A Bia Machado faz parte daquela desejada categoria de artistas multimídia: ela escreve, desenha, pinta, faz arteterapia, confecciona cadernos artesanais, dança e ainda dá conta de gerenciar uma editora, a Caligo, cujo foco é a publicação de autores nacionais, principalmente os independentes e pouco conhecidos no mercado editorial, fundada em 2013. Desde então a Bia participou de diversas coletâneas e antologias (tanto da Caligo quanto de outras editoras) e também escreveu dois livros para o público infantil: Chuva de Madalena e Esperando por Joaquim Cortez. Em seu Instagram artístico, o @vita_colore, ela compartilha o processo criativo e seus trabalhos envolvendo os desenhos e artesanatos. A Bia também foi a idealizadora do projeto As Contistas, um blog que reúne um time talentoso de escritoras, assim como também é uma participante frequente daqui do Entre Contos desde 2013.
E num ano cheio de reviravoltas como foi em 2020, ela publicou – em edição física e também em e-book – o seu terceiro livro: Futuros (Im) Prováveis; através da Caligo Editora e com arte de capa da Be.Axe, sua filha. Sim, uma família de artistas! Trata-se de uma coletânea com 7 contos abordando a ficção científica, o fantástico e as inúmeras possibilidades que o futuro nos reserva, trazendo também um prefácio escrito por Paula Giannini. Apesar dos contos não serem inéditos (alguns deles inclusive fizeram parte de desafios aqui do EC), todos foram reescritos, ganhando nova revisão e perspectiva, já que possui textos publicados originalmente entre 2009 e 2016 (o mais recente), mostrando também como foi se dando o amadurecimento em sua escrita.
E antes de falar sobre o livro em si, gostaria de comentar que conheci a Bia Machado através dos desafios do Entre Contos e hoje, apesar da distância (eu aqui em São Paulo, ela no Mato Grosso do Sul), mantemos o contato e vira e mexe papeamos sobre arte e literatura. E ler Futuros (Im) Prováveis me fez viajar no tempo, para aqueles primeiros anos em que eu arriscava a escrever (quando a conheci), assim como questionando essa relação que temos com os desafios literários e a leitura temática. Pelo menos dois dos sete contos eu já havia lido e o fato de reler agora, anos depois, os textos ganham ares diferentes. Sem a moldura de um tema ou limite de palavras, a leitura flui solta e podemos entrar nesse universo de probabilidades que a Bia Machado nos propõe.
Na coletânea somos apresentados ao futuro e boa parte do imaginário da ficção científica, como super máquinas, carros voadores, inteligência artificial, prédios que atravessam o céu, robôs e tudo o mais. E uma pitada do pós-apocalíptico, as catástrofes e vírus que podem aniquilar a espécie humana. Mas por trás dessa visão já conhecida pela maioria, a Bia nos mostra um outro lado do futuro, escrevendo com delicadeza as nuances e as personagens que possam habitar esses novos mundos e suas novas realidades.
No primeiro conto, por exemplo, intitulado Siga a Estrada de Tijolos Amarelos, temos o mundo dizimado por um vírus, onde um pequeno grupo de pessoas busca outros sobreviventes, coletando também os corpos dos mortos. Com uma referência à estrada do Mágico de Oz, é um conto que aborda a adaptação: como continuar caminhando, mesmo em meio a todas as adversidades? E mesmo ocorrendo no futuro, ele traz um item bastante particular do nosso passado: as cartas. Seja digital ou física, as cartas estão presentes e marcam na narrativa essa dualidade entre os dois mundos, esse fictício e o nosso. Através delas conhecemos desde o filho que poderá nunca vir a nascer até os souvenirs coletados dos mortos, este segundo sendo uma triste constatação de como seremos lembrados após nossa morte.
E essa sensação sobre a passagem do tempo, de como as coisas envelhecem, como serão lembradas ou superadas é uma característica bastante presente em todos os contos. O segundo, Brincando de Deus, mostra um marido que mantém a ex-esposa numa espécie de coma até poder descobrir uma maneira de trazê-la de volta e todos os riscos que a ação implicará. Conforme a história se desenrola percebemos como a máquina da vida não para, independente de qualquer coisa, seja de tempo ou de contexto, a vida continua. O que pode ser bem chocante, dependendo do ponto de vista.
O terceiro conto é um dos mais interessantes. Chamado Nós, trata-se da conversa entre dois andróides, Jules e Farid, a respeito do que sobrou do mundo após os humanos (seus antigos donos e criadores) terem sido praticamente extintos. Enquanto Jules faz parte de um conselho que quer tomar a Terra, colocando os androides no centro de todas as discussões e cogitando a ideia de criar novas máquinas para poder serví-los; Farid pensa por um lado mais social e deseja o convívio entre as duas espécies (se podemos dizer assim), além de uma cura para o que vem matando os humanos. Um ponto muito legal em relação ao processo de escrita da Bia é em relação aos nomes das personagens: todos possuem um significado. Em alguns contos isso fica mais explícito, sendo explicado em alguma fala ou descrição, já em outros é mais discreto. Mas é uma constante, mostrando como os textos foram construídos e pensados em seus pequenos detalhes. A própria Bia Machado vem adotando o pseudônimo Amana desde o ano passado, uma palavra indígena que significa “água da chuva” em homenagem tanto às suas origens quanto à sua personalidade e identificação com esse elemento.
Voltando ao conto Nós, é possível traçar toda uma discussão a respeito da desigualdade, segregação, rebeldia, o ideal sonhador e a busca por uma utopia. Uma metáfora dos dias atuais, recheado de críticas sociais ao modelo da Revolução dos Bichos de George Orwell (em que os animais oprimidos passam a oprimir outros animais). Resolver Seu Problema é uma Questão de Tempo Para Nós também aborda uma questão bastante contemporânea: a de como passamos grande parte da nossa vida em empregos insuportáveis e em empresas que não dão a mínima pra nós. Levando esse contexto ao futuro, Wagner é esse alguém que trabalha numa empresa ruim, detesta seu trabalho, sua rotina, não aguenta mais o relacionamento com a esposa e nem mesmo sua casa. Mas tudo parece ganhar outra perspectiva quando é apresentado à uma companhia que promete alterar seu passado e, assim, criar o futuro dos seus sonhos. Apesar de que eu não gostei tanto do desfecho, foi um dos contos com o melhor desenvolvimento, somos sugados pela vida de Wagner, sendo inevitável não fazer paralelos com a nossa própria existência.
Rapsódia Imperfeita faz uma referência direta à famosa música Bohemian Rhapsody do Queen, sendo um conto curto em que um robô decide, após a morte de seu criador, se irá ou não se desligar para não ser pego pelos soldados inimigos. Além dos nomes serem algo importante da trama, como comentei, há outros dois fatores muito presentes nos contos, formando uma espécie de trindade: simbologia dos nomes, presença de música e a morte. Um levantamento interessantíssimo nesse conto é quando fala sobre a vontade de viver e o poder de escolha. Trazendo um quê de Pinocchio ou o Monstro do Frankenstein, somos questionados: o que é ser alguém?; o que é ser ninguém? Como na citação: “como é possível viver décadas e décadas e nunca chegar a ser alguém de verdade?”. Muito bom.
No início eu comentei que Futuros (Im) Prováveis me trouxe memórias de desafios anteriores, sobre essa relação que temos com os contos aqui no EC. E a leitura de Canteiros no Planalto Central foi um desses gatilhos. Tanto esse quanto o conto seguinte (Hoje é Dia 23, que finaliza a coletânea) eu cheguei a ler e comentar quando foram publicados durante seus respectivos desafios. E conforme fui lendo, vieram essas lembranças. No começo foi uma impressão, depois foi a certeza de que já tinha lido. E ler sem a pressão de encaixar o texto dentro de um tema, buscando respostas para perguntas e expectativas que criamos ao ler determinado conto, esperando encontrar determinadas coisas, torna a experiência muito diferente.
Também num futuro dizimado por uma epidemia (xô, Corona!), conhecemos os jardineiros dos mortos: pai e filho que percorrem pelo Brasil no intuito de darem um enterro digno aos que morreram e foram esquecidos. Uma história que nos remete ao primeiro conto do livro, Siga a Estrada de Tijolos Amarelos, mas que é muito diferente. Há a questão da simbologia dos nomes, da música e da morte, mas coloca o Planalto Central como uma metáfora para os pequenos momentos, aqueles que passam despercebidos durante o nosso dia a dia, mas que fazem toda a diferença, sobre como é essencial sabermos curtir cada um deles.
Encerrando a coletânea, Hoje é Dia 23 retrata um pai que perdeu a esposa e tem o filho em coma, sua insistência e fixação por recriar sua antiga vida num jogo de realidade virtual que ele mesmo inventou. Vale comentar que muitos dos porquês nos contos não são respondidos, o leitor precisa preencher as lacunas e entrar nesse universo. Não sabemos o que aconteceu à esposa ou ao filho, por exemplo. Não são pontos essenciais ao desenvolvimento da trama (que pretende abordar outros assuntos), mas foi algo que reparei. Para alguns não fará grande diferença, enquanto que para os que gostam de toda a parafernália (no bom sentido) da ficção científica, sentirá falta dessa parte mais explicativa e de contextualização. E em tempos de coronavírus, quando fomos impulsionados e até forçados a nos adaptar ao meio digital, ao ensino à distância, às videochamadas e aplicativos de celular, foi uma escolha acertada finalizar o livro com um conto sobre realidade virtual, sendo possível fazer, também, um paralelo com nosso vício nas redes sociais.
Como toda coletânea ou antologia, temos aqueles contos de que gostamos mais, enquanto outros que gostamos menos. Destaco, entre os que gostei bastante, os contos Nós, Resolver Seu Problema é uma Questão de Tempo Para Nós e Rapsódia Imperfeita. De maneira geral, o livro Futuros (Im) Prováveis, como o título sugere, apresenta uma coleção de histórias futuristas em diferentes contextos, dos mais aos menos apocalípticos, dos conflitos entre andróides à sobrevivência humana. Apesar da morte ser presença marcante e constante em todos eles, Bia Machado aborda todas as nuances da vida: desde o viver, curtindo cada bom momento, às escolhas que fazemos, as possibilidades que o futuro nos reserva, a solidão, as memórias do que já fomos, as amizades e relacionamentos que coletamos com o passar do tempo, chegando ao fim iminente; a morte em si, o que deixaremos para as próximas gerações, o resultado e consequências das nossas ações, da nossa vida e do nosso modo de viver. Apesar de fantásticos e improváveis, o livro levanta a dúvida, mostrando que nem tudo é tão improvável assim.
Futuros (Im) Prováveis está disponível para compra no site da Caligo ou em e-book pela Amazon (por onde eu li!). E recomendo tanto para os fãs da ficção científica, quanto para os leitores que gostam de contos que levantam questões sobre a vida.
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Li esse livro há algum tempo… E me diverti muito! Parabéns à autora! E parabéns também ao autor da excelente resenha!
Obrigada, Anderson! Sua avaliação foi a primeira e eu amei. ☺️
Não tenho tido muito tempo pra comentar os contos do site, estou numa corrida contra o tempo para aprender a dominar o WordPress, rs.
Mas tinha que ler e comentar essa resenha.
Conheci a Bia há muito tempo atrás, inicialmente apenas como uma escritora dos tempos do Orkut. Uma boa escritora. E pra lá de gentil com minha versão jovem e imatura. Tive a sorte de ver o nascimento da Caligo. E ali aprendi a admirar sua determinação e amor pela literatura. Tive dois continhos publicados que pioraram muito sua primeira antologia lançada, mas se publiquei algo na vida foi graças a iniciativa de leoa da Bia em abrir a editora na raça e sua generosidade para com os escritores amadores, tentando lhes garantir um lugar ao sol.
Passados anos, nos reencontramos com nomes diferentes. E minha admiração por ela só cresceu. Descobri seus outros talentos artísticos e que sua personalidade gentil é também inspiradora, divertida, confiante e ainda mais generosa do que imaginava. E como ela é jovem! rs
Não conheço ainda nenhum dos contos publicados nessa antologia. Azar o meu que não a acompanhei durante os últimos anos e sorte minha de ter tanta coisa inédita para descobrir.
Parabéns pela ótima resenha, Fil. Parabéns Bia, por tudo. Quando crescer quero ser um pouquinho que seja parecido com você. Ou ao menos conseguir fazer 10% do que você faz, rs. 😉
Abraços!
Que engraçado, né, Bruno, agora você usa seu nome mesmo e eu um pseudônimo, haha! Não sei se leu na época, mas o “Nós” e o “Siga a estrada de tijolos amarelos” são da época da Contos Fantásticos, dos desafios de FC e “Algo Novo”, respectivamente. Mas dei uma boa modificada neles… Enfim, pra mim você está parecendo Benjamin Button, tipo: naquela época você parecia ter mais de 30, agora você parece ter… 30 ainda, kkkk! Mas sabe, a única coisa que te peço é para não sumir de novo. Sinto falta demais do Érico também…
“Nós” eu talvez tenha lido, o “Siga a estrada de tijolos amarelos” eu lembro do título. Mas naquele momento já estava me afastando, nem participei desse concurso. E esses últimos anos não foram muito generosos com a minha memória, mal lembro do que eu mesmo escrevi. Aliás, até tenho que te agradecer por ter salvo algum resquício meu daquela época, rs.
De qualquer forma, como disse, sinto-me no lucro: tenho uma coletânea inteira para descobrir agora. ^^
Sim, também sinto falta do Érico. 😦
Mas não pretendo e nem posso sumir. Agora o Gustavo me jogou uma âncora que vai me prender aqui um bom tempo, rs. Mas mesmo sem ela posso dizer que voltei pra ficar. E fico feliz de ainda reencontrar pessoas daquela época. Parece conversa de velhinhos essa, né? rs Mas obrigado por ser sempre tão gentil e receptiva comigo. Faz uma diferença danada.
O que dizer dessa resenha? Que coisa mais maravilhosa, amei esse detalhamento. E a sensação que tive agora foi a vontade de reler e reescrever cada um deles, dando mais pano pra manga ainda rs… Muito grata, Fil! Presentão. ☺️