EntreContos

Detox Literário.

Kintsugi (Daniel Reis)

“Quando ele chegou em casa, a porta da frente ainda estava aberta.”

Final de tarde, início da noite.

Sozinha na cozinha do pequeno apartamento, a mulher se esforça, em pensamento, para escrever a primeira linha do seu próximo conto. Ao mesmo tempo, separa sobre a bancada de mármore cada um dos ingredientes e acessórios necessários ao preparo do jantar. Tudo precisa ser perfeito — exatamente como ela imagina que deva ser. Enquanto o corpo se ocupa da atividade culinária, a mente se incendeia em busca de solução para outro problema: por onde recomeçar essa história? À sua frente, apenas alguns ingredientes, aguardando preparo. Falta saber o que fazer com eles. Não tem receita pronta em mãos.

— Vai no improviso, de novo.

“Assim que ele voltou para casa, percebeu que a porta da frente estava só encostada.”

— Assim ou tão logo? Tanto faz. Ou melhor: nenhum dos dois.

Abre a geladeira e retira da gaveta de verduras um maço de almeirão e uma alface. Lava tudo sob a água corrente, na torneira da pia. Depois, deposita as folhas para descansar na vasilha grande de vidro, já previamente preparada com uma solução de hipoclorito de sódio.

— Sódio/ódio. Nota mental: evitar.

“Finalmente ele chegou em casa, depois de dias, e a porta da frente estava um pouco entreaberta.”

— Entreaberta não é nem fechada, nem aberta. Vou tirar o “um pouco”. E também o “finalmente”, que fica estranho, já no início.

Coloca um fio de óleo na panela e retoma o fio do pensamento:

“Ele chegou em casa, depois de dias, e a porta da frente estava entreaberta”.

Corta a salada: preparada. Volta à geladeira em busca dos tomates. Escolhe seis, bem vermelhos, a serem limpos, cortados e refogados com cebola, alho, sal e açúcar, no preparo do molho em panela de pressão.

“Ao chegar, naquela hora, depois de vários dias, encontrou a porta da frente destrancada”.

— “Vários dias” está muito perto do “naquela hora”. Melhor que fosse como era antes…

“Quando ele voltou para casa, depois de dias, a porta da frente estava entreaberta. Abriu-a aos poucos, esperando encontrar tudo exatamente como estava.”

—Se a porta estava entreaberta, fica esquisito abri-la aos poucos. Ou não?

Tira a massa pré-preparada da geladeira e estende os fios de espaguete sobre um pano de prato seco e limpo. A seguir, volta à pia, onde a peça de carne termina de descongelar. Com uma faca recém-amolada, corta o medalhão de mignon em fatias médias, para misturar ao molho madeira.

— Putz, isso que é só o primeiro parágrafo de um conto!

Dizem: a arte imita a vida.

Recomeça, repetindo os mesmos erros:

“Quando ele voltou para casa, depois da briga e quatro ou cinco dias, encontrou a porta da frente entreaberta. Entrou, sem esperar, esperando ver tudo exatamente como era antes.”

— “Esperando”, “sem esperar” — apesar de estranho, acaba sendo assim mesmo…

No deslize da faca, um pequeno corte no dedo anelar. Coisa pouca, quase nem dói. 

— Coloca um pouco de gelo, que melhora — como ele sempre dizia.

Todas as vezes.

“Depois de alguns dias, ele voltou para casa. Encontrou a porta da frente entreaberta. Entrou, sem esperar, esperando ver tudo exatamente como era antes. Mas só percebeu que ela o esperava, sozinha, na cozinha. Com o jantar sobre a mesa da sala”.

— “Sobre a mesa”, em voz alta, parece sobremesa.

Lembra-se do que não fez: a sobremesa favorita.

— Acontece. Talvez ele nem perceba…

Coloca o espaguete em água fervente na panela de alumínio e a carne temperada na panela de ferro, untada com azeite, sob fogo brando. Resolve abrir seu segundo melhor vinho, porque o primeiro já está reservado para depois.

A caminho do armário das bebidas, vislumbra seu rosto, machucado, refletido no espelho da cristaleira.

— Faz pouco tempo. Logo passa.

Vai até quarto e reforça a maquiagem, muito mais para disfarçar e fingir que já se esqueceu. Retorna à cozinha com o vinho escolhido, dando um toque especial à noite e à carne.

“Depois de dias, até parece que ele não retornaria para casa nunca mais. Mas ainda chegou a tempo de encontrar a porta da frente entreaberta, e ela o esperava. Ele também esperava que fosse exatamente como era antes, no começo. Tudo, inclusive o jantar, que já estava na mesa. Esperando-o”.

—Ênclise? É o certo, mas será que no final…

Tira a panela com o espaguete da boca acesa do fogão e transfere o conteúdo fumegante para uma peneira em cima da pia, deixando a massa escorrer sob a água fria da torneira, o choque térmico.

A carne doura na outra panela. Adiciona uma pitada de alho e cebola, com mais um pouco de água, para amaciar. Acrescenta o vinho, mais o molho de tomate, e refoga até apurar o caldo e a ansiedade.

“Decidiu voltar para casa. A porta da frente, sempre aberta, não foi obstáculo para que ele a encontrasse ali, esperando. Também estava pronto para o reencontro. E esperava que tudo fosse exatamente como era antes. Até o jantar, que já estava na mesa, esperando.”

— Passou do ponto? Ou um pouco mais de espera?…

“Ele voltou para casa. Sabia que a porta da frente, sempre aberta, estava ali para isso. E ela também estava pronta, arrumada para o reencontro. Esperava, e ele também, que tudo estivesse exatamente como era no começo. Quente. Até o jantar, que já estava na mesa, como de costume.”

Coloca na travessa o espaguete ainda soltando fumaça, e sobre ele o molho da carne.  Enche mais uma vez o copo e espia de relance o relógio na tela do celular.

Em silêncio. Nenhuma mensagem ou chamada perdida.

Hora de deixar a mesa posta: dois pratos, talheres e copos. Um candelabro para a vela única, ao centro.

No caminho até a mesa, derruba um dos pratos de porcelana.

Coisa boa, daquelas de antigamente, presente do enxoval de casamento. Difícil de quebrar: mas, no chão, parte-se em três pedaços grandes e alguns caquinhos menores, bem afiados.

Lamenta-se por um instante, mas a mente divaga e se engana:

— Podia tentar consertar, como faziam com aqueles pratos japoneses tradicionais, os pedaços emendados com um filete de ouro…

Kintsugi: alguma coisa que se quebra e, ainda assim, torna-se ainda mais valiosa.

O recomeço, depois das fraturas.

— Melhor juntar os pedaços.

Pega com as mãos os cacos maiores; e com uma vassoura e a pá, dá conta dos menores. Deposita tudo numa caixa de sapatos, bem amarrada com fita crepe. Como último cuidado, escreve sobre o papelão, a caneta hidrográfica e com caligrafia hesitante, o bilhete breve ao lixeiro: “Cuidado, isso machuca!”.

*****************************************************

Aos poucos a travessa esfria, o vinho esquenta, a noite acaba.

“Naquele dia ela acreditou que ele ia voltar, novo, de novo. E que tudo seria bom, e bem diferente do que sempre foi: sem louça quebrada, sem marcas no rosto, sem o choro que se escorre ou se engole. Sem recomeços forçados. Por isso, deixou a porta aberta ainda mais um pouco. Mas ele não apareceu, e nem avisou. E eles desperdiçaram juntos, e separados, o prato preferido em comum entre os dois: reconciliação ao molho de esquecimento.”

— Chega.

O pouco que restava do vinho na garrafa desce direto pelo ralo da pia. Mas o gosto amargo continua na boca.

Respira fundo.  Serve-se sozinha do espaguete e do medalhão. Perde o apetite logo nas primeiras garfadas.

Joga o resto da comida do prato no lixo da lavanderia. Guarda em potes de vidro, direto na geladeira, o que permaneceu intocado em travessas e panelas. Lava todas as louças e talheres sujos. Coloca os temperos no armário. A outra garrafa de vinho, a mais do que especial, permanece guardada e intocada. Como ela.

Ao menos, naquela noite.

Tranca a porta da frente.

Vai para a cama, ainda pensando no que precisa ser feito no dia seguinte.

Inclusive outra história.

Sobre Fabio Baptista

17 comentários em “Kintsugi (Daniel Reis)

  1. iolandinhapinheiro
    11 de março de 2024

    Maravilhoso como tudo o que vc faz, querido. Detalhe, eu amo detalhes, o diabo e o encanto vivem nos detalhes, ambos seduzindo gente. Sua escrita é realmente especial. Adorei cada pedaço, ainda que não goste de vinho. Seu conto para mim é uma taça de chapanhe, coisa de comemorar. Grande abraço e parabéns.

  2. claudiaangst
    10 de março de 2024

    Só fui ler este conto nesta madrugada, após a live. Estranhei o autor estar mal posicionado no ranking (erros acontecem, né, Fabio Baptista?). Então, iniciei a leitura com cautela. Vai que eu me decepcionasse com o meu alter ego? Mas, não! Longe disso, mergulhei fácil na narrativa e fiquei impactada com a criatividade e sensibilidade expressas em um texto muito bem construído. Além disso, o clima de suspense prendeu muito a minha atenção.

    Ainda bem que a justiça se fez e tudo foi resolvido.

    Terminei a leitura com uma sensação de familiaridade, talvez acolhimento. Então, percebi que os nossos contos, de uma certa forma, se conversam. Há o gosto amargo no lugar da empolgação por um recomeço. Há a violência doméstica como foco e uma reflexão da protagonista – a sua sobreviveu, a minha não. Enfim, só posso dizer que estou encantada com o seu conto. Parabéns!

  3. Mauro Dillmann
    8 de março de 2024

    Um texto bem escrito.

    O conto mescla passagens do narrador em terceira pessoa, discurso direto do personagem falando consigo e explicações da cena.

    Tem algo que lembra textos contemporâneos de escrita criativa, tal como os de Raimundo Carrero.

    Embora seja relativamente criativo e metafórico por ser um conto cujo enredo conjuga a escrita de um suposto conto com o preparo de um jantar por uma mulher, o texto não me impactou.

    No conto, as frases montadas e remodeladas pela personagem também tocam pouco.

    Por fim, além da violência silenciada, o conto apresenta a passividade e a compaixão feminina.

    Parabéns !

  4. Priscila Pereira
    5 de março de 2024

    Olá, Modoru! Tudo bem?

    Seu conto não está na minha lista de obrigatórios então não poderei avaliá-lo mas mesmo assim quero deixar meu comentário.

    Seu conto me deixou triste… Pela coitada da mulher trouxa que se submete a isso… E por quê? O conto não diz…

    Achei a escrita muito boa, segura e eficiente! A ideia de amarrar devaneios literários (também faço isso, mas com histórias mais emocionantes) com a preparação de um jantar ficou muito boa! E pra finalizar, o conto que ela estava escrevendo era o que acontecia com ela foi uma boa sacada. Muito bom!

    Gostei bastante! Parabéns!

    Boa sorte no desafio!

    Até mais!

  5. Alexandre
    2 de março de 2024

    Tem uns deslizes culinários e alguns equívocos de concordância verbal e pontuação, mas nada que atrapalhe essa bela história.

    O texto é bom, é claro e simples, mostra uma boa história de uma forma leve. O autor trabalhou bem a dupla narrativa e foi consistente em retratar as ações e reflexões da personagem.

    Melhor texto que li até aqui. Parabéns ao autor. Nota 8.

  6. Thales Soares
    2 de março de 2024

    Esse conto foi… interessante.

    Confesso que de início eu estava achando chato. Porém, ele foi tão majestosamente escrito que pouco a pouco foi me conquistando. A narrativa é muito fluida e bem escrita, sendo bastante prazeroso de ler. Dá para notar que o autor é um dos mestres do Entre Contos. O que me desagradou no início é que o tema abordado me pareceu um pouco chato, mas como dizem por aí, um bom escritor consegue fazer até uma história sobre um homem fritando um ovo se interessante… e foi quase que exatamente isso que ocorreu aqui (mas não era um homem, e sim uma mulher, e no lugar de um ovo era todo um jantar).

    Essa ideia de haver duas coisas ocorrendo ao mesmo tempo durante todo o conto eu achei muito legal! Ao mesmo tempo que estamos vendo vendo a tentativa da “mulher”… pera, eu me esqueci do nome dela? Ou simplesmente não tem? Como “a noiva” em Kill Bill, ou o “forasteiro sem nome” nos filmes do Clint Eastwood? Se for isso… gostei!… enfim, ao mesmo tempo em que vemos as tentativas da “mulher” em escrever um conto (algo que faz uma conexão direta com 100% do público alvo que está lendo e avaliando este conto neste exato momento), ela ainda prepara um delicioso jantar. E o legal aqui é que as descrições são tão incríveis, que mesmo ao ler algo tão chato quanto uma pessoa preparando comida, acaba tornando-se intrigante (me deu até fome).

    A parte da escrita do conto é boa, mas me pareceu até um pouco menos interessante do que suas habilidades como mestre cuca. Mesmo variando as formas de escrita do primeiro parágrafo do conto da insegura moça, acho que seria mais interessante se fosse mostrado mais parágrafos além do inicial, e que o micro conto dela fosse se desenvolvendo gradativamente, como se o leitor estivesse escrevendo (ou ao menos acompanhando o progresso) junto com ela. Chegou uma hora que eu estava me cansando de ler sempre a mesma situação, mas de maneiras diferentes. Porém, no final, depois do time skip, meu interessa pelo conto retornou. O fechamento da história foi muito bom, pois apesar de um pouco previsível, ele foi muitíssimo bem apresentado, encaixando o tema com maestria no conto, sem ser de forma escancarada.

    E por falar no tema… esse conto aborda temas de esperança, desilusão e a busca por um recomeço de uma maneira sutil e simbólica. A riqueza simbólica, especialmente na parte da porta entreaberta e do Kintsugi, acrescentaram bastante profundidade para a história.

    Apesar de eu não ter me empolgado totalmente com o conto, reconheço que é uma obra bastante singular e ousada. Me chamou a atenção pela maneira incrível como a narrativa conduziu o leitor de forma leve durante toda a leitura. Foi um dos mais interessantes que eu li até este momento (aliás… eu nunca tinha ouvido falar desse negócio de Kintsugi, mas achei bem legal!)

  7. Karina Dantas Nou Hayes
    1 de março de 2024

    Me trouxe a lembrança de uma música de Guilherme Arantes: “Pra que ficar juntando pedacinhos do amor que se acabou. Nada vai colar. Nada vai trazer de volta a beleza cristalina do começo, e os remendos pegam mal. Logo vão quebrar…” Ao narrar uma dona de casa fazendo o jantar ao mesmo tempo em que tenta escrever um conto ( inspirado na sua vida), o recomeço se apresenta de forma sofrida na rotina da sua relação. Seja na hora de organizar as frases do conto, seja no que ela pensava sobre o marido enquanto cozinhava, a dor estava presente mas mesmo assim, ela parece não deixar de esperar por ele. E tenta levar a vida sofrida usando talvez a arte como curativo. A arte da culinária, da escrita, da maquiagem e, principalmente, a arte japonesa.

    “Kintsugi: alguma coisa que se quebra e, ainda assim, torna-se ainda mais valiosa. O recomeço, depois das fraturas.”

  8. Simone
    27 de fevereiro de 2024

    Essa mistura da culinária com os pensamentos, e da história da narradora com a do conto que pretende escrever está lindamente escrita. Fiquei impressionada com a criatividade do escritor ou escritora. Muita sensibilidade. Aos poucos vamos conhecendo os pormenores, que aos poucos o enredo nos mostra. Tudo está em monólogo, entretanto a história está clara e em outra camada a face da vida da protagonista que não chegamos a ver. Talvez uma história de violência, de submissão, mas de amor. Afinal, ela se preocupa em preparar um recomeço para o relacionamento, com um jantar especial, e se frustra com a ausência dele. Então vem o melhor, começar de novo sem o peso de uma relação nada saudável. “Chega” “porta da frente trancada.” Gostei muito, muito bonito e criativo. Meu favorito!

  9. mariainezsantos
    23 de fevereiro de 2024

    Ótimo enredo

  10. Givago Thimoti
    22 de fevereiro de 2024

    Primeiramente, gostaria de parabenizar o autor (ou a autora) por ter participado do Desafio Recomeço – 2024! É sempre necessária muita coragem e disposição expor nosso trabalho ao crivo de outras pessoas, em especial, de outros autores, que tem a tendência de serem bem mais rigorosos do que leitores “comuns”. Dito isso, peço desculpas antecipadamente caso minha crítica não lhe pareça construtiva. Creio que o objetivo seja sempre contribuir com o desenvolvimento dos participantes enquanto escritores e é pensando nisso que escrevo meu comentário.

    No mais, seguimos para minha avaliação: 

    Impressões iniciais: 

    + Um conto metalinguístico!

    + Conto que fala sobre a violência doméstica/relação conjugal turbulenta

    + Não percebi erros gramaticais

    + Pertinência com o tema

    Resumo: “Kintsugi” é um conto que fala sobre uma personagem-escritora que, após alguns dias de uma briga com o marido, resolve cozinhar o jantar favorito do casal, enquanto aguarda pela volta dele. Sem saber muito bem se ele voltará ou não (já que passou a quantidade média de dias que ele passa longe de casa), ela escreve o início de um micro-conto retratando, talvez, um dos grandes desejos de todo o escritor; que ele pudesse escrever sua própria vida e de quem estiver ao seu redor, como se eles fossem seus personagens e o escritor, quem sabe, o próprio Condutor desse Universo.

    Corpo (gramática/estilo de escrita):

    Sem grandes destaques negativos gramaticais, resta-me falar do estilo de escrita. O simples combina quase demais para esse conto. Mas, se o simples funciona, não há necessidade de reclamar.

    Alma (o que tocou ou não o leitor. Pontos fortes e/ou fracos):

    Pelo menos, dos doze contos mínimos que vou avaliar, creio que esse aqui disparou em relação aos outros (faltando uns 2 contos ainda). O que alavancou esse conto são alguns pontos que vou destacar aqui e, na minha opinião, mereçam destaque:

    Primeiramente, a profundidade do conto, escrito de forma simples. Trata-se de um conto metalinguistico e extremamente reflexivo sobre o ato de escrever (e de cozinhar). Sobre escrever, eu adiantei um pouco anteriormente; a personagem/escritora usa de seus talentos literários para desafogar a insatisfação com o desfecho de sua espera. Tanto, que o seu micro-conto apenas deslancha depois que ela percebe que ele não irá voltar, pelo menos não hoje. 

    Sobre cozinhar, lembro de um livro de contos-eróticos que foi escrito em formato de receita. Nunca cheguei a ler, mas a sinopse era como se a própria Afrodite contasse várias histórias. Uma forte ligação entre a sexualidade, a gastronomia e a relação entre as pessoas. Não sei se o autor/ a autora deu uma passada no livro, mas confesso que foi interessante ver um casal se reconectando através da comida.

    Como um conto profundo, creio que a conexão leitor e personagem foi bem construída. Pessoalmente, eu gostaria que esse conto tivesse sido escrito em primeira pessoa, ouvindo a voz da personagem. Claro, nada que atrapalhe o conto, apenas um gosto pessoal. Creio que, talvez por falta de espaço, não foi tão abordado claramente os sentimentos da personagem ou alguma das motivações, como por exemplo, o que a mantém nessa relação violenta e conturbada. Enfim, gostaria de ter lido um pouco mais sobre isso. Espero que quem tenha escrito opte por aumentar essa história.

    Além da profundidade, a metalinguagem do conto utilizada como uma forma também da autora dar vazão ao seu desejo, para além do cozinhar, foi o grande trunfo do conto. Alguns meses atrás, participei de um seminário/workshop que a grande tese consistia na seguinte ideia: o ato de escrever não é só uma forma de comunicação, mas também uma forma de processar seus pensamentos e, porque não, sentimentos. Particularmente, achei bastante interessante esse conto porque, de certa forma, ao mesmo tempo, ele mostra e não mostra isso; mostra porque a personagem, ao escrever um microconto sobre o retorno de seu marido, expressa seu desejo pelo retorno. Não mostra porque oculta os sentimentos e motivações da mulher em relação ao relacionamento. Gostaria de ter visto

    Nota: Diante de tudo que falei, a única nota possivel para esse conto é 10!

  11. Antonio Stegues Batista
    20 de fevereiro de 2024

    O conto é uma história do cotidiano. Uma escritora teve uma briga com o marido, ele foi embora e ela, com esperança de que ele voltasse, preparou um jantar especial. Enquanto cozinha, tenta criar, mentalmente, um conto com um enredo igual a sua vida, ou tendo aquele momento como início. Entre uma ação e outra, ela analisa o que imaginou e vai modificando conforme suas expectativas reais sobre o marido. Durante uma discussão, ele deu um tapa no rosto dela e foi embora. O motivo da agressão não é revelado, mas parece que ela já está acostumada e sempre o perdoa. Ele sempre vai embora, mas volta, porém, aquela noite foi diferente, ele foi e não voltou.
    Achei interessante as conexões criadas na narrativa, a relação fragmentada, que precisa ser remendada, assim como o prato de porcelana que se partiu e os cacos que poderiam ser colados com fios de kintsugi. Ao final, o prato não foi restaurado, nem a relação partida foi consertada. Ele não voltou, pelo menos não naquela noite. Achei um bom enredo, boa escrita, estrutura e ideia bem elaborada. Um enredo simples, mas requintado. Boa sorte no desafio.

  12. Fernanda Caleffi Barbetta
    19 de fevereiro de 2024

    Kintsugi (Modoru)

    Oi, Modoru, parabéns pelo texto.

    Neste conto, a história aparente e a história mais profunda se entrelaçam e se completam. Na trama que fica na superfície, gostei bastante da forma como intercalou as preocupações da personagem com a criação de seu texto e o preparo do jantar. Na história mais profunda, o subtexto traz a violência doméstica, o relacionamento entre o casal, apresentados nas entrelinhas de forma bastante inteligente e um tanto sutil. Cito como exemplos positivos que funcionaram como dicas para o entendimento deste subtexto: “corte no dedo anelar”/ “Passou do ponto? Ou um pouco mais de espera”/ a quebra do prato de casamento, os pedaços afiados dos cacos, entre outras. Menos positiva, uma passagem mais explícita: “vislumbra seu rosto, machucado, refletido no espelho da cristaleira.”

    Muito boa também a sua opção pela culinária como forma de preencher a narrativa. Acredito que poderia ter aproveitado ainda mais a escolha dos ingredientes e o modo de preparo para contar mais sobre a história menos aparente.

    A escolha pela metalinguagem, o conto falando do conto, o desafio falando do desafio já não me agrada tanto, é fórmula muito usada, mas talvez seja apenas um gosto meu.

    Sugiro atenção com algumas questões práticas, como o desenrolar das ações. Achei algumas incongruências, como cito abaixo.

    Vamos a algumas dúvidas e sugestões:

    Gostei da escolha por iniciar o texto com a frase, instigou minha curiosidade.

    “mulher se esforça, em pensamento, para escrever” – achei estranha essa construção. Em pensamento, ela não escreve, ela pensa. Sugestão: “Se esforça para pensar na primeira linha”.

    “Tudo precisa ser perfeito — exatamente como ela imagina que deva ser” – redundância de ideia.

    Dizer que não tem receita em mãos e que vai no improviso após avisar que tudo precisa ser perfeito, nçao parece fazer sentido.

    “Falta saber o que fazer com eles” – depois fica claro que ela sabia exatamente o que ia fazer. Sugestão, colocar mais alguma passagem dela na dúvida, se questionando sobre o que fazer. Pensei em sugerir tirar o trecho “falta saber o que fazer com eles”, mas entendo que o usa no subtexto, numa referência sutil ao casamento também.

    Outra pequena confusão é com os ingredientes. O narrador logo avisa que ela pega cada um dos ingredientes, depois ela tem alguns dos ingredientes e mesmo antes de começar a receita ela busca as verduras na geladeira. Entendo que ela não tinha pego tudo o que ia precisar, mas é importante não confundir a cabeça do leitor com essas coisas menores. Se escolheu pegar alguns ingredientes, porque começar a receita pegando verduras na geladeira?

    “A seguir, volta à pia” – sugiro suprimir o “A seguir”.

    “Difícil de quebrar: mas, no chão, parte-se em três pedaços grandes e alguns caquinhos menores, bem afiados” – não entendi o “difícil de quebrar”.

    Em uma linha ela coloca o fio de óleo na panela. Em seguida vai cortar a salada. Fo proposital, para mostrar que estava confusa? Achei estranho.

    “Dizem: a arte imita a vida.” – precisa mesmo disso? O texto é claro e sutil, não acho necessária esta intromissão do narrador.

    “da boca acesa do fogão” – desnecessário. Já sabíamos que fazia o macarrão na chama acesa.

    “Acrescenta o vinho, mais o molho de tomate” – sugiro tirar o “mais”

    “e espia de relance” – redundância

     “Em silêncio” – desnecessário

    Gostei disso: “Kintsugi: alguma coisa que se quebra e, ainda assim, torna-se ainda mais valiosa.”

    São apenas sugestões. Minha opinião. Use como preferir.

    Parabéns.

  13. Regina Ruth Rincon Caires - Caires
    17 de fevereiro de 2024

    Kintsugi (Modoru)

    Quanta criatividade! Mulher tem dessas coisas, faz várias tarefas ao mesmo tempo. E a leitora, aqui, conseguiu seguir os vários inícios do conto pensado, prestar atenção na receita e salivar com o preparo da comida, absorver (acho que na íntegra) a história contada, e ainda ficou danada quando a personagem joga a comida no lixo! Menina, devia estar deliciosa!!!

    É isso. Com que competência o autor brinca com a arte de narrar! Temporalmente, entrelaça o passado, o presente e o futuro.

    Doideira notar que no meio de tantos pensamentos haja espaço para pensar se seria ênclise, se seria vários dias perto de naquela hora, esperando ou sem esperar, assim ou tão logo, entreaberta ou um pouco aberta, finalmente… já no início:

    “Tudo, inclusive o jantar, que já estava na mesa. Esperando-o”. 

    “— “Vários dias” está muito perto do “naquela hora”. Melhor que fosse como era antes…”

    “Esperando”, “sem esperar” — apesar de estranho, acaba sendo assim mesmo……

     “Se a porta estava entreaberta, fica esquisito abri-la aos poucos.”

    “— Assim ou tão logo? Tanto faz. Ou melhor: nenhum dos dois.”

    “— Entreaberta não é nem fechada, nem aberta. Vou tirar o “um pouco”.

    “ E também o “finalmente”, que fica estranho, já no início.”

    Percebe-se o cuidado que o autor coloca em cada palavra. A leitura é fluente, lógica, envolvente. Bonita é a harmonia construída entre o caráter filosófico e a técnica do kintsugi: “… valorizar as imperfeições e aceitar o desgaste das coisas com o passar do tempo. Ao invés de esconder as cicatrizes da peça, elas são valorizadas e expostas, revelando uma nova beleza e tornando a peça única”, reconstruir, recomeçar. Quero deixar claro que não conhecia tudo isso (a técnica de colar porcelanas), eu pesquisei!!! Aprender sempre é a grande recompensa de participar deste grupo, aqui eu vejo o quão pouco sei deste mundo…

    Falando sobre a leitura agradável deste texto, apenas uma coisinha destoou, muito pouquinho: “Como ela.” – acredito que ficaria melhor: feito ela – igual a ela…  Desculpe-me!

     “Lava todas as louças e talheres sujos. Coloca os temperos no armário. A outra garrafa de vinho, a mais do que especial, permanece guardada e intocada. Como ela.”

    Modoru, parabéns pelo trabalho!

    Boa sorte no desafio!

    Abraço…

  14. Gustavo Castro Araujo
    16 de fevereiro de 2024

    Impossível não lembrar do conto da cebola do Fábio Baptista no primeiro desafio de microcontos. Isso porque a experiência pessoal de abandono que sofre a protagonista é refletida num espelho culinário – lá, a cebola; aqui, o espaguete. Neste conto, porém, há um terceiro elemento, que é a intenção da protagonista escrever um conto.

    Tanto a parte literária como a culinária começam e se desenvolvem juntas. A primeira frase do suposto conto – aliás, é uma ode aos microcontos porque traz à memória o clássico de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá” – mas é só com o passar dos parágrafos que percebemos que o conto que está sendo escrito pela mulher traduz a sua própria história, um caso de briga, abandono e tentativa de reconciliação.

    Nesse aspecto, os cacos da porcelana quebrada surgem como um sinal de que mesmo colados com fios de ouro, não há mais conserto, isto é, podem até ficar mais bonitos, mais valiosos, mas jamais constituirão aquele prato original – no caso, o amor que se foi.

    Ao trancar a porta, depois de ter considerado a hipótese de deixa-la aberta por tantas vezes, a protagonista põe um fim nessas conjecturas. O jantar esfriou e precisa ser jogado fora, assim como a relação que, de certa forma, a manteve cativa.

    Olha, é impossível para qualquer escritor(a) que já passou por alguma desilusão amorosa (quem nunca?) não se identificar com o conto. Tanto pela compulsão em burilar e em melhorar o texto inicial, como pela necessidade de superar um coração partido, abrindo mão de qualquer possibilidade de remendar os cacos.

    A linguagem simples, de fato, serve como convite a uma reflexão mais profunda. É o tipo de texto que permanece na retina por horas a fio, que nos faz meditar e que nos convida a uma segunda ou terceira leitura. Uma façanha e tanto, mormente num desafio deste tipo, em que há muitos outros contos para ler.

    Parabéns e boa sorte!

  15. Angelo Rodrigues
    16 de fevereiro de 2024

    Kintsugi
    Por Modoru
    Conto muito bom de ler. A personagem mescla a feitura da refeição ao tempo em que vai refinando seu texto, numa progressão paralela entre o fazer e o pensar. Legal isso.
    Pareceu-me que o autor insinua uma relação abusiva entre o casal, onde se pode perceber a agressão física. Tema atual e recorrente. Este é o segundo conto que analiso com as mesmas circunstâncias. Bom falar sobre este assunto. Curiosa a abordagem passiva e resignada da mulher-personagem. Kintsugi talvez só fique realmente bem no corpo das louças.
    As considerações que farei a seguir, apenas de estilo, não desmerecem o texto, que está muito bom.
    Acredito que haja um equívoco no modo como o autor estabeleceu ‘diálogos’ – com travessão -, insinuando que, ou a personagem fala para si mesma, em voz alta, ou dialoga com ninguém, o que seria um solilóquio e não um diálogo. Penso que talvez pudesse haver uma maneira mais apropriada para passar ao leitor esses momentos vividos pela personagem.
    Entendo que possa ter havido, por parte do autor, algumas dúvidas no modo de representação escritural, uma vez que há muitos ‘momentos’ textuais. O resultado ficou bom, embora tecnicamente imperfeito, na minha opinião, claro.
    Estilisticamente, acredito que os textos em itálico e aqueles iniciados por travessão, devessem assumir um sólido único, onde seria explicitado que estes são pensamentos da personagem, onde ela trata sequência de pensamentos sobre o que faz e o texto que escreve, de forma progressiva, e que, ao separá-los, causou algum estranhamento na técnica discursiva.
    Bem, avançando, diria que a um bom texto, surge-me a ideia de indicar alguma possível melhora. Uma delas é a poda de trechos que são puramente periféricos à história, um deles, por exemplo está explicitado no trecho ‘Com uma faca recém-amolada, corta o medalhão de mignon em fatias médias…’. É redundante dizer-se que se corta a carne com uma faca, e mais ainda que ela foi ‘recém-amolada’. Seria interessante rever tais escolhas.
    De resto, como disse, o texto é bem legal de ler.
    Parabéns pelo conto e boa sorte no desafio.

  16. Kelly Hatanaka
    12 de fevereiro de 2024

    Olá Modoru.

    Estou avaliando os contos de acordo com os seguintes quesitos: adequação ao tema, valendo 1 ponto, escrita, valendo 2, enredo, valendo 3 e impacto valendo 4.

    Adequação ao tema 1/1
    Perfeitamente adequado ao tema. Uma mulher prepara um jantar de reconciliação, esperando um recomeço, ao mesmo tempo em que pensa no início de seu conto, mas sempre há algo que parece errado, tal como seu relacionamento.

    Escrita 2/2
    Muito correta e segura. Se há erros, não encontrei. Os pensamentos da personagem vão pincelando informações a respeito de seu relacionamento e do que aconteceu vão contando a história de forma orgânica e intrigante. E a mistura de pensamento com os inícios de contos foram organizados de maneira muito hábil.

    Enredo 3/3
    A história começa leve, parece um simples jantar a dois. Mas, à medida que se desenrola, vai surgindo uma trama mais pesada, triste, tão triste quanto ver a vítima de uma violência doméstica esperando pela volta do algoz. As muitas tentativas de começo do conto parecem todas erradas, talvez porque a personagem saiba que aquele desejo de recomeço é um erro.

    Impacto 4/4
    Amei seu conto. Ele começou devagar, como quem não quer nada e foi se desenvolvendo de forma magistral. Adorei a forma como as coisas são sugeridas, como as situações vão sendo reveladas, com sutileza e, ao mesmo tempo, clareza. É uma história muito rica em significados e simbolismos, uma história que se lê diante dos olhos mas que se desenvolve dentro da cabeça do leitor.

    Parabéns! O primeiro conto que eu avalio neste desafio. Foi um ótimo começo.

  17. Vladimir Ferrari
    12 de fevereiro de 2024

    Não percebi a premissa do concurso em seu conto. O recomeço foi sugerido no título e no meio do texto, como se fosse praxe citar. O sentimento colhido foi a esperança do reencontro. Provavelmente, a palavra mais repetida tenha a ver com “espera”. Esperando para recomeçar, sugere algo acabado. Ficou por conta do leitor, pois narrou-se o jantar, os cuidados e intercorrências, a montagem do parágrafo e quando o conto acabou, surgiu a proposta do recomeço.

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Publicado às 10 de fevereiro de 2024 por em Recomeço e marcado .