, mas ele preso e impotente, precocemente vergado, sofrendo de rins, de varizes e de cáries. Não há heroísmo algum em morrer de velhice num mundo em guerra. Os heróis não têm velhice.

Desceram com ele pelas escadas. As botas dos inimigos soavam como tambores. Ahab gritou-lhes algo em sua língua. Eles não responderam. Gritaram-lhe de volta, e riram. De repente ouvi uma longa rajada de tiros, e não ouvi mais a voz material de Ahab.

***

Amanheceu um dia bonito nas montanhas perfumadas de papoula e bétel. Fátima e eu cami­nhá­va­mos com cuidado, sempre no rumo norte, rumo ao teto do mundo. Ela não falava nada. Ela sabia que eu era um covarde, mas não me acusava porque gostava de não estar morta. Estava grata por sua vida, grata demais para me acusar, mas a minha covardia me tornara desprezível. Por toda a vida eu seria um desertor escondido na palha, sujo de esterco de vaca.

“Nosso passado nos condena, Ismaël”. Nunca tais palavras me cortaram tanto. Meu passado de herói se desfizera. Minha pureza de mártir se reduzira a manchas verdes em minhas vestes.

— Na Índia, querida, na Índia seremos felizes. Diremos que somos sikhs ou cristãos e nos deixarão ficar. Diremos que estamos fugindo da perseguição dos fanáticos.

Não me lembro quantas vezes repeti isso, na esperança de que falando muitas vezes a mesma esperança eu conseguisse condensá-la, como se fosse possível extrair esperança do ar e engarrafá-la. Fátima apenas ouvia. E a única resposta que eu tinha era a frase pesada, que desfilava pela minha mente como um rochedo movido pela mão de Deus: “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Não, não era Deus que nos condenava, não existia Destino escrito em pedra. Éramos nós e nossos próprios atos que causávamos a ruína.

— Na Índia. Temos de chegar à Índia.

Mas eu sabia que as coisas seriam diferentes. Sabia que provavelmente os guardas nos matariam na fronteira, sabia que se um dia puséssemos os pés do outro lado Fátima, livre, me abandonaria. Mas eu queria viver, com mil diabos! Por que saltara por aquela janela? Para entregar-me ao punhal vingativo de um guarda que olhava por sobre a fronteira com sangue nos dentes de tanto morder por dentro da bochecha na ansiedade de purgar a terra de nossa raça? Para ser deixado velho e mendigo nas ruas de Amritsar, comendo a refeição da caridade que os meus inimigos do passado distribuíam aos pobres? Para ver minha amada nos braços de outro, eternamente rindo de manchas verdes de minhas vestes, que água nenhuma jamais lavaria?

Não, não era para nada disso. Por isso, secretamente, em vez de me dirigir à esperança que jazia ao leste, meus passos sutilmente me levavam, como seu fosse atraído por uma lâmpada, rumo à maldição e a vingança, rumo às terras controladas pelo ódio. Eu era um guerreiro ainda. Ainda havia tempo para purgar minha covardia. Eu poderia ainda lavar aquelas odiosas manchas com o vermelho de meu próprio sangue. E Fátima seria minha, mesmo que à força, ou, se não fosse, eu não viveria para vê-la sob o braço de outro homem.

“Nosso passado nos condena, Ismaël.”

Mas estas estradas são traiçoeiras. Não sinais, o próprio sol parece enganador. Não gosto do formato destas montanhas, não gosto da cor dos caminhões que às vezes aparecem. Talvez seja Fátima que consiga me desviar quando não percebo: há tantas encruzilhadas.

Em memória de Osama bin Laden (1957-2011)

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31 comentários em “Ismaël (José Geraldo Gouvea)

  1. Pedro Luna Coelho Façanha
    14 de janeiro de 2014

    Li o conto atraído em certas partes e perdido em outras. Precisei voltar atrás várias vezes. Obviamente isso não quer dizer muita coisa, mas na minha opinião, ficou um pouco confuso sim. No entanto, a escrita é boa e tem um estilo charmoso. Parabéns.

  2. Tom Lima
    12 de janeiro de 2014

    Excelente!

    Um dos que mais me agradou por aqui.

    Fica claro que Ahab é uma espécie de fantasma. Não tradicional, mas ainda sim um fantasma, e que vai perseguir o protagonista pelo resto da vida que ele tanto quis preservar.

    Parabéns!

  3. Paula Melo
    12 de janeiro de 2014

    Conto muito bem escrito,gostei bastante do modo que o texto vai se desenvolvendo.
    Boa sorte!!

  4. Raione
    11 de janeiro de 2014

    Muito bom. Tudo aí parece bastante orgânico, a ambientação (um pouco “flutuante”), os sentimentos e os dilemas do narrador (que apenas uma hora ou outra parecem repetitivos, mas que em geral são formulados em frases lapidares), os paralelismos com Moby Dick, a narrativa que mantém seu tom e raras vezes escorrega (por exemplo, a relação entre Ismael e Fátima gera uma ou outra cena meio ridícula, meio despropositada, que destoa do resto). O texto parece funcionar um pouco como um enigma, e é nesse sentido que falei em ambientação flutuante: pegamos a história pela metade, nossas coordenadas concretas são muito poucas (embora a gente queira todos os detalhes desse mundo que tem uma cor meio fria ou hostil, apocalíptica e mágica), de modo que temos de lidar com o que acontece no seu estado bruto, sem adornos, lidar com o que deveria ser a essência do mundo de Ismael, do seu mundo interior. A chave do enigma seria aquela dedicatória final, que restitui os adornos, orienta o sentido do experimento no qual o leitor foi meio cobaia. É engenhoso, mas também é trapaça. Uma questão que não me parece muito descabida: o conto funciona sem aquele “em memória…”? Eu acho que sim, acho que ganharia em estranheza. Uma observação pontual: talvez pela limitação do espaço, a virada de Ismael em direção à redenção, ao sacrifício, depois de toda vergonha e do cultivo das fantasias, pareceu brusca.

  5. Mariana Borges Bizinotto
    6 de janeiro de 2014

    É um ótimo relato, envolvente, a descrição é excelente. Fiquei a espera do fantasma todo o texto e quando acabou o único que tive foi a mancha no céu. Notei algumas palavras repetidas na mesma frase ou em frases seguidas, elas me incomodaram e atrapalharam a leitura:
    “Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arro­zais.”

    “Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno.”
    Como ela conseguiu distinguir algo indistinto!?

    • Michele
      6 de janeiro de 2014

      Eu sei que o conto deve ser fechado em si, que não deve precisar de explicações e nem desculpas. Tudo bem isso. Mas você não percebeu a presença fantasmagórica do morto desde o começo, ainda mais sabendo que a história é narrada em flashback?

      Sobre as outras observações, muito bem. Esses são pontos a limar numa versão revisada. Se bem que é mais fácil distinguir algo ainda indistinto do que algo indistinguível… 😉

      Obrigado pela leitura e pelos comentários.

  6. Pedro Viana
    31 de dezembro de 2013

    O texto é bem escrito. Não achei a narrativa cansativa. Pelo contrário, me atraiu por suas descrições pouco comuns e referências certas nos lugares certos. O enredo é simples, mas com a ajuda da narrativa, ficou muito bom. O que não engoli foi o elemento “fantasmas” deste conto. Só pude notá-lo com a ajuda dos comentários dos colegas. Uma metáfora. Analisando em retrospecto até pode fazer sentido para o contexto, mas essa ideia não me comprou. Nesse aspecto, acho que o(a) autor(a) deveria revisar a inserção desse elemento no conto. Parabéns de qualquer modo.

  7. Weslley Reis
    30 de dezembro de 2013

    Achei realmente boa a visão do autor. Me soou original. As divagações do personagem não se mostraram chatas para mim, já que gosto bastante de um viés psicológico na trama.

    Consegui me colocar dentro da história mesmo com os paragrafos longos e afins.

    Parabéns.

  8. Ryan Mso
    28 de dezembro de 2013

    Gostei bastante da narrativa e do texto, é mais um que acho ter bastante potencial. Mais um texto (acho que você pode trabalhar ele bastante).

    Parabenizo a autora pelo excelente trabalho.

    Obs: Antes de postar o comentário fui ler os dos demais colegas, e achei engraçado que alguns não gostaram do tamanho do texto, eu acho que ainda está pequeno! Hahaha

    • José Geraldo Gouvea (@jggouvea)
      29 de dezembro de 2013

      Eu também achei isso engraçado. O texto tem tanto potencial para desenvolver, tanta lacuna para preencher, e a turma achando que ele já está grande. Acho que ele parece grande por causa de seu tom reflexivo, mas esse não é um defeito só dele. Tem outros contos aí sendo incensados que também são lentos no ritmo narrativo.

      Quanto a ler os comentários alheios, cada dia me convenço de que isto faz mal. Se a gente lê e concorda, a gente tende a aumentar o elogio ou a crítica. Se a gente lê e discorda, começa a catar pêlo em ovo para desqualificar o comentário.

      Acho que o ideal seria cada um ler e comentar o que lhe der na telha, sem se preocupar se está indo em favor ou contra à corrente.

  9. Gunther Schmidt de Miranda
    24 de dezembro de 2013

    Após ler uma série de observações sobre os comentários por mim postados neste concurso e suas respectivas respostas (infelizmente) concluí que fui tomado de certa pobreza de espírito. Em certos momentos nem fui técnico, muito menos humilde. Peço perdão a este escritor pelo comentário até maldoso por mim desferido. Que Allah, o Clemente e Misericordioso tenha piedade dos erros cometidos por mim neste concurso. Sendo assim, apenas me resta ser breve: o trecho “amigo de Deus” é que ficou fora de esquadro. Seu esforço é louvável e deposito esperança no próximo.

  10. Caio
    20 de dezembro de 2013

    Olá. Tem uma coisa que eu acho que melhoraria muito… Em nenhum momento do texto eu me situei de verdade, nunca pensei “ok, esse é ismael, ele é isso e está nesse lugar, agora vamos ver o que acontece”. Eu sabia que era nas montanhas, depois achei que era algum tipo de retiro/monastério, mas que nunca fechei uma imagem sólida na minha cabeça, entende? Aí ir lendo sem essa base de entendimento é exigir demais da abstração do leitor, na minha opinião.

    A gente segue lendo sobre coisas que só vão fazer sentido no final, mas ainda está tentando entender quem, onde e por que. Mistério é legal, mas se você deixa demais pra ser entendido só depois, só depois, você está minando a primeira leitura. Eu me senti segurando as informações que eu coletava, nenhuma delas completa ou reveladora, e foi somando e somando e foi ficando pesado e distrativo.

    Eu sabia que ele fez parte de um grupo que ia de cidade em cidade no deserto, não sabia por que, isso era pro final. Sabia que ele estava na montanha, em algum tipo de construção, por que? Não, isso é só no final. Eu sabia que o passado dele o condenava, ele falava muito disso, por que? Ah, essa é pro final, espera. Eles estavam em guerra, sendo perseguidos, muita gente tinha morrido pelo caminho…. calma! No final você entende.

    E aí a gente não se prende. Vai se prender no que? A gente não sabe nada… o que a gente sabe vem pela metade. Não acho que um texto tem que colocar tantos obstáculos pro leitor. Para o que o valha, minha dica é, quando a vontade for de fazer algo assim, que vai se encaixando bem lentamente pra fazer sentido no final, que você crie algo presente e concreto e deixe esse mistério correndo paralelo. Centra o conto na vida dele no dia anterior e no dia que os encontram, por exemplo, com pessoas e motivos claros e apenas acenos do enredo maior. Nos dá uma história imediata pra se importar, e a gente só vai guardando no fundo: “tem algo maior aí… o que será que é?”, e no final tudo se encaixaria perfeitamente e a satisfação seria grande. Sem esse enredo menor e mais concreto/imediato, eu acho que fica tudo desnecessariamente difícil.

    Eu aplaudo bastante a escrita e o comprometimento ao plano, o trabalho que deve ter dado arquitetar tudo desse jeito. É só que acredito que a leitura ainda precisa ser divertida/interessante. É uma boa história e foi bem pensado. Sugiro pensar também no lado do entretenimento.

    E no fim eu não sei se consegui fazer sentido, mas é isso. Tomara que ajude de alguma forma, abraços

  11. Jefferson Lemos
    19 de dezembro de 2013

    Apesar do texto muito bem produzido, em alguns momentos o achei cansativo e fui devagar quase parando.
    Parabéns pelo texto e boa sorte!

  12. Gustavo Araujo
    18 de dezembro de 2013

    Bem, evidentemente, o autor do texto entende da matéria. Bem escrito, pontuado por referências interessantes e por descrições instigantes. Na maior parte da narrativa, é possível sentir-se ao lado de Ismael e partilhar de suas angústias. Mas, por algum motivo, o conto não engrena. Talvez seja por causa das longas divagações que o tornam por vezes enfadonho.

    Também não consegui comprar a ideia de que Ismael, preparado para uma morte gloriosa, até mesmo desejando-a, tenha se acovardado no momento mais importante de sua existência, escondendo-se em um amontoado de palha. A razão para tanto não ficou bem clara para mim. Poderia ter sido o fato de ele ter-se apaixonado por Fátima – e ao que tudo indica era -, mas, sinceramente, o texto deixou a desejar quanto à demonstração disso. Um aprofundamento nesse aspecto seria bem vindo. Do mesmo modo, a consciência da falha para com Allah (ou para com Ahab) e a consequente busca pela redenção me pareceram descritas de modo apressado, o que foi uma pena.

    De todo modo, é um conto acima da média.

  13. bellatrizfernandes
    18 de dezembro de 2013

    O texto é poderoso, não nego. Percebi as referências à morte de Bin Laden. Achei que era só uma ilusão, mas fiquei feliz que não era.
    Também gostei, como os outros comentaram, do sentido metafórico do “fantasma” e gostei do mesmo ensinamento repetir na cabeça dele.
    O grande problema é o começo do conto: Me desculpe – mesmo! – e eu me odeio por dizer isso, mas ele é dolorosamente chato. Muito descritivo, e de parágrafos extensos, difíceis de ler. Sua linguagem já é pesada e densa. Parágrafos menores iam ajudar o leitor a navegar.
    Acho que é isso.
    Muito bom.
    Parabéns!

  14. Inês Montenegro
    18 de dezembro de 2013

    Algumas das frases estão demasiado longas, dispersando a atenção do leitor, mas de um modo geral a escrita é boa. O enredo encontra-se bem estruturado, tem um setting original, contudo, por vezes enrola demais. Contrariamente ao habitual, gostei do final em aberto.

  15. Ana Google
    18 de dezembro de 2013

    Hmmm, tenho sérias desconfianças sobre a autoria desse texto! Rsrsrs!

    É um trabalho fantástico, muito bem elaborado. Os personagens são super bem construídos, o cenário é um tanto diferenciado. Gostei da presença do fantasma metafórico de Ahab, assombrando os pensamentos de Ismaël! Meus sinceros parabéns!!!

    Atenção somente para os seguintes trechos: “mas sua alma nunca se curvou. Mas a sua alma era como um sabre de aço”. A repetição do “mas sua alma” não soou bem! Creio que tenha passado despercebido! Também tem esse: “”havia de palha de arroz”, creio que o correto seria “havia palha de arroz”. Tem mais um erro que achei mas acabei perdendo!

    Abraços e parabéns!!!

  16. Bia Machado
    18 de dezembro de 2013

    Um conto bem escrito, não há dúvida, mas que não me conquistou, e por isso o achei mais longo do que devia ter sido, em algumas partes me impacientei até. Li no mesmo dia em que foi postado, mas fiz uma releitura agora e tenho a mesma impressão. Acredito que este conto seja daqueles: ou gosta, ou não gosta, sem meio termo. Enfim, te desejo sorte, pois foi um bom trabalho.

  17. Marcelo Porto
    17 de dezembro de 2013

    Um trabalho denso e extremamente bem realizado.

    Quem escreveu domina magnificamente a prosa, no inicio pensei ser uma fantasia medieval, lá pelo meio estranhei as armas de fogo e o ambiente de guerra, quando li a última frase, foi como se um quebra cabeças se montasse magicamente na minha mente, revelando toda a plenitude da narrativa.

    Descobri o “fantasma metafórico” lendo os comentários. Mesmo achando que não aderiu plenamente ao tema, é o melhor conto que li até o momento e já está no meu pódio!

  18. Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
    17 de dezembro de 2013

    “Ahab não tinha esperanças, mas um destino” – Gostei disso. Confesso que fui ficando com preguiça de ler o conto todo e não consegui me ligar à narrativa. Gostei do final, teve impacto e surpresa. Não curti a dedicatória, pois considerei sem propósito. Boa sorte!

  19. Cácia Leal
    17 de dezembro de 2013

    O texto está muito bem escrito, não há o que duvidar. A escolha das palavras, muito bem trabalhadas, muitas que eu nem conhecia, como fímbria (!!!) e bilhas (!!!)… de onde vc tirou essas??? Você demonstra muito conhecimento e cultura. Eu até estava gostando da história e gosto da ideia do anti-herói, mas não gostei do final nem da dedicação no final não me agradou. Uma dúvida: O personagem-narrador se casaria com Fátima por pena? Umas questões que precisam ser revistas: o coração sair da boca???, está mal explicado. E ele sai “pela” boca; outra: como “seu” fosse atraído, o certo seria “se eu”. Parabéns pela sua escrita!

  20. Thata Pereira
    17 de dezembro de 2013

    A história não me satisfez, mas gostei muito da escrita.

    Espero ter lido ou ler outro conto do autor(a) para tirar a má impressão causada por gosto pessoal mesmo.

    Boa sorte!

    • Michele
      17 de dezembro de 2013

      Se é só o gosto pessoal que travou sua apreciação do texto, devo encarar isso como elogio. Não gostar apenas por uma questão de gosto é significa que o texto possui tão poucos defeitos que só sobrou argumentar com o gosto…

      • Thata Pereira
        17 de dezembro de 2013

        Considero que você pode encarar como um elogio sim, mas no sentido que gostei de como escreve, mas a história em si não me agradou. O que não quer dizer que não posso gostar de outros contos seus… foi isso que quis dizer. Espero que tenha compreendido.

  21. Gunther Schmidt de Miranda
    17 de dezembro de 2013

    Se o texto se refere á um muçulmano já é estranho o mesmo ter a pretensão de ser “amigo de Deus”. O muçulmano é servo, não filho, muito menos amigo!
    Um muçulmano não acredita em fantasmas: acredita em Allah e em seus anjos!
    Apesar de bem escrito, com poucos erros, não gostei.
    Parabéns pela tentativa, mas ficou ruim…

    • Michele
      17 de dezembro de 2013

      Ahab não é um fantasma real (existe isso?), mas um fantasma metafórico. Ele é uma lembrança que assombra a mente de Ismaël. Enfim, uma sutileza que nem todos perceberiam.

      Obrigado por apontar a inconsistência em relação a ser “amigo de Deus”. Realmente este trecho precisa ser mudado.

      • Ricardo Gnecco Falco
        18 de dezembro de 2013

        Gentem… “Jurava” que a Michele era o Gunther… Não sei por quê…
        . 😉 .

  22. Ricardo Gnecco Falco
    17 de dezembro de 2013

    Não gostei. Mas, não gostei da história. E isso é pessoal e ponto. Vale, portanto, ressaltar que o texto está bem escrito. Aproveito, inclusive, já me desculpando pela infidelidade ao mote retratado, para indicar ao autor um trecho onde ficou faltando uma preposição, que deve ter passado batido na revisão:
    “Se houvesse algum mal­dito cão infiel do lado de fora ele atiraria através __ porta assim que girasse a maçaneta.”
    Um abraço e boa sorte!

  23. Frank
    16 de dezembro de 2013

    O texto está muito bem escrito. Além disso, a perspectiva de quem conta, diferente daquela que a maioria de nós está acostumado a ter, vai contra o senso comum (mostra o outro lado). A forma do narrador referir-se à sua causa realmente seria aquela que eu esperaria de alguém a serviço do tal profeta, ou seja, me careceu bastante crível o que o narrador pensava. Confesso, porém, que as reflexões excessivas de Ismael num estilo que inicialmente pouco revelaram, pouco me agradaram. Parecia que me negavam informação me forçando a ler até o final. No mais, não me agradou a revelação de quem seria o “chefão”…um assassino continua sendo assassino mesmo quando a história é contada de forma favorável, mas esse último ponto é questão de gosto pessoal.

    • Michele
      17 de dezembro de 2013

      Só porque o personagem é detestável, isso não quer dizer que o texto o seja. Vários textos famosos incluíram protagonistas anti-heróis. Entre os exemplos mais importantes, o tal Chuck Palahniuk, cujos “heróis” são criaturas horríveis e escatológicas. Ou o Humbert, de “Lolita”, do Nabokov, que era um pedófilo desgraçado.

      Apresentar um herói “do outro lado” é um exercício mental de empatia que muito autor não faz, preferindo criar personagens iguais a si mesmo ou ao seu leitor.

      Quem busca na literatura apenas aquilo que é, ou que já sabe, aprende bem menos do que os que procuram também outras visões.

      Por favor, dê uma outra chance ao texto, procurando encarar o Ismaël e o Ahab como tentativas de compreensão da mentalidade fanática. Talvez uma comparação deste texto com as suas inspirações originais (“Moby Dick” e a lenda de Abrão e Ismael, na Bíblia) lhe deixe mais terno para com o protagonista.

      P.S. – A conexão entre Moby Dick e os personagens se deu quando eu, num momento de livre-associação freudiana absoultamente louco, lembrei que o camelo é chamado de “navio do deserto”.

  24. Marcellus
    16 de dezembro de 2013

    Pensei muito antes de comentar este texto e, ainda assim, não tenho certeza do que escrever. Nem sei ao certo se gostei, para dizer a verdade.

    Este texto é, para mim, uma esfinge.

    Como ponto positivo, a descoberta do “fantasma” só depois da última frase. Um fantasma poderoso, que paira sobre nossas cabeças e mudou os rumos do mundo. Mas que não é o protagonista.

    Precisarei ler novamente, refletir melhor. E isto já é um grande feito, para qualquer autor: incutir no leitor a necessidade patológica de refletir sobre seu texto. Parabéns.

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Publicado às 16 de dezembro de 2013 por em Fantasmas e marcado .
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