Voca me cum benedictus.
Oro supplex et acclinis,
Cor contritum quasi cinis,
Gere curam mei finis.
Requiem Mass
Ao ser informado de que morreria dali a uma semana capitão Bonassiro começou os preparativos para o próprio funeral, Na manhã de segunda-feira, vinte e nove de outubro, o senhor vai acordar morto, disse o médico, sem perceber a contradição em seu vaticínio, pois quem morre não acorda e quem acorda não pode estar morto, uma coisa ou outra, senhor doutor, seja mais claro, por favor, O fato é que Bonassiro vai morrer e lhe dei exatamente sete dias de vida, segue a história e apega-te aos fatos essenciais, caso contrário aborrecerás quem te lê, diz-nos o médico, um tanto irritado, chamando-nos a atenção diante do leitor vexado com essa pequena troca de farpas entre narrador e personagem, queira nos desculpar pelo inconveniente. Uma semana de vida, repetiu Bonassiro, o senhor tem certeza, doutor, Certo como dois e dois são quatro, o senhor vai morrer na madrugada de segunda-feira próxima, dali não passa, lamento, mas é meu dever profissional informá-lo com toda franqueza.
O capitão, que se vangloriava de ter sido treinado para matar, segundo suas próprias palavras, ditas a um jornalista nos áureos tempos em que ocupava o nobilíssimo posto de vereador na famosa cidade de Ilitiópolis, e que jamais perdia a oportunidade de propagandear a morte como panaceia para os problemas da cidade, pareceu não se comover tanto com o fato de que estava condenado a desaparecer da face da Terra, mas preocupou-se de verdade ao dar-se conta de que uma semana talvez não lhe bastasse para preparar um evento daquela magnitude, ou seja, o velório de uma grande personalidade. É por isso que o vemos agora, encafifado e resmungão, no vai-e-vem da cadeira de balanço em sua varanda, Todos se lembram até hoje que o Marechal Tito encheu as ruas de Belgrado no dia do seu funeral, Marechal quem, Quatro reis, seis príncipes, trinta e um presidentes, vinte e dois primeiros-ministros e quarenta e sete ministros das relações exteriores, elencou, Para o funeral de quem, Quase cento e trinta países representados em Belgrado, E quem era esse sujeito, insistia o filho Emílio, enquanto o pai divagava em voz alta, A despedida de um homem deste mundo deve corresponder à grandeza de sua vida, se for uma vida gloriosa, como a minha, há de ter uma morte à altura.
Daí que já naquela tarde Bonassiro, alçando-se num rompante, começou a montar a cena final de sua peça biográfica. Telefonou para três dos seus amigos mais próximos, Gleysson Botes, Zé Estéra e Peri Thomata, dizendo a cada um deles, Preciso falar com você, é urgente, não diga nada a ninguém que vem aqui, é confidencial, você vai saber na hora certa, venha logo depois do trabalho. Reuniram-se no apartamento de Bonassiro às sete da noite, numa salinha escura e malcheirosa, Vocês devem compreender que a discrição, nesse caso, é absolutamente necessária para levar a bom termo o nosso plano, disse logo após informá-los detalhadamente sobre a sua morte próxima e o evento funerário programado. Você está nos dizendo que morre daqui a uma semana, espantou-se Peri Thomata, Segunda-feira de madrugada, precisou Bonassiro. E a sua maior preocupação é com o seu funeral, disse, intrigadíssimo, Zé Estéra. Gleysson Botes, porém, achou tudo muito interessante, e aproveitou para fazer o elogio do amigo, a quem considerava, de acordo com o seu discurso laudatório, Um exemplo de ética e correção moral, um homem que se coloca acima dos mundanos interesses materiais e que dedicou toda a sua vida pública, nos tempos de sua notável vereança, a alertar nossa sociedade contra os perigos desagregadores das falácias liberais e socialistas, cuja influência nefasta corroíam e, por que não dizê-lo, ainda corroem a já precária coesão social ilitiopolitana, conquistada apenasmente depois de muitos anos de educação cívica nas escolas municipais, limpou a baba que já lhe escorria pelo queixo e acrescentou, Meu capitão pode contar comigo na organização desse evento triste, sim, porque trata-se da despedida de um gigante moral, mas justo e adequado, porque dedicado a uma personalidade que merece todos os nossos esforços e reconhecimento.
Pois bem, cada um de vocês será o responsável por uma tarefa específica, Missão dada, missão cumprida. Gleysson Botes cuida da repercussão na imprensa, o modo como os jornais deverão abordar tanto a notícia da minha morte quanto os eventos relacionados ao funeral, Aceito. Zé Estéra fica responsável pelos ritos fúnebres, pela música, quero um Réquiem famoso tocando enquanto o povo chora, e também muitas coroas de flores e o ataúde deve ser o mais caro e pomposo de Ilitiópolis, Entendido, capitão. E você, Peri Thomata, fica por conta de minha morte propriamente dita, na madrugada de domingo para segunda-feira venha dormir em casa e traga um jornalista para tirar a foto do meu cadáver logo de manhã, agindo sempre com a maior atenção, como já recomendado, cuidando para que eu esteja muito bem apresentável, não muito pálido, para sair bem nas capas dos nossos diários e revistas, Deixe comigo, caríssimo. Eu, no entanto, tratarei de arranjar o dinheiro necessário para que tudo seja executado como deve ser.
Distribuídas as funções, partiram todos os três a cumpri-las, fiéis, dedicados e ansiosos por corresponder devidamente à confiança do amigo que, deus do céu, nem dá para acreditar, vai deixar este mundo dentro de sete ou, mais precisamente, seis dias, pois já é noite de segunda-feira, e falta menos de uma semana para, enfim, o senhor o acolha bem lá em cima, nós cuidamos do seu fim aqui em baixo.
O primeiro a arregaçar as mangas e botar as mãos na massa, permita-nos a concessão à fala popular, foi Gleysson Botes que já na manhã seguinte telefonou para o jornal de Ilitiópolis, Gostaria de falar com o senhor diretor, por favor, Pois não, disse a voz do outro lado, senhor diretor, tem aqui alguém que lhe deseja falar, ao que o senhor diretor respondeu, Diga que espere um minuto, e sendo ele, como se sabe, o senhor diretor do jornal de Ilitiópolis, não podia atender ao telefone senão quinze minutos depois, evidentemente, é um homem importante, solicitado, tem muito o que fazer, estranho seria se visse a atender imediatamente à chamada, como um funcionário que se apressa em cumprir as ordens de um superior, Pois não, quem fala, Senhor diretor aqui é Gleysson Botes e tenho um furo tremendo para o vosso jornal, Do que se trata, Não posso dizer agora, É coisa que devemos conversar reservadamente, Não se pode nem mesmo adiantar o assunto, Infelizmente não, Corremos o risco de perder o furo se não divulgarmos a notícia rapidamente, A notícia ainda não se produziu, senhor diretor, Como pode ser isso, O jornal vai se adiantar à notícia, Venha encontrar-me nesta tarde às dezoito em ponto, no meu escritório, espero que o tal furo justifique a vossa visita, Acredite, senhor diretor, será a notícia do ano.
À hora marcada estava ali Gleysson Botes, na sala de espera, tamborilando os dedos no braço da cadeira, agitando pés e pernas, como fazem os ansiosos. O diretor apareceu às dezoito e trinta, e não haveremos de justificar o pequeno atraso, o leitor há de compreender, é o senhor diretor, este que aparece de sandálias havaianas, bermuda, cabelos despenteados e um poodle no colo. Entram na sala da direção a tratar do assunto confidencialíssimo, sozinhos, ou quase, permitam-nos entrar também, prometemos não atrapalhar, é necessário estarmos atentos ao diálogo, para o melhor andamento deste relato, Senhor diretor, nosso querido capitão Bonassiro está com os dias contados, o médico deu-lhe sete dias de vida, e considerando-se que isso foi ontem, sete são agora seis, morre, portanto, o nosso estimado capitão na próxima madrugada de segunda-feira, vinte e nove de outubro, E como é possível que hajam previsto sua morte com tanta previsão, quem é o médico responsável, Isso são outras histórias, não se pode saber, além do mais, o tal médico é um tanto irritadiço e dado a questiúnculas, melhor não mexer com ele, já no começo deste relato criou caso com o pobre narrador por conta de uma pequena imprecisão narrativa, deixamos isso de lado, Entendo, E o senhor está aqui precisamente para, Estou aqui para que o jornal possa cobrir em primeira mão o desaparecimento desse grande homem, patrimônio moral de nossa cidade, colocando um fotógrafo de prontidão em sua casa, na madrugada fatal, para o registro desse evento triste e traumático para o povo ilitiota, Senhor Botes, ficamos profundamente comovidos com o seu gesto, como era de se esperar, o criador deste relato não o traria até aqui à toa, um bom motivo haveria de ter, confirmo, portanto, a presença de nosso melhor fotógrafo na casa do capitão Bonassiro, seremos, queira deus, os primeiros, ou mais precisamente, os únicos dar a notícia do seu desaparecimento, já na tarde de segunda-feira, o que nos deixa muito felizes e honrados, mas tristes, por outro lado, com o fim de um homem de tão grande valor.
Acertaram o procedimento, escolheram o fotógrafo, planejaram o editorial, título da matéria de capa, Morre Bonassiro, é muito frio, Desaparece um gigante, parece bom, Ilitiotas de luto, escolhendo esse último, cogitaram o aumento da tiragem para o vinte e nove de outubro, dois mil exemplares a mais, quem sabe, talvez um caderno especial, quatro ou cinco páginas lembrando esse filho ilustre de nossa terra, enfim, trataram de todos os pormenores. Depois do que Gleysson Botes, feliz e satisfeito, foi embora com a sensação de missão cumprida, como costumava dizer no seu soberbo jargão militar.
Zé Estéra, por sua vez, encarregado de toda a cerimônia que se seguiria à morte do amigo, conforme combinado, não tardou a entrar em contato com o padre. Na segunda-feira à tarde procurou-o e explicou-lhe toda a situação. O homem ficou um pouco mais surpreso que o senhor diretor, admitamos, não fica bem a um padre receber com frieza a notícia da morte próxima de um cristão. Depois, portanto, de deixar claro e manifesto que sim, comovia-se, como pode ser, um homem tão bom, um crente fiel, frequentador das missas dominicais, irmão exemplar, como pode ser, dizia ele, que desapareça assim, sem mais nem menos, de noite para o dia, desígnios do senhor, sempre inescrutáveis, ao que nós o corrigiremos, permita-nos vossa reverendíssima, não é da noite para o dia e, sim, de uma semana para outra, já o médico nos havia alertado, os desígnios não são do senhor, mas do narrador desta história, e tampouco inescrutáveis, em literatura, pelo menos a boa, perdoe-nos a fatuidade, tudo há de ter um motivo, e este não nos falta. Depois de deixar claro que se comovia, dizíamos, o padre disse que ajudaria Zé Estéra a preparar os mais belos ritos fúnebres, com todas as pompas de que Bonassiro, coitado, era merecedor, e que não se preocupasse, portanto, tudo estaria preparado para a fatídica segunda-feira em que o capitão amanheceria morto, porque sim, mesmo um homem daquela estatura estava suscetível a amanhecer morto, assim como os papas, os reis, os imperadores, os presidentes, os astros de cinema, os grandes artistas, os escritores notáveis e os poetastros diletantes.
Zé Estéra, meu caro, agora pode nos deixar, vá procurar o mais belo ataúde da cidade, pois devemos convocar Peri Thomata, aquele responsável pela morte em si, pelo evento, ou seja, o que deve cuidar para que o fotógrafo escolhido por Gleysson Botes e o senhor diretor venha a realizar o seu trabalho de maneira adequada, captando a melhor imagem do cadáver, a que será estampada na capa dos jornais ilitiotas, sendo aquele do senhor diretor o primeiro dentre todos. O problema é que faltam ainda seis dias para a morte do capitão e, ao contrário de seus companheiros, Peri Thomata tem tempo de sobra para planejar os procedimentos, basta esperar que Bonassiro durma e acorde morto, ou melhor, não acorde, e depois o controle de sua aparência, de sua imagem, porque a gente nessa vida passa, mas a imagem fica, e o que conta de verdade é esta última.
E porque o tempo lhe sobra, caro Peri, poderíamos contar como o capitão Bonassiro conseguiu o dinheiro que vocês usaram, o que acha, Não seria má ideia, e além do mais, ainda que eu me opusesse, teria por fim que ceder à tua vontade, já que quem mete estas palavras na minha boca és tu, Mas não litiguemos por isso, prometemos trazê-lo de volta, não se desespere, assim que Bonassiro estiver para morrer, já na noite de domingo, ao que tu responderás, Ok, e basta, para que não nos tome mais tempo e espaço, temos mais o que fazer, até logo.
Reparem agora o capitão Bonassiro, a força ética e moral de Ilitiópolis, tomando as devidas providências para sacar a enorme quantia que pretende gastar em seu velório, mais precisamente, todo o dinheiro que ganhou em vida, já o flagramos a pensar em voz alta, Se não gastar tudo o que juntei, fica esse dinheiro para os parasitas que me cercam, Mas e os seus filhos, capitão, queremos saber, e Bonassiro diz que eles já têm o suficiente para viver o resto de suas vidas sem trabalhar, dinheiro deles é deles, seu é seu, já os deixou numa boa situação, o Emílio nós conhecemos, é o pequeno sábio que nunca tinha ouvido falar no Marechal Tito presente no começo do conto e a quem não demos maior atenção, alguns personagens são assim, insignificantes, e cumprem uma função meramente assessória, não há o que fazer. E o dinheiro que você juntou a vida toda, nós ainda não sabemos como o ganhou, você dirá que de maneira lícita, mas nós temos certeza de que não foi assim, quero que nos diga a verdade, como foi, Eu mesmo não tenho controle sobre minhas palavras e, devo admitir, nem é culpa tua, O que você quer dizer, Quero dizer que eu sou mesmo um estúpido desbocado, e que se tu me apertas um pouco, mas um pouquinho só, eu respondo de maneira grosseira, mas honesta, E isso, por acaso, não somos nós que metemos em sua boca, Não, Mas, como pode ser isso, se nós é que narramos esta história, Não foste tu mesmo que disseste que a boa literatura não possui desígnios inescrutáveis, Isso quer dizer que nós não podemos fazer de você aquilo que bem entendermos, Exato, E significa que você tem vida própria, Sim, a vida é minha, não posso ser diferente, mas é você que vai cuidar do meu fim.
Então nos diga como conseguiu juntar todo esse dinheiro, sabemos que é muito, mas não falamos em cifras, poupemos o leitor desses pormenores, Esse dinheiro eu ganhei fazendo lobby para os interesses mais espúrios, desviando dinheiro público, sendo corrupto e corruptor, cometendo todo o tipo de crime, me aproveitando da ignorância e da boa fé das pessoas, E nunca foi desmascarado, Gastei muito dinheiro com propaganda, alguém neste conto já falou sobre a importância da imagem, Tem razão, e é apenas o nosso leitor que saberá disso tudo, Sim, apenas esse privilegiado, E se alguém, ainda cego pela sua propaganda, vier a ler este relato, Nunca se sabe. Desfaça a cara de pasmo, leitor, a sinceridade às vezes pode chocar, mas não é este o caso para estar surpreso, todos sabemos como funciona a política ilitiopolitanta. Se em algum momento esteve enganado com o nosso ilustre capitão, não podemos senão lamentar, só mesmo sendo muito ingênuo, não se irrite, sempre é tempo para abrir os olhos.
Durmamos tranquilos e certos de que um outro dia virá, e não apenas um, mas seis, que este relato já se alonga além da conta, cheguemos de uma vez por todas ao domingo à noite, metamos Bonassiro dentro de casa, junto ao repórter fotográfico e a Peri Thomata, bem disséramos que tornaria na hora certa, ei-lo, pois. Não nos esqueçamos, porém, de dizer oh céus quão cansativa foi esta última semana, sobre a qual saltamos assim, de modo displicente, recorrendo ao subterfúgio barato dos seis dias e seis noites de sono, uma semana em que os nossos personagens estiveram às voltas com os últimos preparativos para o funeral, não se engane o leitor achando que toda a movimentação esteve restrita à terça-feira subsequente à fatídica notícia, deus nos livre de dar a entender um tal disparate. Foram seis dias de muito trabalho e ansiedade. Ora tornemos ao domingo à noite.
Bonassiro parou diante do espelho, ajeitando o paletó, e disse, Eu não posso dormir de terno, Peri, Ninguém dorme de terno, Mas lembre-se de que será uma morte repentina, o senhor poderia ter chegado a casa, vindo de um evento qualquer, e ter se sentido mal, ainda de terno deita-se e morre, Tem razão, Vamos deitando, então, meu amigo, Cuida do meu fim, Peri, Pode deixar, capitão, está tudo pronto, Agora tenho que ir, Sim, é chegada a hora, Obrigado, Peri, Foi uma honra ter conhecido um mito ilitiota.
Disseram os adeuses e apagaram-se as luzes. O repórter fotográfico senta-se na sala contígua. Não conseguirá pregar os olhos, quer estar atento ao primeiro chamado de Peri. Quando baterem as sete, e elas soarão estridentes no despertador, vão entrar no quarto. Bonassiro, estendido na cama, vai estar morto, morto, morto. Amanhã não se falará de outra coisa. Vai estar na capa dos jornais. Vai haver um Réquiem Mass no seu funeral. Um cortejo belíssimo o acompanhará ao mausoléu da família Bonassiro. Quem sabe haja até mesmo uma garoa? Um discurso certamente haverá, a noite vai ser longa, como fará para adormecer tomado de tamanha expectativa, nunca mais vou acordar, amanhã morto e minha vida funeral últimos pensamentos como será escuro aqui Peri fotografia jornais glória tanta gente imagem escuro sono morte não vou mais acordar vazio. Adormece.
A noite passou, todas as noites passam, e quando bateram as sete, quando o relógio, num escândalo típico de despertadores, acordou Peri Thomata e avisou o repórter fotográfico de que o momento de entrar no quarto finalmente tinha chegado, Bonassiro não estava preparado para a foto, porque vivo não seria capa de jornal nenhum, nem o do senhor diretor, nem o dos concorrentes, vivo, assim como ele estava, não seria possível entrar no ataúde imponente que lhe haviam reservado, nem ser o motivo da missa fúnebre e nem arrastar um cortejo, talvez o maior de todos na gloriosa história de Ilitiópolis. E foi por isso, leitor, que ele se irritou. Ou, antes, que ele ficou encolerizado. Diríamos, mesmo, enfezado, para que a nossa expressiva palavra em português venha a coincidir etimologicamente com a origem dos nomes de seus amigos, segredos de iniciados, não os espalhemos.
Gritou, praguejou, esbravejou, revoltou-se, Mas que raio de médico era aquele, disse que eu morreria, me garantiu, olha eu aqui, vivinho da silva, e agora o que é que a gente faz, Peri Thomata, porque este já tinha entrado no quarto, Estamos perdidos, tudo por água abaixo, um rio de dinheiro, tudo o que eu tinha, uma semana de nossas vidas, isso é um desastre, e por aí vai, o leitor faça o favor de imaginar a consternação do capitão que, ao invés da morte prometida e gloriosa, encontrava-se acordado e sem glória nenhuma. Isso não pode ser, Peri, aquele doutor nos colocou nesta situação, agora vamos ter que tirar isso a limpo.
Peri já ia responder, possivelmente dando razão ao amigo, quando o repórter fotográfico tirou a primeira foto. Se tivessem chegado a revelá-la, ali estaria um Bonassiro espumando, de boca aberta, braços alçados, olhos arregalados, a imagem, diríamos, de um verdadeiro celerado enlouquecido. A notícia em primeiro lugar, teria pensado o repórter, não está morto, o plano falhou, mas essa história toda pode dar uma excelente reportagem. Jamais saberemos o que lhe passou pela cabeça, pois assim que tentou escapar, correndo, levando consigo a foto do celerado, Bonassiro apanhou o primeiro objeto que estava ao seu alcance, um cinzeiro pesado, ali no criado-mudo, e atirou-o na direção do pobre rapaz que, afinal de contas, só estava fazendo o seu trabalho, ninguém merece ser agredido por exercer sua profissão.
Antes de constatar que o repórter morrera de fato com a pancada do cinzeiro na cabeça, Bonassiro ainda teve tempo de dizer, desculpe-nos a vulgaridade, puta-que-pariu, o que é que nós fizemos, mas isso é só um modo de se expressar, porque o Peri Thomata, embora não sendo santo, não é assassino. O capitão chegou junto ao corpo do rapaz, tentou acordá-lo, mas o mal já estava feito. Foi então que teve uma iluminação, Peri nós estamos mortos, vamos os dois presos, e seremos desmoralizados, Mas capitão, A única coisa a fazer é aproveitar o cadáver do jornalista e botá-lo no meu lugar, Mas saberão que não é você, capitão, Não o saberão, se nós dermos um jeito no corpo, Mas como, Vamos tocar fogo, sumimos com a arcada dentária, deixamos irreconhecível, você não se lembra de como fazíamos no tempo da revolução, Sem deixar vestígios, Exato, Depois espalhamos que fui vítima de um atentado de terroristas de esquerda, diremos que vieram fazer comigo aquilo que nós fazíamos com eles antigamente, E todo mundo vai se comover, Sim, e seguimos com os nossos planos, ninguém sai perdendo, Mas, e o diretor do jornal, ele vai dar pela falta do funcionário, o que vamos lhe dizer, A gente inventa qualquer coisa, Peri, ele também vai achar que estou morto, diremos que os terroristas o levaram porque os tinha fotografado, sei lá.
E porque a um amigo não se nega um favor desses, Peri Thomata executou meticulosamente o plano concebido por Bonassiro. Apagou os traços do que era repórter. Tomaram-no, depois, pelo capitão. A imprensa repercutiu a notícia e comoveu a todos com o relato do crime bárbaro. O sequestro do repórter fotográfico também foi cuidadosamente reconstruído por todos os jornais da cidade, particularmente o seu, ou melhor, o do senhor diretor. As homenagens a Bonassiro vieram de todas as partes, até mesmo o presidente da República, seu antigo correligionário dos tempos da revolução, veio participar dos ritos fúnebres. Executou-se um Requiem Mass enquanto o corpo, ou o que restara dele, era velado. Um cortejo enorme, o maior da história ilitiopolitanta, seguiu o defunto. Houve, quem diria, até mesmo uma pequena garoa, triste e insistente. Um falastrão de plantão, amigo de outros tempos, lembrou-se de Brás Cubas e desfiou um discurso que tocou muita gente honesta, gente de bem, que chorava sentida e se indignava diante da crueldade humana, veja só aonde chegamos, esses monstros merecem a morte, como diria o nosso capitão.
Bonassiro estava exultante. Tinha conseguido. Morrera coberto de glória. Também ele se emocionava. Pensava ser um privilegiado por ter vivido uma vida tão boa e, ao final, ter assistido ao seu próprio fim, escondido ali à margem da multidão, certificando-se de que tudo saíra às mil maravilhas. Pensava em como faria para tirar satisfações como o médico incompetente que o colocara naquela situação, já que, na prática, já estava debaixo da terra. Pensava, repensava, mas também não chegava a entender uma coisa, por que, afinal de contas, nós não o matamos. Mas ele, cedo ou tarde, vai acabar descobrindo que morrer é pouco. Danação mesmo será passar o resto de seus dias vivo, mas como um morto de verdade.
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Anderson Piva é escritor, autor de Linguamundo, (Partesã, 2019). Como poeta foi premiado pela Academia Volta-redondense de Letras, pela Universidade de Fortaleza e pelo Jornal O Imparcial. Como contista foi um dos vencedores do XIII Concurso Nacional de Contos “Ignácio de Loyola Brandão”.
Eu não sou um grande conhecedor de literatura. Reconheço que ainda tenho muito para ler e faço disso uma ressalva para o meu comentário, pois o primeiro autor em que pensei enquanto lia suas linhas foi o Saramago. Deve haver outro que se utilize da mesma técnica, mas não conheço. Agora, sobre o estilo em si: os parágrafos são longos, os diálogos são feitos em linha contínua, indicados apenas pela maiúscula, e a narração inclui o leitor, sendo cheia de ressalvas, ora para que o narrador debata com um personagem, ora para se desculpar por um suposto excesso de explicações. Da mesma forma que é com o autor lusitano que citei, a impressão é a de um texto que poderia ser verborrágico, mas que, muito pelo contrário, flui muito bem sem cansar quem lê. A sensação é andar por através do cenário e dos personagens junto ao narrador.
Mas, para comentar para além do estilo, há o conteúdo do conto. É evidente que figura pública o texto satiriza, então o teor é cômico e cínico, dedicando um parágrafo inteiro à honestidade crua e improvável do protagonista, mostrada ao narrador sob a promessa de que só o leitor saberá a verdade. Encontrei algumas premissas interessantes que se materializam em assertivas ao longo da leitura. A primazia da imagem sobre a realidade, a curiosa ideia de patrimônio moral e a diferença entre narrador e criador, entre criação e literatura. Essas são algumas das observações notórias que são feitas ao longo do texto e que dão autenticidade ao conto e ao estilo.
Fiquei com vontade de saber o que mais de Ilitiópolis poderia ser explorado pelo narrador. Olhando com atenção, a política, em Ilitiópolis e no mundo todo, oferece um mosaico de possibilidades que a literatura afiada desse narrador transformaria em estórias intrigantes e engraçadas.
Por trás desse conto, há a pena de um gênio:
– parágrafos longos;
– utilização não usual da pontuação;
– vocabulário rico (e, em alguns momentos, erudito);
– narrador intruso;
– humor ácido;
– alternância de pessoa nas conjugações verbais;
– diálogos no interior dos parágrafos;
– revisão que beira o impecável;
– deus, senhor e outras remissões ao santíssimo grafadas em minúsculo;
– lugares comuns da língua empregados de maneira não usual;
– crítica social e política.
Não gostei:
– a epígrafe, apesar de plenamente justificada pelo enredo, aliena o leitor (de regra, o emprego de idioma estrangeiro possui o efeito de alienar o leitor).
Talvez caiba correção:
– “Ao ser informado de que morreria dali a uma semana capitão Bonassiro começou os preparativos para o próprio funeral”: inserir uma vírgula entre “semana” e “Bonassiro”;
– “os únicos dar a notícia do seu desaparecimento”: inserir “a” entre únicos” e “dar”;
– “de noite para o dia”: trocar “de” por “da”;
– rever os “ter que” do texto para se certificar se o mais correto não seria o “ter de”.
Parabéns pelo conto! É fantástico! Se me vendessem como do José Saramago, eu compraria!
F A N T Á S T I C O!