Em uma grande cidade, na noite de Natal, sob um frio intensíssimo, vi um menino, ainda muito criança, de oito anos apenas, talvez de menos, ainda bem pequeno para mendigar, mas já perseguido e torturado pela miséria. Esse menino despertou tiritando, pela manhã, num quarto úmido e frio, abrigado com uma espécie de bata, velha e puída. A respiração saia-lhe em forma de vapor branco: sentado a um conto, sobre um baú, distraía-se ativando de propósito sua respiração, divertindo-se vendo-a sair. Mas tinha muita fome. Desde a madrugada, aproximara-se já várias vezes da cama de tábuas, coberta com um delgado enxergão, em que estava deitada a mãe, com a cabeça apoiada em um monte de farrapos à guisa de travesseiro.
Como chegara até ali aquela pobre mulher? Sem dúvida saíra, com seu filho, de alguma cidade longínqua, em que a acometera a enfermidade. E ali estava havia dois dias. Na companhia de gente miserável como ele. Dia de festa, os outros inquilinos andrajosos saíram. Mas um deles está deitado há vinte e quatro horas, bêbado ainda, sem esperar a festa. De outro recanto brotam os lamentos de uma velha de oitenta anos, entrevada pelo reumatismo. Essa velha foi ama, em seu tempo. Agora está morrendo, solitária, gemendo, queixando-se, resmungando contra o menino, que começa a ter medo de aproximar-se do lugar em que ela agoniza.
O menino encontrou água no passadiço, mas nem sequer um pedaço de pão, e volta pela décima vez a despertar a mãe. Começa a assustar-se naquele escuro recanto. A tarde avança, e no, entanto, não fazem luz. Encontra às tontas o rosto da mãe, e surpreende-se de que ela não se move, e esteja tão fria quanto a parede.
—Faz tanto frio? — pensa o menino.
Permanece imóvel um momento com a mão sobre o ombro da morta. Depois, sopra os dedos para aquecê-los. Apanha seu gorro sobre a cama, procura devagar a porta e sai do subsolo. Já o teria feito se não fosse o grande cão que, lá em cima, no passadiço, diante da porta do vizinho, ladra todo o santo dia. Mas o cão já ali não se encontra, e eis o menino na rua.
—Meu Deus, que cidade!
Até então, nunca vira nada semelhante. Lá de onde veio a noite é mais escura. Há somente um lampião para toda a rua. Casinhas baixas fechadas com postigos. Desde que escurece, ninguém pela rua. Todo mundo se encerra em sua casa. Só uma multidão de cães que ladram, centenas, milhares de cães que latem a noite inteira. Mas, em compensação, lá fazia muito calor e lhe davam de comer. Aqui, meu Deus, como seria bom comer! Que alvoroço! Que barulho! Que luz! Que mundo de gente! Quantos cavalos e carros! E o frio… o frio… O corpo dos cavalos fumega frio, e seus ardentes focinhos sopram vapor branco. Suas ferraduras soam no calçamento através da branca neve. E como se atropela toda essa gente!
— Meus Deus, que vontade tenho de comer um pedacinho de qualquer coisa!… E agora que me doem os dedos…
Um guarda acaba de passar e volta-se para não ver o menino. Outra rua mais… Oh! Como é larga! Certamente vão esmagá-lo aqui. Como gritam todos, como correm, como rodam!… E luzes e mais luzes! E isto, que será? Oh! Que vidro grande! E atrás desse vidro um quarto, e nesse quarto uma árvore que sobe até o teto. É a árvore de Natal… E quantas luzes há debaixo da árvore! Quanto papel de ouro e maçãs, rodeadas de bonecas, de cavalinhos! Há muitos meninos no quarto, bem vestidos, muito limpinhos. Riem, brincam, comem, bebem… Aqui uma pequena que dança com outro menino… Que menina linda! E lá a música que se ouve através do vidro.
O menino contempla aquilo tudo com admiração. E ri… Já não sente a dor dos dedos nem dos pés. Os dedos de sua mãozinha apenas incharam, por causa do frio, e ele não pôde dobrá-los. Nem é bom tentá-lo. De repente, sente que lhe doem os dedos. Chora e se afasta… Divisa, através de outro cristal, outra habitação e mais árvores e pastéis de toda espécie sobre a mesa. Confeitos vermelhos, amarelos… Quatro formosas damas se acham sentadas e alguém chega, entre muitos senhores. O menino desliza, abre de repente a porta… Oh, quanto ruído fazem ao vê-lo! Que agitação! Uma dama levanta-se, põe-lhe uma moedinha na mão e abre-lhe ela própria a porta. O menino tem medo… A moedinha cai-lhe das mãos e corre pelos degraus da escada. Seus dedinhos vermelhos já não podem fazer movimento para segurar a moeda. O menino sai correndo… Aonde vai? Ignora-o. Quer chorar, mas tem muito medo. E corre, corre, soprando as mãozinhas. E o pesar se apodera dele. Sente-se tão abandonado, tão triste… E súbito… Que há? Uma multidão permanece ali e olha. Em uma janela, por traz do cristal, três bonecas bonitas, vestidas com ricos vestidos vermelhos e amarelos, parecem vivas. E aquele velhinho sentado que parece tocar violino… Há outros dois, parados, que tocam pequenos, pequeníssimos violinos movendo o cabeça ao compasso da música… Olham-se um ao outro, e seus lábios se movem: falam de verdade! Apenas não são ouvidos através do vidro. E o menino pensa primeiro que eles estão vivos… E quando compreende que são bonecos, põe-se a rir. Nunca viu bonecos semelhantes, e não sabia que os houvesse assim. Tem uma vontade louca de chorar… Mas não se sente com coragem diante daqueles bonecos tão graciosos. Inesperadamente, se sente agarrado pela roupa. A seu lado se acha um menino grande e mau, que lhe dá um murro na cabeça… O menino cai. Ao mesmo tempo, ouve gritos. Fica um momento rígido de pavor. Em seguida, se levanta rapidamente, e deita a correr… a correr… Enfia por uma porta, não sabe onde, e oculta-se em um pátio, atrás de uma pilha de lenha.
—Aqui não me encontrarão, pois há muita escuridão.
Acocora-se. Encolhe-se. Seu medo é tão grande que apenas se atreve a respirar. E, de repente, sente um bem-estar infinito. Suas mãozinhas, seus pequeninos pés não mais lhe doem. Tem calor, tanto calor como ao lado de uma estufa. E todo o seu corpo estremece. Ah, vai dormir! Como é bom dormir.
—Ficarei aqui um momento e depois voltarei a ver os bonecos — pensava o garoto, que sorriu ao recordar os bonecos. — Parecem vivos.
Agora, ouve a canção da sua mãezinha.
—Mamãe, estou dormindo… Ah, como aqui é bom para dormir!
—Vem à minha casa, menino, ver a árvore de Natal — pronuncia uma voz suavíssima.
Pensa que é sua mãezinha. Mas não! Não é ela.
Quem o chama, então? Não sabe. Mas alguém se inclina sobre ele e o envolve na escuridão… E ele estende a mão e, de repente… Oh, que luz! Oh, que arvore de Natal! Não! Isso não é uma arvore de Natal. Nunca viu coisa parecida.
Onde se encontra ele? Tudo brilha, tudo irradia, e há bonecos em torno. Mas não são bonecos: são homenzinhos e mulherezinhas, que resplandecem muito. Todos giram em tomo dele, voando, beijando-o, carregando-o… Afinal, ele próprio voa. E vê sua mãezinha que o olha e lhe sorri com alegria.
—Mamãezinha! Mamãezinha! Ah, como isto aqui é bonito! — grita-lhe o pequeno. E de novo abraça os meninos e quer contar-lhes também a história das bonecas que viu atrás do vidro.
—Quem são vocês? — pergunta, rindo.
O menino está diante da árvore de Natal do Menino Jesus. Em casa de Jesus, nesse dia, há sempre uma arvore de Natal para os meninos que não têm árvore própria. E soube que todos aqueles homenzinhos e todos aquelas mulherezinhas eram meninos como ele: uns mortos de frio nas cestas em que os haviam abandonado à porta das casas dos funcionários da São Petersburgo. Outros, mortos em casa da ama de criação, nas ilhas sem ar dos Tchaukhnas. Alguns mortos de fome no seio esgotado de suas mães, durante a calamitosa carestia. Outros, envenenados pela infecção dos vagões de terceira classe.
Todos estão ali. Todos são anjos. Todos se encontram na casa de Jesus, que, entre elas, lhes estende as mãos, abençoando-os, a eles e a suas pecadoras mães.
E, também, as mães dos meninos estão ali, angustiadas. E choram. Cada qual reconhece seu filho ou sua filha, e os meninos voam para elas, beijando-as, enxugando-lhes as lágrimas com suas pequeninas mãos, suplicando-lhes que não chorem, pois eles também aí se encontram…
E embaixo, pela manhã, foi encontrado o cadáver do menino refugiado no pátio, gelado, atrás da pilha de lenha. Também foi encontrada a mãe, no quarto úmido e escuro. Ela havia morrido antes dele. Ambos se encontraram no céu, na casa do senhor.
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Fonte: “Fon-Fon”, edição de 24/12/1938.
Tradução de autor desconhecido
Ajudando a entender um pouco mais acerca desse belo conto de Dostoiévski.
A partir de uma consideração feita pelo Pedro Paulo, quando mencionou que o redator “viu” o menino protagonista. Interessante essa observação, dado que ela foi capaz de disparar uma pesquisa (parte dela, ao menos) na direção de entender melhor sobre este conto .
Talvez esta aqui postada seja a primeira de duas únicas traduções feitas desse conto, do russo para o português. Talvez as duas únicas.
A da Fon-Fon, de 1938, a rigor, é uma espécie de resumo do conto original. Nela se (não diz quem é o tradutor, olhei no original da revista) exclui uma série de considerações feitas por Dostoiévski quando da redação inicial.
Um texto raro, bonito, bem levado segundo o fundo romantizado da pobreza nos dias de São Petersburgo, no centro da segunda metade do Século XIX (1876).
Nos contos de Natal, salvo raríssimas exceções, mandam a evidenciação das desigualdades, a incompreendida pureza das almas dos pequenos a serem salvas, o verdadeiro espírito humano encampado pela mão do Senhor. Muito que bem.
Dostoiévski parece seguir o rito de Charles Dickens:
“Tempo de Natal! Sem dúvida, há de ser um misantropo o homem em cujo peito o retorno do Natal não faz nascer uma espécie de sentimento jovial – em cuja mente não desperta nenhuma associação agradável. Há quem diga que o Natal já não é para eles mesmos – que a cada novo Natal uma cara esperança ou uma expectativa feliz do ano passado se debilita e se esvai – e que o presente só serve para trazer à lembrança circunstâncias mais difíceis e o dinheiro mais minguado – banquetes oferecidos, em outros tempos, aos falsos amigos, e os olhares frios com que hoje esses mesmos banquetes são recompensados, na adversidade e na aflição…” (Um Conto de Natal, 1843).
Quando comecei a ler este texto do post, achei um pouco curiosa a forma como Dostoiévski escrevia, tomado por vírgulas e, até certo ponto, um pouco claudicante. Desconfortado com o tradutor, parti em busca de saber o que havia acontecido com o “jeito Dostoiévski” de escrever.
Em 2017, na sequência de publicações da obra desse escritor russo, a Editora 34 publicou Contos Reunidos de Dostoiévski, uma espécie de síntese de seus textos curtos (o que me fez saber que Bobók, ao contrário do que eu imaginava, não era um romance minúsculo, mas um conto longo). E lá estava.
Originalmente Dostoiévski publicou esse conto no Diário de um Escritor (a partir de então uma publicação independente, como mostrado no livro), no número de janeiro de 1876.
As duas partes narrativa foram publicadas separadamente no Diário, como textos I e II da segunda seção, conforme a tradutora, a senhora Priscila Marques.
O texto que abarca ambas as redações ganhou o nome de Um menino na festa de Natal de Cristo, e cada uma das partes foram nominadas como Um menino com a mãozinha estendida (desconsiderada pela Fon-Fon), e Um menino na festa de Natal de Cristo. O título A árvore de Natal não é considerada no original.
Na linha da observação do Pedro Paulo, de o narrador “viu” o que estava em jogo:
“Mas sou romancista, e, ao que parece, eu mesmo “criei uma história”. Por que digo “parece” quando sei que provavelmente a criei? Mesmo assim fico imaginando que, em algum lugar, em alguma época, ela aconteceu [a história contada], e aconteceu justamente na véspera do Natal, em alguma cidade enorme [certamente São Petersburgo], num dia de frio terrível.
Imagino um menino muito novo, de uns seis anos ou menos, que estava num porão. De manhã, o menino acordou naquele porão úmido e gelado. Vestia só um casado e tremia…” (Parte II da publicação de Dostoiévski).
A partir desse ponto, o conto segue com suas diferenças interpretativas segundo seus tradutores.
Gustavo, legal essa publicação. Obrigado. Imagino o trabalhão que deu arrancá-la das páginas da Fon-Fon. Moveu-me em direção às arqueologias literárias, às vezes tão emocionantes quanto ler despreocupado ou escrever algo que logo será esquecido.
Parabéns, Pedro Paulo, pela observação sagaz, que me tirou do ócio pandêmico.
Que emocionante! Quanta delicadeza! Cativa da primeira à última linha! 🥰
Interessante que o conto comece com o narrador se incluindo ao dizer que “viu” o menino protagonista. Foi o único momento em que se fez presente no cenário, mas narrou toda a história e transcendência do menino… bem, é assim que a arte se faz, não é? Em um contexto no qual vivem tantos meninos como esse que lemos, é bom se permitir pensar que todos possam se reencontrar em algum além luminoso.
Coincide que seja o segundo conto natalino que li recentemente, tanto esse como o outro inesquecíveis, a serem relembrados nos meus próximos Natais.