— Maldição, logo será meia-noite, é chegada a hora de me preparar para os meus debates infindáveis com o meu inimigo, até mesmo pelo fato de que este horário de meia não tem nada, é inteira com tudo incluso, sem direito a carteirinha de estudante, a demora é sacrossanta nestes casos, por isso, não pode ser metade em nenhum requisito, apesar da singela contradição de, também, como dizem alhures, ser a noite uma criança. Bom, de toda sorte, devo me arrumar corretamente para poder receber Nestor que já pode estar a caminho neste momento. Ele analisa até as minhas vestes, não posso vacilar nos meandros primários, ou não chegaremos nas questões últimas decisivas. Ele sabe papear e tapear melhor do que ninguém, então, que venha! — Exclamou José, sozinho em seu quarto.
José vestiu-se como se estivesse indo para uma sala de audiência em algum tribunal, com terno, gravata, camisa social, calça social, tudo combinando, como havia devidamente se aconselhado com algum desses grandes nomes da moda do passado, apesar de quê, estava de meia, havia deixado seu par de sapatos social dentro do guarda-roupa, talvez, o rigor do traje formal não o tenha permeado em todas as circunstâncias. Mas, de fato, nada mais naquela noite o podia diferenciar de um burocrata da área jurídica que com suas vestimentas acredita estar acima dos outros indivíduos de sua sociedade, como uma espécie tragicômica de micropoder. Com toda a pompa, só lhe faltava a toga para que eu pudesse encerrar a narração do enredo com total agrura. Passou-se um bom tempo até que ao decair do crepúsculo, próximo à média madrugada, José ouviu passos suaves como de alguém descalço, atento, percebeu, adiante, batidas singelas em sua porta.
— Boa noite, senhor, posso entrar? Desculpe-me o atraso, é que nesta noite você demorou a me dar a oportunidade de aparecer neste recinto que eu estimo com louvor, considero quase como minha casa e, sabes disso. — Pronunciou Nestor em voz tão suave e baixa que somente José pôde ouvir naquela casa, mesmo tendo mais 4 moradores nela.
— Deixe de tolice e entre de uma vez, seu escroque! Você sempre adentra, como diriam os portugueses, neste “sítio”, sem nenhuma permissão. Nós sabemos muito bem que se eu disser não, você vai abrir esta porta da mesma forma, não me faça perder o resto de paciência que ainda tenho contigo, pois, no dia de ontem, passei por uma situação muito incomoda e não tenho tempo para esses introitos, vamos logo, chegue mais perto e vamos discutir, pôr em dia o que temos de colocar. — Bradou José.
— Meu caro Zé, compreendes muito bem como funciona o meu procedimento, eu começo do particular para, somente depois, chegar ao universal. Por partes, constituindo as interligações entre os pedaços até formar o todo coerente. Portanto, vamos com calma. Devagar com a dose, meu amigo. Não venha com este andor, pois vou com o barro!
— Se você fosse mesmo por partes, não me trataria já de início com tamanha intimidade, quem és tu para me denominar de Zé? Dei-lhe permissão para apelidar-me? Não! Mas, ainda assim, o faz, então, não venha querer bancar o filósofo pra cima de mim, com isto de particular e universal, a palhaçada aqui acabou! Vamos direto ao assunto!
— Tudo bem, José, como queiras. Trataremos logo das questões centrais. E eu, como bom e experiente conselheiro que sou, irei mais uma vez lhe guiar pelo caminho mais coerente em termos racionais, para que não cometa mais nenhuma infâmia por aí. Vejo que está trajado devidamente para essa nossa entrevista, aprendeu muito bem com o seu mestre, sinto-me orgulhoso, apesar de ainda me tratar com linguajar vulgar, rebaixado e denunciante, como se eu fosse um inimigo na tocaia, pronto para liquidá-lo. Neste aspecto, precisamos rever este modus operandi, excelência. — Comentou Nestor.
— Pois é, seu sacripanta! Notou muito bem que estou vestido conforme você sempre exigiu, também treinei todo o linguajar que gosta que assovie em teus ouvidos, porém, dado à sua embromação costumeira, e à minha situação desastrosa atual, perdi a compostura antes das corujas sequer emergirem para nós. Mas, deixemos isto de lado e o senhor já pode, com toda a sua galhardia, iniciar o inquérito por intermédio do seu douto juízo. — Afirmou José, sem ainda controlar a sua inquietação.
— Pois bem, sua postura cumprindo meus rituais em relação aos trajes me deixou venturoso e, somente por isto, descartarei sua condição de não versar com o vocabulário que eu admiro. Vamos começar, portanto, a nossa “audiência” particular, diga-me, José, você já se convenceu de que sua opinião no caso de sua prima começar a trabalhar, mesmo na pandemia, é correto da parte dela, pois o trabalho dignifica o homem?
— Não, não estou absolutamente convencido disso! Ainda acredito ter sido uma postura muito arriscada, mas não quero tratar disso hoje! — Exclamou José.
— Bom, se ainda não está convencido do seu erro analítico, mesmo depois de tantas brigas no seu seio familiar por causa desta questão, então, devemos discutir sim sobre ela, pois está em aberta. Aproveitando a sua teimosia, pergunto-lhe logo sobre mais um tema sem desfecho, você aceitou a ideia de que informar a morte de seu avô aos seus pais, mesmo neste momento tão difícil para a humanidade, foi o correto? Pois devemos agir sempre com a verdade, nunca esconder nada, a mentira é a vilã de nossa história.
— Nestor, já lhe avisei, poupe-me do prefácio, vamos logo ao conteúdo do livro, ou melhor, seguiremos logo ao posfácio. Você sabe que já discutimos essas e mais dezenas de outras questões por diversas noites e não vou mudar minha posição, nem sempre a verdade é o certo, eu uso a justa medida Aristotélica, às vezes uma mentira é mais necessária e conveniente do que a verdade imediata, como é neste caso em que me perguntas, não podemos viver sob a égide de uma rígida régua inflexível. E eu também já sei suas opiniões quanto a tudo isso, sempre fazendo o papel do advogado do diabo contra mim. O que eu quero discutir agora é um fato novo. — José disse, fitando com veemência os olhos de Nestor — Lá no meu trabalho, eu passei um pouco do horário de retorno às atividades após o almoço e o meu supervisor me deu uma bronca esdrúxula por causa de 5 minutos de atraso, xingou-me de tudo que é possível ao nosso vocábulo, eu o respondi à altura e ele me disse para passar amanhã no RH que eu seria demitido. Mas, levei a questão ao gerente e ele disse que eu errei e se me desculpasse com o supervisor estaria tudo resolvido. Espie, o mesmo gerente todos os dias atrasa mais de 1h na volta do almoço e o mesmo supervisor, atrasa por 30 minutos. Ele quem errou em querer me demitir por algo que todos lá fazem e eu o fiz pela primeira vez, em quase uma década, ontem. Ele que me deve desculpas, não o contrário. Diga-me o que acha?
— Bom, Zé, você está errado novamente. Primeiro que infringiu uma regra da sua empresa sobre o horário de almoço, segundo que desacatou um superior hierárquico seu. O gerente está certo, cumpra o que ele disse e ponto final, mantenha o seu emprego. Ainda lhe ponho em contradição, você sempre diz que os funcionários inferiores sempre estão cumprindo ordens dos funcionários superiores, portanto, se você deveria retrucar e xingar alguém não seria o supervisor, nem mesmo o gerente, mas sim, o dono da empresa.
— Ah, vá para o averno, aquele de Dante, seu miserável, junto com Neleu, Aquiles e Agamenão, sua trupe. Junte-se à “besta”, pois seus propósitos se assemelham. Você, todas as vezes está contra mim, aponta o erro em minha direção, sempre jogando a culpa em meu colo, não aguento mais! E é verdade que estou em contradição, eu bem sei que o sistema hierárquico é corrompido por natureza, mas, não posso nada contra o dono, nunca nem o vi, ele é inalcançável, minha única batalha possível é contra aqueles que estão próximos, como o supervisor que comete o mesmo “erro” que o meu e ainda tem a audácia de me insultar. Quando eu acordar, irei lá e não pedirei nenhuma desculpa, serei demitido, mas com honra. Vou viajar para longe e procurar alguma empresa séria para trabalhar, e ainda escaparei de todos os problemas e brigas que você tentou reaver neste diálogo, sumirei! E quanto a você, Nestor, prepare-se, pois logo seus “conselhos” não serão mais possíveis, eu pararei de tomar meus remédios psicoativos que me causam como efeito adverso esses pesadelos contínuos onde tu apareces. Vossa Senhoria, submergirá!
Entende-se que trabalhou o auto julgamento do cotidiano. Pois demonstrou o dualismo do personagem em se julgar, ele é o próprio advogado e o próprio diabo. A ideia é interessante.
Tive dificuldades em lidar com a repetição da palavra ‘como’ presente em todo o texto. Aconselho, se disposto, o uso do sinônimo (feito, tal qual) e também a isenção do uso, recorrendo à ilustração não explícita.
Pronomes: ‘para apelidar-me’ aqui é próclise devido a preposição e também a interjeição. ‘vez lhe guiar’ é ênclise devido o infinitivo.
Como leitor, foi me cansando a repetição, porém reconheço o poder da ideia empregada, a qual foi perspicaz.
O solilóquio foi bom também, não ficou claro que o era. O fechamento foi condizente.
No geral, tive a sensação que faltou lapidação. A ideia é boa e não brilhou o suficiente no meu julgamento.
Parabéns pelo texto! Curioso diálogo! Sucesso!
Muito obrigado, Anderson!!!
Agradeço muito pela análise, Pedro Paulo. Sim, é tanto um estilo meu, quanto a forma estética adequada ao conto, um debate jurídico entre ambos, com períodos longos e com linguagem culta, ao mesmo tempo que prolixos e repetitivos, semelhantes às peças processuais jurídicas. Porém, com a pitada de humor que você conseguiu apreender, pois, a situação chega num limite em que eles mesmos, em alguns espasmos, fogem da estética formal, mas, logo tentam retornar a ela.
Mas, além da forma, é interessante perceber que você conseguiu captar boa parte do conteúdo, ou seja, da essência do texto. O Nestor, para além de um inimigo interno, existencial do Zé, torna-se, ao mesmo tempo, um inimigo externo, uma verdadeira dialética entre a interioridade e a exterioridade. Nesta dialética, Nestor massacra o Zé tanto como um fardo existencial de seus pesadelos, como, também, é o advogado, par excellence, das injustiças cotidianas que a maioria da população fica a mercê no mercado de trabalho. Com este movimento, o Nestor suprime a individualidade do Zé em defesa da estrutura social que o subjuga. Sendo, assim, um entrave interno e externo ao Zé.
Sobre o EC, este é o meu segundo conto na casa, quase uma estreia, rsrsrsrsrsrs
Agradeço muito pela análise, Pedro Paulo. Sim, é tanto um estilo meu, quanto a forma estética adequada ao conto, um debate jurídico entre ambos, com períodos longos e com linguagem culta, ao mesmo tempo que prolixos e repetitivos, semelhantes às peças processuais jurídicas. Porém, com a pitada de humor que você conseguiu apreender, pois, a situação chega num limite em que eles mesmos, em alguns espasmos, fogem da estética formal, mas, logo tentam retornar a ela.
Mas, além da forma, é interessante perceber que você conseguiu captar boa parte do conteúdo, ou seja, da essência do texto. O Nestor, para além de um inimigo interno, existencial do Zé, torna-se, ao mesmo tempo, um inimigo externo, uma verdadeira dialética entre a interioridade e a exterioridade. Nesta dialética, Nestor massacra o Zé tanto como um fardo existencial de seus pesadelos, como, também, é o advogado, par excellence, das injustiças cotidianas que a maioria da população fica a mercê no mercado de trabalho. Com este movimento, o Nestor suprime a individualidade do Zé em defesa da estrutura social que o subjuga. Sendo, assim, um entrave interno e externo ao Zé.
Sobre o EC, este é o meu segundo conto na casa, quase uma estreia, rsrsrs
Muito divertido, o texto!
Há um rebuscamebto proposital, me pareceu, para gerar um certo formalismo entre duas pessoas que se detestam. Foi uma saída divertida para abusar do vocabulário jurídico, e quando o texto está ficando bom, infelizmente, ele acaba.
Parabéns pela participação!
Boa noite, Thiago Castro. Sim, o rebuscamento é proposital, não só por se odiarem, mas, também, por ser uma sátira jurídica.
Agradeço muito pelo comentário. De fato, houve um final com uma ruptura brusca, um solavanco entre o desenvolvimento e a conclusão, confrontando alguns lugares-comuns narrativos, ao modo de Hoffmann, Heinrich Heine e Sterne. Entretanto, havia muito mais para ser escrito sobre o embate entre Zé e Nestor, porém, infelizmente, o escrito atingiu o limite máximo de páginas para um conto, o que me faz concordar com a sua opinião de que quando as coisas começam a esquentar, há a finalização em forma de ruptura. Deixando um gostinho de “quero mais”, uma lacuna no combate dos personagens principais. Quem sabe, algum dia eu retome o escrito e possa desenvolver o que tenho em mente em maior quantidade de páginas, numa “novela” ou “romance”? Aguardemos cenas dos próximos capítulos. rsrsrsrsrs.
Grata surpresa!
Não gosto de parágrafos longos e com voltas, mas saquei que, se não um estilo do autor, está conforme a temática do conto, que convida o leitor para uma anedota jurídica. A tensão entre José e Nestor está presente desde a expectativa do primeiro pela chegada do segundo e, assim que chega, os diálogos dos dois são impagáveis, sendo engraçados e absurdos ao mesmo tempo. Aliás, achei uma boa sacada colocar Nestor como advogado dos absurdos cotidianos que vemos acontecer devido ao mercado de trabalho.
É a sua estreia aqui no EC ou na área OFF? Não sei se dou boas-vindas, mas, no mínimo, agradeço pelo texto!
Um abraço.