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Detox Literário.

O Jarro – Conto em Série – Parte II (Marco Piscies)

V

Samuel não conseguiu voltar a dormir. Cada tentativa de fechar os olhos era frustrada por um som diferente. Algo na cozinha. Passos na loja no andar de baixo. Vozes que poderiam ser o vento, sombras projetadas na parede.

O Sol mal nascia quando ele se levantou e encheu uma mochila com algumas mudas de roupa e outros itens essenciais. Desceu e, sem pensar muito no que fazia, foi direto para a estação de trem mais próxima. Não encontrou passagens para Bishopstone: o lugar não tinha estação. Ao invés disso comprou uma passagem para Brighton, que era a cidade mais próxima. Foi até um Starbucks e comprou um café. Usou o copo descartável para esquentar as mãos.

Na rua onde morava, a cidade ainda acordava. Uma placa rústica balançava contra o vento, as juntas de ferro rangendo sobre a porta da sua loja de antiguidades. Na madeira, o nome talhado balançava: Orbuculum. Enquanto esperava a condução chegar, Samuel lembrou-se do seu primeiro encontro com Isaac há dois anos, quando o jovem entrou na loja e fez soar o sino. O garoto imediatamente se enamorou da bola de cristal que descansava sobre uma almofada em um canto da loja há gerações. Era o item mais caro e mais chamativo do lugar, e ele a comprou no primeiro dia em que pôs os pés ali. Disse que sentia uma energia benigna que emanava da esfera. Seguiu-se uma longa conversa. Isaac Danpora sabia de tantas coisas sobre misticismo que até mesmo Samuel, considerando-se um especialista no ramo, ficou assombrado. A amizade entre os dois floresceu fácil.

E agora, ele ia para o seu enterro. Sentiu o coração apertar. Bebeu um pouco mais de café.

Na vitrine da loja, longe dali, as bonecas de porcelana assistiam os transeuntes na rua. Na maçaneta da porta, uma placa: “fechado

 

 

VI

Com as mãos ainda trêmulas, Cory olhava para o convite em choque. Sabia que as alucinações haviam ido longe demais daquela vez, e que tinha que fazer algo a respeito. Mas as únicas pessoas em quem confidenciaria aquele tipo de coisa não estavam mais ali. Seu coração estava partido no meio; uma metade respirava aliviada por entender que toda a sua conversa com Skye no telefone não havia acontecido de fato, e a outra metade estava de luto pela notícia que acabara de ler.

Seria aquilo também uma parte da alucinação? Estaria mesmo segurando o convite para o funeral de Isaac em suas mãos?

Simon. O nome do seu filho veio como um soco através das memórias quebradiças. Em uma tentativa de reafirmar que tudo aquilo não havia sido real, voltou para a garagem e achou o celular no chão. Seu histórico de ligações não acusava nenhum contato recente de Skye. A data na tela, porém, chamou-lhe a atenção: dezoito de Setembro. A festa havia acontecido há seis dias. Não era a primeira vez que vivenciava perda de tempo, mas aquela havia sido a maior até então. Teria dormido por seis dias seguidos?

Súbito, como se a realização moldasse a realidade, sentiu fome, e a garganta queimou. Bebeu dois copos de água da torneira. Na geladeira, desligada pela falta de luz, a maior parte da comida havia estragado. Encontrou um pacote de salgados ainda fechado no armário e o devorou, empurrando tudo para baixo com mais água.

Seis dias. Certamente deveria estar morto agora. Não conseguia pensar em uma explicação, mas já há algum tempo não conseguia explicar muito do que acontecia em sua vida.

Cory vestiu a jaqueta e pegou o capacete. As feridas nos punhos já cicatrizavam. Olhou-se no espelho: hematomas e cortes, e uma expressão sombria. Montou na moto e buscou por Bishopstone no celular. Parecia a única coisa a ser feita agora, como se estivesse sentado na arquibancada e assistisse a sua vida ser ditada por um convite e um traço de esperança. Sentiu o peito apertar, mas as lágrimas não vieram.

Com um pisão a moto roncou, e ele acelerou.

 

VII

O relógio na parede da sala marcou a meia-noite, e Thomas ainda estava sentado no sofá, com as luzes apagadas e o convite nas mãos. A iluminação pública invadia o ambiente apenas o suficiente para que ele pudesse ler e reler o texto no papel.

Por instinto, não havia fechado a janela, como se ela agora fizesse parte de uma cena criminosa. Minutos atrás ele havia recuperado a filmagem da câmera externa da sua casa, e o vídeo só o deixou mais confuso. Fosse quem fosse a pessoa que realizou aquela pegadinha, sabia o que estava fazendo. Havia um espaço em branco na filmagem; o equipamento parou de funcionar justamente quando o arrombamento aconteceu. Em um momento a câmera capturava o exterior da sua casa, a noite chuvosa e monótona em uma espécie de loop cotidiano de Londres. Então, estática. Quando o aparelho voltou a funcionar a janela da sala já estava aberta e o ato consumado.

O que o intrigou não foi a falha no aparelho – pessoas com certa experiência em arrombamentos saberiam neutralizar uma câmera simples. O que realmente o deixava com a pulga atrás da orelha era que, pouco antes da falha, a câmera havia capturado alguma coisa. Um vulto; uma sombra de algo se aproximando, mas a aproximação vinha de cima, do telhado, e ele não conseguia imaginar alguém rápido o suficiente para descer daquela altura, abrir a janela trancada, deixar o bilhete sobre o sofá e sair em tão poucos segundos. A não ser que tivessem agido em grupo.

Mas, se fosse o caso, para que tanto esforço apenas para entregar o convite para um funeral?

O caso era estranho demais para não ser dividido com Edward, seu amigo do fórum online de atividades paranormais. De qualquer forma, Edward era tão amigo de Isaac quanto ele, e se o convite fosse verdade, ele merecia saber da notícia. Como a noite já estava avançada demais, decidiu enviar apenas uma mensagem de texto. Quando pegou o telefone, porém, notou uma chamada não atendida do próprio Edward. Thomas estivera mergulhado demais nas próprias reflexões para ter notado as vibrações do celular.

~~~~~

Por alguns minutos, o mundo foi pintado de vermelho. Edward estava acostumado com a cena e o processo. Para ele, revelar fotos era um misto de terapia e hobby. A luz vermelha mal iluminava o laboratório, como a noite banhada por uma lua de sangue.

Sequer havia tentado dormir naquela noite. Sabia que não conseguiria, não após ter lido o convite. Como Thomas não havia atendido a sua ligação – provavelmente já estaria dormindo – dedicou-se a revelar a foto que havia tirado antes.

O telefone tocou no escritório. No papel fotográfico, a imagem ainda ganhava nitidez. Deixou o processo seguir naturalmente e foi atender a ligação. Era Thomas, retornando a sua chamada de quase uma hora atrás. Em poucos minutos os amigos atualizaram um ao outro sobre os acontecimentos daquela noite. Após a troca inicial de informações, a dupla de investigadores digeriu os fatos em silêncio. Na janela de seu escritório, Edward observou a noite que se recuperava da chuva recente.

“Acha que essa carta é verdade?”, perguntou.

“Eu não entendo por que todo esse esforço para entregar um convite de funeral”

“Uma brincadeira dele, então? Isaac nunca foi de pregar peças assim. Ele some por seis meses e volta com uma pegadinha?”

“Não sei. Pode ser uma armadilha, também. Alguma espécie de esquema elaborado para nos levar para algum lugar isolado. O modus-operandi é comum: a carta é urgente, faz que tomemos decisões precipitadas”

“Armadilha? Acha que estão tentando nos sequestrar?”

“Não sei. Por algum tempo eu suspeitava que tentariam alguma coisa contra nós, baseado nos tópicos que discutíamos no fórum. Mas hoje em dia não temos investigado nada do tipo. Tudo está muito estranho”

Thomas afundou no sofá da sala. Sentia o corpo tão pesado quanto a mente. No andar de cima, Veronica abriu a porta do quarto e desceu as escadas. A esposa olhou-o com a expressão confusa de quem ainda tenta absorver o mundo ao acordar.

“Thomas? Está tudo bem?”

Thomas colocou a ligação no “mudo”.

“Está sim, amor. Estou no telefone com o Ed”

“Aconteceu alguma coisa?”

Ele pensou na carta. Pensou em Isaac.

“Não, não. Está tudo bem”

Veronica foi até a cozinha beber um pouco de água, então retornou ao quarto. Thomas retomou a conversa.

“Mas e se for verdade?”, falou Edward. “É do Isaac que estamos falando aqui”

“Você está certo. Não sei se o convite é verdade, mas o que você descreveu, e o que eu presenciei… não são casos comuns. Estivemos procurando coisas assim as nossas vidas inteiras. Agora que nos confrontamos com o demônio, não podemos vacilar”

“Então você vai?”

“Vou”

“Eu diria que é perigoso irmos juntos, mas eu não vou deixar você ir sozinho. E, se for tudo verdade, preciso estar lá para dar minhas condolências à família”

“Te busco amanhã de manhã, então?”

“Fechado”

Thomas desligou o telefone com mais perguntas do que respostas. Levantou-se em um movimento afoito demais, e as costas reclamaram. Andou a passos lentos até a garagem, deixando a dor passar. Na garagem, encontrou um dos seus muitos kits que ainda guardava mesmo após a aposentadoria. Pegou o pó prateado e foi até a sala coletar digitais. Queria passar na Scotland Yard antes da viagem no dia seguinte, e usar seu status de “ex-funcionário exemplar” para cobrar alguns favores que ainda podiam ser cobrados.

Por mais que tentasse, porém, não encontrou digital alguma. A janela, o sofá, o envelope: todos estavam incólumes. Estava lidando com um profissional – ou algo sobrenatural. Para adicionar à crescente lista de mistérios, o pó prateado, apesar de não ter ajudado com as digitais, reagiu com outras partículas, destacando o que parecia ser uma camada de pó finíssimo, semitranslúcido, como um rastro de poeira peculiar que o meliante havia deixado para trás, traçando um claro caminho da janela ao sofá, e então voltando à janela. Ele não fazia ideia do que era aquilo, mas coletou o material mesmo assim. Alguém nos laboratórios da Scotland Yard saberia informá-lo.

~~~~

Ao desligar o telefone, Edward voltou ao laboratório mergulhado em vermelho. A foto estava pronta. Nela, uma mão magra e de pele cinzenta, com os dedos alongados e afiados, nascia da escuridão e ajeitava, com cuidado, seu convite no chão.

5 comentários em “O Jarro – Conto em Série – Parte II (Marco Piscies)

  1. Priscila Pereira
    3 de abril de 2024

    Olá, Marco! Tudo bem?

    Gostei desse capítulo! Tudo muito misterioso ainda. Consegui acompanhar de boa e ainda lembro do primeiro. O enredo está tomando um rumo muito interessante. Esperando o próximo capítulo! Até mais!

  2. Marco Aurélio Saraiva
    2 de abril de 2024

    Valeu, Angelo! O EC vai dar uma pausa agora por causa do desafio deste mês, mas depois volto a publicar aqui a série!

  3. Kelly Hatanaka
    1 de abril de 2024

    O conto continua muito interessante.
    Apesar de gostar do formato, meio como uma novela, acho difícil de comentar. Acho que é fácil os comentários se tornarem repetitivos. Além disso, por ser uma trama de suspense, acho que pode ficar complicado seguir o fio da meada depois de algum tempo.

    De qualquer forma, a história está muito instigante!

    • Marco Aurélio Saraiva
      2 de abril de 2024

      Entendo, Kelly! Sim, estamos testando este novo formato aqui no EC. Eu gosto de escrever assim, mas você está certa, pode ser confuso para algumas pessoas. Vamos ver como este se sair!

  4. Angelo Rodrigues
    1 de abril de 2024

    Olá, Marco,

    a trama está se mostrando mais complexa. No parágrafo final, surge algo que me pareceu extraordinário.

    O conto continua com um clima legal, com suas personagens trabalhando como deve ser.

    Espero pela terceira leitura.

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Informação

Publicado às 31 de março de 2024 por em O Jarro e marcado .