EntreContos

Detox Literário.

Borboletas Vermelhas – Conto (Antonio Stegues Batista)

Rio de Janeiro, RJ- 2018

Sem ideias para escrever seu próximo livro, Murilo Xavier estava sentado diante do computador pensando se deveria abandonar a carreira de escritor e se dedicar somente ao trabalho de jornalista, quando um sinal sonoro interrompeu seus pensamentos.

Um e-mail acabara de chegar. O remetente era uma mulher chamada Cassandra Keller, nome artístico de Isabel Malta, ex -atriz de cinema. Ela pediu para ele escrever a história dela em um livro. Anexo estava um número de telefone para contato.

Murilo lembrava vagamente de uma atriz chamada Cassandra Keller. Acessando o Google, digitou o nome dela na barra de endereço e encontrou algumas informações na Wikipédia.

“ Isabel Conceição Malta, nasceu em Itabuna, Bahia, em 21 de outubro de 1948— ( 70 anos).  Em 1966 ela ganhou uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, passando a morar e a estudar nos Estados Unidos onde tornou-se atriz de cinema usando o nome artístico de Cassandra Keller. Voltou para o Brasil em 1982. No ano seguinte, a atriz sofreu um acidente de carro e a partir desse dia desapareceu da mídia e do cenário artístico. Seu paradeiro é desconhecido. Muitas teorias foram criadas, uma delas diz que Cassandra ficou com o rosto desfigurado e se escondeu do mundo “.

Murilo considerou que ali estava o assunto que ele procurava para escrever. A revelação de que a atriz estava viva e morando no Brasil, despertaria a curiosidade e o interesse de muita gente. Pegou o celular para marcar uma entrevista. Quem atendeu foi a secretária de Isabel, Susana Vergara.

O endereço que ela deu era Chácara do Salgueiro, no Alto da Boavista. De Benfica até lá, de carro, foi uma viagem de 30 minutos. A casa era em estilo colonial, cercada pelo verde. Réstias de alhos estavam penduradas em cada lado da entrada.

Ele bateu e logo surgiu uma mulher de uns 40 anos com os cabelos presos num coque.

— Boa tarde. Sou o Murilo

— Sou a secretária, Susana. Dona Isabel espera pelo senhor na biblioteca.

Susana notou a curiosidade dele pelos alhos na porta.

— A madame acha que isso afasta os maus fluidos.

— Pensei que era para afastar vampiros. — disse Murilo, em tom de brincadeira.

— Também. – respondeu a mulher sem se alterar.

Cassandra Keller, aliás, Isabel Malta, estava sentada numa poltrona perto da janela. Murilo a cumprimentou e foi convidado a se sentar no sofá em frente.

— Então? Está disposto a ouvir a minha história e escrever o livro?

— Claro. Colocarei nesse trabalho todo o meu talento e conhecimento literário.

— Sei disso. Fiz uma boa pesquisa até escolher o senhor. Podemos começar? Veio preparado?

Murilo retirou um gravador pequeno de sua pochete e colocou sobre a mesinha de centro.

— Por enquanto é só o que preciso.

— O que você quer saber primeiro?

— Algumas informações peguei da internet.

— Sim, grande parte de minha história é conhecida. Minha adolescência, os filmes que trabalhei. O que vou contar ninguém sabe.

Em 1975 eu estava morando em um apartamento no Gramercy Park, em Nova Iorque. Certo dia resolvi visitar o Metropolitan Museum Off Art. Estava lá, olhando as obras quando uma voz soou perto de mim.

— Lindo, não?

Olhei para o lado e vi uma jovem loira, de olhos verdes, muito bonita.

— E quem não gosta de Van Gogh? – respondi, encantada.

Resumindo, fomos caminhar no Central Park para continuar a nossa conversa e nos conhecer melhor. O nome dela era Adele Franco Arnel, tinha a minha idade, 27 anos. Era modelo exclusiva da grife Valentina Mordecay. Morava em Nova Jersey. Disse que estava de férias, passeando por Nova Iorque.

Suzana entrou na sala, pediu licença e anunciou:

— A doutora Cíntia chegou.

— Podemos continuar outro dia? — perguntou Isabel. Murilo desligou o gravador e se levantou.

— É claro. Telefonarei antes.

Susana pediu para ele acompanhá-la até o escritório, onde ela lhe deu um documento para ler e assinar, e um cheque para despesas pessoais. Era um contrato de trabalho onde ele se comprometia a escrever a história para fins de impressão e comercialização, por um valor estabelecido em anexo. Valor que ele achou justo. Havia uma cláusula de confiabilidade. Se por qualquer meio revelasse que estava escrevendo a história de Cassandra Keller, que a usasse para outro fim que não fosse o do contrato, ele seria processado e multado.  Murilo assinou o documento e indagou:

— Dona Isabel está doente?

— Ela tem diabetes. A doutora Cintia faz exames periódicos e aplica insulina.

— Então, não tem problema continuarmos a entrevista?

— Eu creio que não. A doutora não proibiu.

Logo que chegou em casa, Murilo ligou o gravador e enquanto ouvia, digitava no computador o que a mulher havia contado.

****

Quando voltou à casa de Isabel na semana seguinte, ela estava sentada no mesmo assento.  Usava um vestido curto até um pouco abaixo do joelho e, apesar das sombras, Murilo podia ver uma pequena borboleta vermelha tatuada no tornozelo direito da perna dela.

Ele ligou o gravador e Isabel continuou a relatar suas memórias.

— Foi no segundo encontro com Adele que começamos a namorar. Foi amor à primeira vista e sabíamos que dali para frente, uma não viveria sem a outra. Num sábado fomos a uma boate. Dançamos e bebemos uns drinques. Dois rapazes se juntaram a nós, John e Bob. Eram simpáticos e divertidos. Estavam de férias à procura de diversão e boa companhia.  Aquela conversa de sempre. Bob nos convidou para ir ao apartamento dele, comer uma pizza e ouvir música.

Eu estava meio tonta. Adele foi quem aceitou o convite e me arrastou com eles para o apartamento num motel na Summit Avenue. Logo que entramos eles nos agarraram. Bob enfiou o rosto no meu pescoço. Johnny jogou Adele sobre um sofá e começou a tirar a roupa dela.

Ela não queria transar e o empurrou. Tentei interferir, mas Bob me segurou por trás e incentivou o colega a violentar minha namorada. Quando Johnny conseguiu abaixar as calças, Adele espichou o braço e pegou um saca-rolhas que estava sobre uma mesinha junto a uma garrafa de vinho.

Num gesto violento, Adele cravou o saca-rolhas no pescoço do rapaz. Em choque, ele levou a mão ao ferimento. O sangue esguichou entre seus dedos. John desabou. Bob me largou e atirou-se sobre Adele, impedindo que ela usasse o saca-rolha novamente e começou a estrangulá-la. Ela me olhou de olhos arregalados pedindo ajuda. Agarrei a garrafa de vinho e quebrei na cabeça do rapaz. Ele recuou e num ímpeto, Adele estraçalhou a garganta dele com o saca-rolhas.

No silêncio que se seguiu, só se ouvia a nossa respiração agitada. A essa altura a minha semi embriaguez havia desaparecido.

Adele largou a arma improvisada, lambeu os dedos sujos de sangue. Um brilho de vitória relampejou em seus olhos. Me abraçou e me beijou com sofreguidão. Correspondi com igual tesão. Transamos ali mesmo, entre os dois corpos.

A primeira coisa que fizemos no dia seguinte, foi ler os jornais. Em três jornais locais saiu a notícia da morte dos dois rapazes. A reportagem afirmava que o autor, ou autores eram desconhecidos pela polícia. Também era desconhecido o motivo dos homicídios. As investigações pela polícia prosseguiam.

Tivemos o cuidado em desfazer os vestígios de nossa presença no apartamento. Ninguém nos viu entrar ou sair. Naquele tempo ainda não existiam câmeras de monitoramento nas ruas e nem nas residências. De certa forma ficamos tranquilas, aquilo nos deu segurança. Não tivemos remorso se queres saber.

A partir daquele dia, nosso relacionamento se fortaleceu. Eu até gostei de ver John desesperado, tentando estancar o sangue do pescoço. Para mim parecia que borboletas vermelhas estavam saindo do pescoço dele.

Isabel calou-se. Fez uma pausa, olhou para Murilo esperando ver a reação dele, mas o jornalista não disse nada.

— Por enquanto é isso. Continuaremos amanhã.

Disfarçando o seu espanto diante das revelações, Murilo desligou o gravador, colocou na pochete, despediu-se e saiu.

Susana o acompanhou até a porta. Antes de ir embora, ele indagou:

— É verdade o que Isabel está me revelando? Os assassinatos?  Achei que ela contaria a história dela e não uma ficção.

Suzana olhou para ele, séria.

— Trabalho há 2 anos para dona Isabel. Ela me conta muitas histórias, se são verdadeiras ou não, não sei. Se houve realmente um crime, já prescreveu. O senhor vem amanhã no mesmo horário?

Murilo sacudiu a cabeça e foi embora.

***

No dia seguinte, Isabel voltou à sua narrativa.

— Era verão. Os dias estavam quentes e resolvemos passar o fim de semana na praia. Alugamos um apartamento em frente ao mar, em Long Beach. De manhã vestimos biquínis e fomos para a praia. Ficamos um tempo nos bronzeando e depois colocamos nossos apetrechos no nécessaire e saímos a caminhar.

Tinha muitas pessoas na praia. Notamos que um homem de bermuda jeans nos seguia, admirando nossas bundas. Devia estar ao redor dos 40 anos. De vez em quando Adele olhava para trás e o incentivava com um sorriso.

Percebi que ela tinha algum plano. Eu confiava nela, a seguia sem questionar. Chegamos a um ponto deserto da praia, sob um trapiche. O homem se aproximou sorridente e confiante como são os predadores amorosos praticantes do sexo casual.

Falamos banalidades como é o início de toda conversa informal e em seguida ele se aproximou de mim, me enlaçando com um braço e me acariciou com a outra mão. Adele assistia a cena com um sorriso estranho. Ela meteu a mão dentro da bolsa e pegou o punhal que tinha comprado dias antes.  Golpeou as costas do homem várias vezes com fúria causada pelo ciúme, sabia que em seguida seria tomada pelo prazer porque aquilo fazia parte de seu ato sexual primitivo, selvagem. O homem caiu, a vida se esvaindo lentamente. Enquanto ele agonizava, abracei Adele e a beijei. Transamos recostadas sobre o cadáver do sujeito. Aqueles assassinatos despertavam nossa libido. Transar sobre os cadáveres aumentava nosso prazer.

 

Quando Suzana acompanhou Murilo até a porta, ele parou antes de sair e a encarou. Não estava convencido que Isabel contava uma história real.

— Não entendo como ela pode lembrar pequenos detalhes de algo que aconteceu 30 anos atrás.

Com seu jeito calmo e impassível, Suzana respondeu:

— Dona Isabel tem uma memória privilegiada. É o que os especialistas chamam de memória fotográfica. Até amanhã, senhor Murilo.

****

No dia seguinte, Isabel continuou a contar sua história.

— Em 1982 recebi convite do cineasta brasileiro, Sérgio Ferrão Guimarães para estrelar um filme no Brasil. Li o roteiro e gostei. Ele tinha outros projetos para o futuro e achei que seria bom para minha carreira trabalhar no cinema brasileiro. Conversei com Adele. Ela tinha encerrado o contrato com a Valentina e estava sem trabalho. A convenci a abrir uma agência de modelos no Brasil e naquele mesmo ano nos mudamos para um apartamento na Barra da Tijuca.

Em 1983, trabalhei no filme de Ferrão Guimarães. Depois que terminamos, dois dias depois, ele me chamou no escritório dele. Enquanto falava no projeto de seu próximo filme, ele abriu um pequeno envelope plástico e derramou um pó branco sobre a mesa. Imaginei que fosse cocaína e recusei usar. Mas ele me forçou a cheirar, quase quebrou meu pescoço sobre a mesa. Tive alucinações, fiquei meio inconsciente e ele aproveitou para me estuprar. Eu não sabia se estava sonhando ou não. Não consegui reagir.

Não sei como e quando cheguei em casa. Ao me ver grogue, suja, abatida e com um hematoma no pescoço, Adele tirou minha roupa, me deu um banho e me colocou na cama para dormir. Quando acordei ela estava sentada ao meu lado, queria saber o que aconteceu. Contei e ela ficou furiosa. Descobrindo o endereço de Ferrão na lista telefônica, disse que iria falar com ele. Já era noite, tentei fazê-la mudar de ideia, mas não adiantou, então fui junto. Quando chegamos na casa dele, em Jacarepaguá, o próprio abriu a porta. Ele se fez de inocente, disse que eu estava mentindo, que usei droga porque quis. De surpresa, Adele puxou o punhal da bolsa e cravou no peito dele. Ao ouvir o grito, uma mulher surgiu na sala envolta numa toalha de banho.

Ficou apavorada ao ver Ferrão caído, ensanguentado. Ela correu para o telefone, mas Adele a alcançou e desferiu várias estocadas nas costas dela. Logo em seguida descobrimos uma criança comendo cereais na cozinha. Ainda segurando o punhal sujo de sangue, Adele olhou para mim. Acho que ela pensou em matar a menina. Mas eu não concordei. Corri para a garotinha, cobri os olhos dela com a mão para não ver os pais mortos, e a levei para o carro. Deixamos a garotinha no saguão de um hospital e fomos embora.

Eu fiquei irritada com a decisão de Adele. Não pensei que ela fosse matar Ferrão. Eu não estava muito boa com as ideias por causa da droga. Discutimos. Adele ficou nervosa, se descuidou do trânsito e acabou batendo em outro carro. Só vim a saber o que aconteceu quando acordei no hospital dez meses depois. Com a batida, os dois carros pegaram fogo. Alguém conseguiu me tirar dos destroços, mas Adele morreu carbonizada.

Quando eu soube que ela tinha morrido, chorei muito. Minha companheira me apoiava e me dava forças. Sem ela me senti perdida e com muito medo de ser presa. Fiquei ainda alguns dias internada, fazendo fisioterapia. Quando me senti bem, fugi do hospital. Vendi minhas propriedades nos Estados Unidos e no Brasil, transferi meus bens e comprei essa chácara.

Isabel concluiu:

— Aqui vivo desde então. Essa é a minha história que você deve escrever com suas próprias palavras. Já pensou num título?

— Ainda não. Vou pensar nisso quando terminar de escrever.

***

Murilo decidiu fazer uma pesquisa para saber se os acontecimentos que Isabel narrou, eram verdadeiros. Havia fotos na internet. No Brasil, descobriu uma foto dela e Adele na revista Manchete. Elas foram clicadas numa festa de fim de ano no Copacabana Palace. Estavam sentadas a uma mesa. Naquele tempo Adele estava de cabelos compridos. Dava para ver uma mancha pequena no tornozelo direito dela, que devia ser uma tatuagem.

Mas, não era Isabel que tinha a tatuagem no calcanhar? Murilo olhou novamente para a mulher loura. Isabel havia mencionado que Adele era loura. Será que ela também tinha uma tatuagem no calcanhar? Ou Isabel estava mentindo? Isabel não era Isabel, mas Adele?

Continuando a pesquisa, encontrou no jornal, O Globo, a notícia do assassinato de Ferrão, acontecido no dia 23 de novembro de 1983. “ Morre o cineasta Sérgio Ferrão Guimarães. Sergio e a companheira foram encontrados mortos no apartamento do casal, em Jacarepaguá. A filha deles foi encontrada sozinha no saguão de um hospital. A polícia acredita que ela foi deixada lá pelos assassinos. A polícia não sabe o motivo do duplo homicídio. A identidade dos assassinos também é desconhecida”.

Tinha também, a notícia do acidente naquela mesma noite:

“ A atriz Cassandra Keller sofre acidente na rodovia Imperatriz Leopoldina. Ela foi internada no hospital Federal do Andaraí em estado grave. A modelo Adele Franco Arnel que a acompanhava, morreu carbonizada”.

***

Cassandra Keller, ou seja, Isabel Malta continuou a narrar os crimes que ela e Adele cometeram nas férias de verão nos Estados Unidos.

***

Murilo acabou de escrever o último parágrafo do livro e colocou o título; Borboletas Vermelhas.

Exausto, tomou um banho e foi dormir. Estava naquele estado entre a vigília e o sono, quando ouviu um farfalhar. Abriu os olhos e vislumbrou uma figura branca, etérea, aos pés da cama. Assustado, tentou se levantar, mas não conseguiu, estava paralisado. A mulher, que ele sabia ser Adele Arnel, se inclinou sobre ele e cravou os dentes em seu pescoço. Ele despertou com um pulo. Acendeu a luz, foi ao banheiro e se olhou no espelho. Havia um corte em seu pescoço e da ferida sangrenta saiu uma borboleta vermelha.

Murilo acordou com o próprio grito. Acendeu a luz, passou a mão pelo pescoço. Foi apenas um pesadelo.

****

Isabel não chegou a ver o livro pronto. Morreu de insuficiência cardíaca no hospital depois de duas semanas internada.

Murilo compareceu ao velório. Quando se aproximou do féretro, observou o pescoço do cadáver, mas não encontrou nenhum ferimento indicando que ela foi mordida por um vampiro. Vampiros não existem, pensou.

Ninguém sabia que aquele era o funeral da atriz de cinema, Cassandra Keller. Só ficaram sabendo quando o livro foi lançado, causando um rebuliço na mídia. Murilo ficou com a agenda cheia. Na noite de autógrafos, a procura para pegar autógrafo do autor era grande.

Até Suzana, a ex secretária de Isabel, entrou na fila. Murilo fez uma dedicatória especial para ela. Mais tarde, quando ele fez uma pausa para comer um lanche, a encontrou na praça de alimentação tomando chá. O livro estava ao lado, aberto na segunda página.

Murilo achou que ela parecia mais jovem, mais bonita.  Estava com os cabelos soltos, usava uma blusa bege de mangas compridas, saia justa azul-cobalto e sapatos de salto alto combinando com a saia.

— Posso me sentar?

— Claro. Esteja à vontade.

— Eu só queria lhe perguntar se você sabia que Isabel era Adele? Foi Isabel quem morreu no acidente e não Adele?

Susana não se perturbou.

— Não sei de onde o senhor tirou essa ideia. Conheci a dona Isabel no hospital há dois anos quando ela fez uma cirurgia na coluna. Minha mãe também estava internada no mesmo quarto. Ficamos amigas. Ela me contou que era a atriz Cassandra Keller há poucas semanas quando resolveu contar suas memórias em livro. Tirando a cor dos cabelos, ela e Adele eram parecidas, sim. Mas pra mim pouco importa quem é, ou quem foi minha patroa. Tenho por norma me preocupar apenas em fazer o meu trabalho com eficiência.

Susana fez uma pausa, tomou um gole de chá e continuou:

— Daqui a alguns dias o testamento de Isabel será aberto. Ela me confidenciou que incluiu a doutora Cintia na lista de herdeiros de seus bens. Aliás, semana que vem começo a trabalhar no escritório dela.

Susana fez outra pausa e encarou Murilo.

— Lembra da menina órfã que foi abandonada por ela e Adele no saguão hospital?

Murilo ficou surpreso.

— É a doutora Cintia?!

— Se Isabel fosse Adele, não teria pago os estudos dela, nem incluído na lista de herdeiros, não é mesmo? É claro que ela pagou os estudos de Cintia de forma anônima. Espero que o senhor seja honesto e honrado o bastante para guardar esse segredo.

— Não se preocupe. Guardarei.

Susana acabou de beber o chá, pegou o livro e se levantou. Sorriu brevemente, coisa que Murilo ainda não tinha visto.

— Assim espero. Até logo. A gente se vê por aí.

O ruído dos passos de Susana soou pela galeria e foi desaparecendo enquanto ela descia as escadas. Murilo sacudiu a cabeça para clarear as ideias. O perfume de Susana deixou-o meio tonto.

Naquela noite ele pesquisou na internet sobre vampiros. Encontrou um artigo que falava de outro tipo de vampirismo. Algumas pessoas tinham o dom do vampirismo sutil, principalmente as mulheres que continuam jovens e belas por muito tempo. O vampirismo é praticado por osmose, elas sugam a força vital da vítima sem tocá-la.

Seria Susana esse tipo de vampiro?

Um ruído sonoro interrompeu os pensamentos de Murilo. Um e-mail acabara de chegar

Era de um advogado. Ele convidava Murilo a comparecer no escritório como beneficiário do espólio de Isabel Conceição Malta, para abertura do testamento.

13 comentários em “Borboletas Vermelhas – Conto (Antonio Stegues Batista)

  1. opedropaulo
    6 de abril de 2024

    Um suspense que perde um pouco da força por se alongar e duplicar sua narrativa, tendo uma contada pelo jornalista, que emula o ponto de vista do leitor, e outra conduzida pela entrevistada, que nos narra a parte mais interessante da história e que, por ser em sua voz, abre para um problema que é às vezes parecer pouco orgânico e às vezes parecer que perde a oportunidade de narrar com mais elaboração os momentos de clímax.

    Então acho que uma revisão poderia ter enxugado mais o texto. Mesmo assim, os segredos da trama cativam e a dúvida que o protagonista tem também fica conosco no final!

  2. Renato Silva
    26 de março de 2024

    Legal, temos uma espécie de thriller noir aqui. Apesar de ser um conto e seu foco é o texto, eu nunca ignoro a relação da imagem com o texto. Quando é necessário usar pseudônimo, às vezes ele também faz parte, denotando ser o nome do próprio narrador-personagem; eu mesmo já fiz isso algumas vezes. A escolha da imagem casou perfeitamente com o texto. Ponto positivo.

    Temos uma (ou mais) vampira (s) no conto (?). As réstias nos acessos da propriedade me fazem pensar que alguém não desejado poderia invadir o local, por outro lado, penso que aquilo foi colocado exatamente para quem está dentro não pode fugir. E sobre a morte de Adele/Isabel, será que ela morreu mesmo?

    A Cintia pouco apareceu, mas o conto não revela se ela sabia quem matou seus pais? Acho improvável que não tinha conhecimento.

    Suzana era outra que sabia de muita coisa, mas ficou quieta e permitiu que Murilo soubesse (e publicasse) somente aquilo dito pela idosa.

    Apesar de alguns exageros aqui e ali, a história é bem interessante. Caberia numa noveleta, podendo aí prolongar alguns diálogos, expondo algumas sutilezas que fazem o leitor a criar mil e uma teorias. O conto é bem interessante e se encerrou no momento exato, deixando essa curiosidade sobre o testamento.

  3. Andre Brizola
    23 de março de 2024

    Olá, Antonio.

    Seu conto tem um ar meio Entrevista Com O Vampiro, da Anne Rice, e segue o mesmo tom da autora em sua narração. É interessante, sobretudo porque não aborda o vampirismo da mesma maneira, e sim de uma forma mais abstrata, e até mesmo metafórica.

    O enredo é a parte que brilha aqui, pois traz esses “ses” que não ficam claros, deixando pro leitor a decisão do que houve realmente. Achei que foi uma ideia acertada, sobretudo com relação à troca das duas amantes, cuja decisão fica extremamente dúbia. Achei legal.

    Há alguns pontos a serem acertados. O primeiro deles, talvez, seja dar mais “espaço” para a narrativa. Ampliar os detalhes, aprofundar as descrições e fazer com que o personagem de Murilo cresça dentro do conto, a ponto de fazer realmente diferença para a narrativa. Outra coisa é uma revisão amis apurada.

    No geral é um conto bem interessante, com um enredo cheio de suspense e descobertas, que casa bem com o tema desse estranho vampirismo das duas amantes. Parabéns!

  4. fabiodoliveirato
    21 de março de 2024

    Buenas, Antonio.

    Um continho que segue a vibe de “Entrevista com o Vampiro”. Gosto do formato, mas admito que não gostei muito da execução. Achei o conto um pouco desorganizado, sem indicadores que representem quando Isabel começa o discurso, como aspas, e alguns momentos pouco inspirados (teve dois atos, em sequência, que começam praticamente com a mesma frase, só muda algumas palavras, mas o significado é o mesmo).

    Essa desorganização atrapalha a leitura e pode causar confusão em alguns leitores. Consegui captar tudo, acho, mas estou numa fase de leitura intensa, então estou afiado.

    O ponto forte é a história, pra mim. Não é uma trama original, mas você consegue tecer um bom suspense, cativando o leitor a continuar para descobrir a verdade. Mesmo que não a entregue, hahaha. Gosto dessa ousadia. Adoro quando o autor cria pistas dúbias, dá dicas falsas e confunde o leitor. Essa é uma técnica que me atrai, pois o leitor completa a história com sua imaginação. É perigosa, pois existem leitores que querem tudo pronto, que não gostam quando o final fica em aberto ou sem aparente solução. Mas acho que vale a pena.

    Continue escrevendo, Antonio!

  5. Priscila Pereira
    19 de março de 2024

    Olá, Antônio! Tudo bem?

    Eu já conhecia esse conto e é muito bom mesmo! O senhor é muito bom com histórias policiais e de mistério e investigação! 😘

  6. Angelo Rodrigues
    18 de março de 2024

    Oi, Antônio,

    Conto legal de ler.

    Acho que o conto trilhou um caminho interessante, bem desenvolvido. A ideia de uma forma diferente de vampirismo também. Até que bem comum esse que você relatou, embora não imaginasse que fosse um vampirismo de sangue, mas de energia. Tem gente assim, é verdade.

    Algumas coisas, acho, poderiam ser revistas, uma delas é que crimes de morte não prescrevem em lugar nenhum do mundo, até onde sei, claro. O trecho

    “— Trabalho há 2 anos para dona Isabel. Ela me conta muitas histórias, se são verdadeiras ou não, não sei. Se houve realmente um crime, já prescreveu. O senhor vem amanhã no mesmo horário?”

    não corresponde aos fatos.

    O museu se chama The Metropolitan Museum of Art, e não “off Art”.

    No que diz respeito aos diálogos, que são muitos, eles sempre pegam pesado com o escritor que tenta matar o discurso falando muitas coisas. A verdade é que, em diálogos, normalmente as pessoas não “falam”, elas se “comunicam”, e de maneira geral, com poucas palavras. Diálogos mais longos acabam parecendo que a personagem está lendo um texto e não falando. Salvo quando o sujeito é mesmo uma tremenda matraca e fala pelos cotovelos, aí, infelizmente ninguém quer ouvir. O silêncio é um bem muito caro. Os diálogos da vida real são redondos, sem arestas, ao passo que os diálogos escritos tendem a ficar com palavras demais e isso faz parecer que você não deixou de ler para ouvir a personagem, o que é ideal. Ler diálogos significa ouvir o que diz a personagem, e não ler o que o escritor quis dizer. É quando o escritor transfere para a personagem toda a força do texto, incluindo aí os trejeitos, os erros de fala etc. Curioso isso. É o que acho.

    Não sei como direi. Achei que a atriz Cassandra, no texto, teve uma ânsia muito grande em relatar o que tinha consigo, e foi quase que imediatamente falando de seus crimes, o que, no conto, parece que ela só tinha isso a dizer. Não creio que isso seja verdade para uma pessoa que quer se retratada em um livro. Imaginei, ainda que pudesse alongar o conto, uma passagem suave entre a vida comum da atriz e os crimes que cometeu com sua amante.

    Não entenda o que digo como tendo achado o conto ruim, pelo contrário. Gostei dele. A ideia é boa e o conto foi bem desenvolvido por você. Acho que não seria legal não dizer onde, na minha visão, ele poderia ser melhorado. Tudo pode sempre ser melhorado.

    Grande abraço e, novamente, parabéns pelo conto.

  7. rubem cabral
    18 de março de 2024

    Olá, Antônio.

    Gostei do conto: ele desenvolve bem um clima noir, os flashbacks são bem feitos, há certo erotismo misturado com perversão sexual e os diálogos estão bem naturais.

    Também simpatizei com o final em aberto: é bom gerar teorias na cabeça do leitor e não é preciso responder a todas.

    Como crítica, achei o personagem Murilo um pouco apagado. A entrevistada é muito mais interessante e intrigante. Como o conto namora com o noir, talvez você pudesse dar mais recheio ao Murilo, pois os homens são sempre meio canalhas nos contos/romances desse estilo.

    abraços!

  8. Kelly Hatanaka
    18 de março de 2024

    Em minha opinião, o ponto forte deste conto é a ambientação noir e o clima de mistério, muito bem desenvolvidos.
    Porém, senti que os elementos ficaram meio largados, sem desenvolvimento.

    Pensei no conceito da arma de Tchekhov, segundo o qual tudo que aparece em cena deve atender à trama.

    “Se no primeiro ato você colocar uma pistola na parede, no seguinte ela deve ser disparada. Em outro caso não coloque ela lá”. – Anton Pavlovich Tchekhov.

    As réstias de alho na porta da casa de Isabel fazem pensar em vampiros. Mas a ideia do alho na porta é impedir que os vampiros entrem (ou saiam), certo? Então, Isabel temia ser atacada por vampiros, ou foi aprisionada, foi minha conclusão. Isto criou uma expectativa. Mais a frente, uma insinuação de que Adele podia ter trocado de lugar com Isabel. Ok, interessante. Depois, a doutora Cintia podia ser vampira. Depois, Suzana podia ser vampira. Depois, Murilo descobre que é herdeiro de Isabel. E o que as restias de alho faziam na porta de Isabel, afinal? Estão lá só para mostrar que ninguém era vampiro no fim das contas? Porque se Isabel, Suzana e Cintia entravam e saíam da casa sem problema, é porque o alho não tinha nenhum efeito sobre elas.

    Quanto a Murilo ser herdeiro de Isabel, isso pode ser uma insinuação de que ela fosse, na verdade, sua mãe? Pensei nisso, mas somente porque eu assisti a Borboletas Negras (a série, não o filme) e, lá pelas tantas, a filiação de Adrien é revelada. Se foi essa a intenção, seria importante dar aos leitores que não assistiram à serie alguma dica. Uma referencia de idade (Murilo tem idade para ser filho de Isabel?), ou uma referencia a uma gravidez malsucedida, algo do tipo.

    Do jeito que falo, parece que não gostei, o que não é verdade. Criar este clima de mistério não é coisa fácil e você mandou muito bem. Eu gosto de histórias de mistério/investigação, e esta é uma boa história, uma leitura prazerosa, cheia de elementos instigantes. Só senti falta de uma melhor amarração entre os elementos. E pronto, este viraria um conto de cabeceira.

    • Antonio Stegues Batista
      18 de março de 2024

      Kelly, realmente, você tem razão. Em alguns casos, como a do alho, nem sempre o leitor tem a mesma ideia que o autor teve, são gatilhos meio que uma arte abstrata, como a arma de Tchekhov na parede. No caso do alho, como disse Suzana, o alho era para afastar os maus fluidos, um amuleto de proteção que Isabel acreditava protegê-la das pessoas com más intenções. “Pensei que era para afastar vampiros” Disse Murilo e Suzana responde: “Também”. Ou seja, o “também” foi meio irônico. De qualquer forma, usei o alho para gerar dúvidas. Quanto ao Murilo ser herdeiro de Isabel, nesse caso também ficou a dúvida, foi vontade dela recompensar o jornalista, ou ele tem parentesco com Isabel? Acho que não foi nenhuma fortuna, já que Isabel gastou o que tinha naquela propriedade. Obrigado pela leitura e comentário.

  9. Gustavo Araujo
    17 de março de 2024

    Olá! Temos aqui um conto com forte pegada juvenil, que deve agradar o pessoal adolescente. Não por conta apenas do enredo vampiresco, mas pelo modo rápido como os fatos se desenvolvem. Claro que não há demérito algum nisso. Chego a pensar que é bacana ver um ou outro conto com esse tipo de público como alvo, embora eu mesmo prefira algo mais denso. De qualquer forma, a narrativa é suficientemente bem construída para fisgar o leitor — mesmo o leitor pouco habituado a esse tipo de linguagem, como eu — dada a inserção de dúvidas por todo o texto. Isabel, Adele e Susana parecem ser todas elas seres sobrenaturais e até o fim fica-se na dúvida sobre quem é quem. Mérito do autor. Como em muitas histórias de terror, também aqui há um elemento erótico interessante e que foi bem trabalhado, longe de ser apelativo. Enfim, uma história rápida que conseguiu me entreter, apesar de não ser meu tipo favorito de leitura.

    • Antonio Stegues Batista
      18 de março de 2024

      Obrigado Gustavo, você captou bem a ideia.

  10. Givago Thimoti
    17 de março de 2024

    Olá, Antônio! Tudo bem?

    Seu conto me lembrou uma versão macabra de “Os Sete Maridos de Evelyn Hugo”. Murilo é um escritor, numa fase meio pobre criativamente, que é convidado por Isabel, uma atriz de cinema que no início dos anos 80 sumiu das telas e da vida pública, para escrever uma espécie de livro-memória/livro-confissão sobre sua vida

    Para mim, um conto policial é um conto perigoso para o autor porque a história policial quase sempre precisa de algum espaço para ela se criar enquanto narrativa ao mesmo tempo que ela tenta se cativar dentro do leitor. Embora aqui não há de se falar em limite de palavras por causa de um desafio, creio que era preciso mais espaço para construir a narrativa em volta de Murilo, de Isabel e de Adele, tanto elas individualmente quanto elas como um casal de viúvas-negras.

    A sensação que tive, enquanto leitor, foi que as coisas eram jogadas, nuas e cruas. Essa relação baseada em amor, tesão e violência é tão brutal que nem mesmo fez sentido para mim, tive até que reler as cenas para compreender e largar a sensação de que deixei de ler algo; é isso mesmo, estão transando perto do corpo. Que raios de relacionamento é esse?

    Enfim, outra coisa que me incomodou e acho que é digno de nota foi a falta de clareza do conto. A digressão entre o relato de Isabel e a narração do narrador-observador, especialmente no início, confundiu completamente : uma hora estamos em Benfica – RJ, em outra estamos em Nova York, no MAT conhecendo o amor da vida da personagem.

    Por fim, como positivo fica talvez (talvez porque não sei todos vão enxergar como mistério) o mistério do final; e aí, o que foi deixado por Isabel em seu testamento para Murilo? O conto não caminhou pelo realismo mágico de Garcia Marquez (aqui eu confesso que não li e nem compreendi o suficiente para entender sobre realismo mágico, mas ainda assim tô comentando pq vai que é um bom chute rs) , mas quais são as chances de Susana não ser uma vampira sutil?

    Resumidamente, um conto policial que sofre com a densidade da narrativa, mas que consegue cativar o leitor com um quê de mistério ali no final.

    • Antonio Stegues Batista
      17 de março de 2024

      Olá Givago. Você disse que ficou confuso, a historia pulou do Rio de Janeiro para New York, isso acontece porque é quando Isabel conta que conheceu Adele em New York, onde ela morou e depois veio para o Brasil. Quanto as cenas violentas, jogadas nuas e cruas como você diz, pois o conto é baseado na história do filme Borboletas Negras da Netflix, e as cenas violentas, claro, com algumas modificações estão no filme também. E no filme, quem pede para o jornalista escrever o livro é um homem, e os assassinos são um casal, se não me engano, ele e a namorada. Inclui no conto, que no filme não tem, o vampirismo e a dúvida se Isabel, ou Susana, se eram vampiros ou não. Obrigado pela leitura e comentário.

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Publicado às 17 de março de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .