Horácio tirou a tarde daquela terça-feira para caminhar pelo centro da cidade. Gostava de fazer isso. Do alto da Rua da Praia sempre lembrava de uma fantasia de menino. No final da movimentada e cosmopolita rua ficava o Porto de Montevidéu e de lá sairia um navio para Amsterdã, para onde ele um dia viajaria. Alegrava-se cada vez que lhe vinha à mente esta fantasia, trazendo-lhe sensações de menino. Mas descer despreocupadamente a rua da Praia, observando as expressões das pessoas que por ele passavam rapidamente, era o que mais gostava. – O que você quer‚ roubar a alma das pessoas para os seus contos, é isto que você faz, disse-lhe uma amiga, com uma entonação irônica e sempre carinhosa. Breve pausa na banca para comprar jornal; dar uma mirada geral nas manchetes e uma folheadinha nalguma revista semanal. Passar pela Praia da Alfândega. Confirmar a Carta-testamento do velho Getulio e um olhar rápido nas belas fachadas dos prédios antigos, para se certificar que ainda estavam lá. Era sempre assim. Comportava-se como se fosse o síndico da cidade. Seguia adiante em direção à Casa da Cultura Mário Quintana. Um café, leitura do jornal e, quem sabe um cinema. Adorava esse ritual. Na esquina, uma espiada na vitrine de uma livraria. Orgulhoso, nota o lugar de destaque dado ao seu mais recente romance. Entra na livraria e fica a ler de longe os novos títulos. Decide ir ao fundo da loja, ate‚ a seção de livros usados ou sebo, palavra que detestava. Horácio começa a dedilhar os livros expostos, quando de repente defronta-se com aquilo que mais temia. Encontrar um livro seu num balaio de sebo. Temia os sentimentos desconhecidos que provavelmente viriam e que não saberia como reagir. Sentimentos confusos, desconhecidos, realmente lhe vieram a mente. Achava-se um idiota. Afinal poderia encarar aquilo como algo normal. Veio forte o desejo de sair dali imediatamente, como se nunca tivesse entrado. Ficar só. Refletir. De repente lhe veio a mente que algum conhecido pudesse aparecer e vê-lo justamente com o seu livro junto daquele balaio. Mais que depressa pegou o livro e se dirigiu ao caixa. Fez de conta que estava tudo normal. Sentiu receio que o funcionário da livraria o reconhecesse e ainda mais, comprando um livro seu “usado”. Pagou e saiu da loja com alivio, como se tivesse apagado algum vestígio. Ficou parado na porta como quem pergunta onde eu estava na minha peregrinação. Dera-se conta que não tinha mais vontade de continuar, de tomar o café‚ ou ler jornal. O fato do livro no sebo deixara-o transtornado e achou melhor ir para casa.
Horácio fez um café, acendeu um cigarro, colocou o livro sobre a mesa e pôs-se a fita -lo. “Muito bem, eu exijo explicações! o que ‚ que você fazia naquela balaio sebento? como você chegou ate‚ lá ? quem te levou? onde você andava? a quem você pertencia? conte-me tudo e não esconda nada! – tentou ironizar Horácio consigo mesmo, consciente do seu próprio medo. Medo do que? O que poderia significar um livro seu no sebo? Um fato normal; apenas um livro no sebo. Ou, poderia significar o inicio do fim. Isso mesmo, o inicio do seu fim. Era a voz que ele não queria escutar. Um bom livro não vai para o sebo, diria o critico literário. Se foi, porque ninguém mais o quis. Ninguém se livra do livro que ama. Horácio sentiu-se só, abandonado. Tentou imaginar quem o abandonara. Quem fizera isso com ele. Apanhou o livro e começou a folhea-lo, na busca de alguma indicação. Na primeira pagina ele descobre um nome. Flávia, Porto Alegre, 1990. Exatamente a data da edição. Mas, só Flávia? Porque não colocara endereço, telefone. Idiota!. Ninguém escreve essas coisas na primeira pagina de um livro. Escrever nome, cidade e data j era muita coisa. As pessoas não tem mais esse tipo de habito. Se esse tem, ‚ porque ficou realmente afeiçoada pelo seu livro. Ou pelo autor. Horácio poderia se considerar satisfeito com esses dados mínimos. Flávia, mora, morava ou morara em Porto Alegre e comprara seu livro em 1990. Lentamente, Horácio começou a folhear as paginas do livro, tentando buscar vestígios de Flávia. Já no primeiro capitulo, Flávia rabiscara partes onde Horácio descrevia uma personagem importante do romance. Era Carmem, a poetisa. Ela era determinada, porem sensível. Horácio achava a sensibilidade uma qualidade inquestionável a qualquer poeta, mas ao mesmo tempo uma fragilidade insofismável na relação de Carmem e o mundo. Digerir o cotidiano, as idiossincrasias do mundo, sua vulgaridade, custava a ela muita energia. A vulgaridade do cotidiano aparecia a Carmem como uma medusa que a ameaçava permanentemente. Horácio continua folheando. Aqui e ali encontra pequenos sinais, como um código que indicava o sentido que Flávia provavelmente dava as passagens. Aprovação ou não, um sinal de simpatia, talvez! Novamente sinais insistentes nas margens do texto. Dessa vez era sobre o reencontro de Carmem com um antigo namorado e as transformações que este reencontro vinha trazer. Carmem sente-se fortalecida e mesmo se distanciando um pouco da poesia tem uma interação erótica com a vida como jamais havia tido antes. Acreditava que a maturidade trouxera a ela e ao companheiro a capacidade para a paixão, sentimento que tinham conhecido quando eram adolescentes, por‚m envolto de insegurança e medo. Flávia sublinha esta passagem como quem concorda. A trajetória de Carmem parece ter sido muito a Flávia. Horácio tem a sensação de a conhecer. O telefone toca, Horácio volta à realidade. O livro fica num canto da mesa de trabalho. Aproveitando o frescor da noite, Horácio senta na sacada e fica absorto vendo a cidade e pensa em Flávia. Ela provavelmente fora sensível ao destino de Carmem. Identificara-se com Carmem. De repente Horácio lembra do destino que dera a Carmem e, num salto, como quem quisesse chegar a tempo, corre ate‚ o livro para evitar uma reação de Flávia. Justamente na pagina em que relata o destino de Carmem, Flávia não fez mais nenhum registro.
Oi, Erni!
No conto anterior a este, expressei meu desgosto por parágrafos longos. Já começo a repensar se é mesmo um problema, pois aqui não foi empecilho para a leitura. O drama do escritor encontrando um livro em um sebo me cativou e achei uma boa sacada o lance de contar uma história dentro da história, atravessando-a, ainda, por uma terceira perspectiva que é a da leitora que abandonou o livro. Aprofunda a história em múltiplas camadas. O final sugestivo assinalou o texto com impacto.
Desde que comecei a visitar a área OFF, comprometi-me com abandonar o tom avaliativo dos desafios, mas sinto a necessidade de apontar que o texto traz muitos erros de pontuação, acentuação e digitação, o que acaba sendo distrativo. Questão de revisão e lapidação, mesmo.
Obrigado pela contribuição!
Erni, esse conto me levou à lugares da minha própria história, além de resgatar minhas passagens em uma série de sebos de São Paulo. Você fala com propriedade de Porto Alegre e, pelo visto, para além da ficção, também cultiva o hábito de visitar os sebos.
Uma vez, para um trabalho de história, pesquisei a origem desse nome, “sebo”. Infelizmente não há resposta definitiva, porém creio seja pelo fato do livro já ter circulado muito e possuir, pejorativamente, uma capa de gordura em sua capa muito manuseada. O nome em si, não é dos melhores, mas já encontrei verdadeiras pérolas literárias nesses espaços: um exemplar autografado do livro “João Felizardo, o rei dos negócios “, da falecida autora e ilustradora Angela Lago, além de um outro, com dedicatória e tudo da própria Andrea del Fuego, chamado “As miniaturas”.
Realmente, o livro de sebo tem história, está carregado de restos vestigiais de seus antigos leitores, maus e bons hábitos registrados nas páginas dobradas, rabiscos, manchas de gordura, o que nos faz perguntar por quais lugares aquela obra passeou antes de cair em nossas mãos. Você relatou como um golpe duro o autor encontrar seu próprio livro num sebo, porém, mais dolorido ainda foi saber que a leitora não se cativou pela história, nem perseverou em sua leitura. Um livro, após lançado, segue um caminho próprio, difícil de prever e rastrear, mas a descoberta de que ficou silenciado nas mesmas páginas desde os anos 1990, é a verdadeira morte e silenciamento do escritor.
Por esse lado, já me previni! Lancei meu primeiro livro de contos num sebo, ou seja, o local final de um livro, na verdade, foi o começo de tudo!
Parabéns pelo conto. Grande abraço!
Olá! Parabéns pelo texto! Ele deixa uma sensação de angústia por não sabermos o destino de Flávia. Abraço!