“O monitor com adesivo de sapo”. Assim o policial na entrada da delegacia indicou a mesa ao lado do dispenser de senhas. Ele puxou o número e escolheu a cadeira atrás do computador, de onde avistava sapos em epóxi, porcelana, vidro, feltro, plástico e um pote transparente com objetos coloridos difíceis de identificar.
Os anfíbios organizados em fileiras numa espécie de pântano burocrático e o pontos de cores no pote dividiam a atenção com a única parte visível da escrivã: a mão de unhas longas, esmalte verde, anéis e pulseiras empunhando o mouse. Sem acionar o painel, ela inclinou a cabeça na lateral do monitor , dedilhou a mesa com a ponta das unhas, balançou as pulseiras e chamou o próximo que era ele mesmo, o único a ocupar a longarina de três lugares do prédio vazio no início da madrugada.
– Pode se sentar – e pediu documentos para Adalberto que alisava o queixo.
Entre tantos atrativos visuais, ele ajustou o olhar na mulher de quem só tinha conhecido as mãos. Suzete era nome no crachá pendente sobre a camisa apertada que abria um vão entre os botões na altura dos seios e mostravam um pouco de pele e um tanto da renda do sutiã lilás.
– O que houve, Sr. Adalberto?
A escrivã se ajeitou na cadeira, levantou os olhos e insinuou o corpo para frente. Deixou ver ainda mais parte de seu colo e seios. Ele também se ajeitou na cadeira e respondeu com um olhar ao olhar da moça, mas desviou para o pote transparente de objetos coloridos atrás dos sapos.
Eram miniaturas de figuras humanas entre quatro a dois centímetros . As maiores representavam adultos e as menores as crianças. Mulheres e homens amontoados sem critérios em diversas posições que permitiam ver alguns em pé, outros com a cabeça mergulhada expondo sapatos que combinavam com as roupas que passavam por tailleurs, paletós, vestidos e uniformes de trabalho. Uma desorganização se comparada aos sapos enfileirados.
– A senhora coleciona miniaturas de seres humanos? – ele fez a pergunta e justificou o desvio no olhar.
– Senhora não, por favor – ela pediu. São pessoas dos meus mini jardins.
– Ah! – ele não soube o que mais dizer.
– Monto pequenos jardins em bacias de cerâmica – e meteu a mão no pote de onde tirou uma gueixa. – Vê essa? Para um jardim japonês.
Adalberto pegou a minúscula figura, admirou os detalhes e se sentiu à vontade para prosseguir o desvio na conversa inicial.
– E os sapos?
– Estes eu coleciono.
– Por que sapos?
-Porque ganhei o primeiro e me trouxe alguma sorte. Porque não são príncipes. Nada relacionado a engolir, como gostam de falar. Não são lindinhos? – e ajeitou milímetros na posição dos primeiros das filas.
Adalberto concordou, sentiu um suave mal-estar com a estranheza da conversa e retomou de onde havia parado. Mirou com mais cautela os mesmos olhos dos quais desviou.
– Vou contar o que aconteceu.
– Sim. Vou registrar.
– Eu estava dormindo e senti o perfume, a peça metálica e a mão pesada tocando o meu rosto. Minha cabeça encostada na janela. Eles se aproximaram. Foram rápidos como os limpadores de vidro. Acordei assustado. Nem deu pra me defender e ver como eram. Usavam boné e máscara. Terminaram o serviço e ficaram com a mão estendida, aguardando um pagamento. Empurrei os dois e desci no próximo ponto. Deu tempo para ver que um outro rapaz foi vítima, mas alisava o rosto e parece ter gostado. Nada de lâminas de farmácia. Usaram navalha.
– Posso ver?
Adalberto mudou de posição e deixou a cabeça mais próxima ao monitor. A policial estendeu o braço em direção ao rosto, recuou, fechou as mãos, mas repetiu o movimento e deu vazão ao primeiro instinto.
– Ficou muito bom – alisando-lhe a pele.
– Não pedi o serviço.
– Tem razão. Não deixa de ser um serviço.
– À revelia.
– Se fizeram, talvez estivesse precisando.
– Quem sabe disso sou eu.
– Houve algum ferimento?
-Não. Trabalho profissional.
-Um bom uso da navalha. Em nenhum momento virou arma. Posso ver de novo?
– Que é isso? Vim aqui reclamar e a senhora vem me alisando.
– Senhora não, por favor – ela pediu. Voltemos ao registro.
Ela se aprumou diante da tela e digitava o relato com todos os dedos retos evitando o contato das unhas longas e verdes com as teclas.
– Se não houve ferimentos, o que o senhor quer relatar?
– A violência.
– Sim. Claro.
– Não pedi o serviço. A senhora não sabe o trabalho que dá conseguir o aspecto selvagem de uma barba. Não é assim, só ir deixando crescer. Tem que usar uma tesourinha para os fios mais rebeldes, esfoliar o rosto, relaxar a pele com toalha quente e, a cada dois dias, aparar com a maquininha.
Suzete puxou a barra da saia, cruzou as pernas e se acomodou de novo na cadeira.
– E este cabelo mal penteado, também dá trabalho?
– E não sabe como. Primeiro tem que fazer um bom corte, depois um clareamento bem suave, um tom (apenas um tom) mais claro que a cor e então levantar uma hora mais cedo para usar um gel especial nas mechas e pontas.
Com as mãos na mesa e a ajuda das rodinhas, a escrivã afastou a cadeira e olhou as próprias unhas.
– É só o que tem a dizer? Sem qualquer descrição física?
– Eram dois, usavam boné e máscara.
– O senhor já disse.
– Altura e peso como o meu. Só isso. Na linha 3774 -B.
– Denúncia de ato de violência contra barbados na linha 3774- B às 11 da noite do dia 27 de junho de 2009 sem ferimentos e sem descrições dos desordeiros. A vítima relata que só perdeu a barba. Assine aqui por favor.
– Só isso?
– Foi o que senhor me contou. Assine aqui e leve também um sapo para dar sorte.
– Obrigada – Adalberto passou a mão no rosto liso, assinou , agradeceu contrariado o registro e colocou o pequeno sapo de vidro no bolso da camisa. – Posso também levar uma miniatura?
Suzete revirou o pote tomando cuidado com as unhas longas e achou um lenhador.
– Tome. É seu. Pode levar.
Fiquei à deriva com o conto. Esforçava-me para entendê-lo e então acabou. Encerrei a leitura pensando se o objetivo era o cômico pelo estranho, pois é uma leitura leve, a interação dos dois personagens é intrigante e bem-humorada, a conversa sempre tangenciando o assunto que deveriam estar realmente tratando para dar lugar a insinuações e explicações de hábitos particulares e higiênicos. Isso dá um tom absurdo ao texto e esse mesmo aspecto se faz presente quando Adalberto faz sua denúncia de um “ato violento contra barbados”.
Nada disso prejudica o texto. Eu gosto do efeito distrativo que esses diálogos tem, principalmente quando ocultam uma mensagem. Parece fugir da estória, quando na verdade nos dá mais uma camada sobre o que estamos vendo. O meu exemplo imediato desse recurso não está na literatura, mas na TV, com a série “Fargo” (dou preferência à série mais do que ao filme). Então o que me perdeu um pouco no texto foi a falta de uma trama, dando um aspecto de crônica ao conto.
Por outro lado, se falei de significados subtendidos, devo explicar que li os comentários dos colegas e vi que Cidas extraiu um significado maior da estória do que eu consegui, então pode ser que minha leitura não esteja afiada. Seja como for, achei curioso e divertido, apenas senti falta de um enredo definido.
O que se espera do inusitado está mais do que presente. Uma alegoria de uma vida insípida, reclamando dela como é o acontecer diário de muita gente. E a esperança que um dia vamos poder tomar decisões e levar o nosso semelhante a aceitar, mesmo sendo bruto, sem educação, sem respeito e sem autorização. Gostei muito no sentido artístico e literário, sobrando ironia com relação aos “sapos” da vida e do interesse em relatar que os viventes nesse planeta cabem em um pote, porque, necessariamente, não sabem como se comportar fora dele. Leve, é seu. Parabéns!
Obrigada pela leitura cuidadosa e pelo comentário, Cilas.
Inusitado, primoroso nas descrições, ácido na medida certa: tudo o que eu gosto! Não sou de grandes análises porque sempre acho que me faltam credenciais, por isso peço que perdoe a natureza totalmente subjetiva da minha avaliação, que no fim se resume mesmo a um “adorei!”. 🙂
Oi, Gisele! Obrigada pela leitura e pelos comentários. Acho que somos parecidas com relação às análises e, talvez alguma coisa na abordagem dos textos. Também adorei o seu conto publicado aqui . Um beijão
Que divertido! Parabéns!
Para além do humor, a burocracia e seus rigores também ficou muito bem retratada no texto: o ambiente repressor de uma delegacia deserta; dois policiais disponíveis para atender um único cidadão; a presença do dispenser de senhas e a policial chamando “próximo” mesmo havendo uma única pessoa para ser atendida; os sapos ocupando o “panteão” da mesa enquanto os “humanos” se amontoam no pote; as unhas extensas, cuidadas e vigiadas, acompanhadas do digitar com dedos retos; e o registro minucioso da ocorrência, e sua inteira leitura, apesar da ausência de crime.
Há também uma crítica sutil, elegante da novicíssima vaidade masculina da geração hipster.
Há ainda, mesmo que não seja a intenção da autora, uma brincadeira com o gesto invasivo, muito comum nas grandes cidades, daqueles que retiram do assediar uma fonte de renda: lavadores de vidros, leitores de mãos, vendedores de toda sorte, artistas de rua etc.
Alguns pontos do texto me causaram estranhamento. Não sei se são erros ou subversões intencionais da língua. Eis:
– “e pediu documentos para Adalberto que alisava o queixo”: “que alisava o queixo” possui natureza explicativa e, por isso, deveria ser antecedido por vírgula. Sem vírgula, a natureza se torna especificativa, fazendo parecer que há mais de um “Adalberto “;
– “Suzete era nome no crachá”: não haveria um artigo “o” entre “era” e “nome”?;
– “Deixou ver ainda mais parte de seu colo e seios”: “parte” não deveria estar no plural?;
– “para prosseguir o desvio”: não haveria “com” antes de “o”?.
Gostei muito do conto! Leitura fácil, agradável, divertida, com uma dose bastante elegante e perspicaz de retrato e crítica da burocracia e da vaidade masculina da geração hipster! Mais uma vez, parabéns!
Oi, Anderson!
Obrigada pela leitura e pelos comentários elogiosos e cuidadosos. Suas observações sobre cochilos na língua estão corretas e vou corrigir no meu arquivo, mas não sei se é possível fazer isso no post. Será que é?
Um dia tentarei participar dos desafios. Só participei naquele de micro-contos porque minha escrita costuma ser breve.
Até um próximo encontro.
Um ótimo final de semana pra você.
Alice