EntreContos

Detox Literário.

O Homem Amarelo – Conto (Almir Zarfeg)

O bicho homem era amarelo que nem uma banana madura, o Cristo pintado por Paul Gauguin ou os girassóis de Van Gogh. Tão quente que era capaz de nos deixar ansiosos. E lelés da cuca. 

Chegou chegando e, porque não dizia palavra, ninguém sabia de onde vinha. Se era chinês, japonês ou coreano. Mongol? 

Para dificultar ainda mais a identificação, não era capaz de escrever uma única palavra em português, nem ideograma, ou desenhar um sinal com fumaça no céu, como os índios apaches. 

Mas sua presença se impunha no ambiente com aquele amarelo que tomava conta de tudo e todos, como um sol que aquece a pele da gente. 

Com o passar do tempo, as pessoas se acostumaram com a presença do homem, que, a bem da verdade, não precisava dizer a que viera. Sua presença bastava, de modo que ninguém mais queria saber quem era o tal, de onde vinha, para onde pretendia ir. 

Na prática, nós fomos nos acostumando com a presença dele ou, melhor dizendo, com o amarelo que ele trazia consigo. A rigor, ele era amarelo, estava impregnado de amarelo. Ser humano e cor eram inseparáveis. 

– Sem a roupa amarela, como ele será? – quis saber Giu Jorge.

– Boa pergunta, mas não tenho a resposta – respondeu Gê Geraldo, dando um jeito de soltar seu advérbio predileto: “Cordialmente”!

Aquela conversa era pouco ou nada esclarecedora, ou seja, nós confundíamos o amarelo com a roupa do homem amarelo. Mas aquele ouro seria a vestimenta ou a pele dele? 

Àquela altura dos acontecimentos ninguém se importava se o homem vestia alguma coisa amarela ou se aquilo, que alguns diziam ser a roupa, era a própria pele dele. 

Gê Geraldo – que além de cordial, era muito observador – notou que a boca do bicho homem era bem pequena, miudinha, enquanto o nariz se impunha de uma maneira desconcertante. 

– Narigudo, sim, mas não como Pinóquio – observou Gê. 

Na verdade, aquele nariz estava mais para o nariz do ator francês Gérard Depardieu. Ou quem sabe um nariz de palhaço, mas amarelo e não vermelho! 

– Nem uma coisa nem outra. Meus amigos, não tem nariz coisa nenhuma. Aquilo é uma gema de ovo! – anunciou Dimas Oliveira, à noitinha, no barzinho Fla & Mengo, passando em seguida a descrever os tipos dos narizes brasileiros: negroide, romano e asiático…

– Pois para mim só existem dois tipos: curto e comprido – interveio Valdim, já medindo o nariz que Deus havia lhe dado e com o qual era feliz. 

Mas tudo isso, que fique claro, não passava de suspeita ou mero exercício de adivinhação, porque era impossível, a olho nu, tirar maiores conclusões sobre o nariz do ilustre forasteiro. 

Porque, de uma vez por todas, aquele amarelão dificultava qualquer tentativa de definir as feições do bicho homem. Se não éramos capazes de atinar se ele estava vestido assim ou assado, como iríamos operar aquela aritmética, ainda que elementar: quantos olhos, qual tamanho do nariz, onde terminava o braço e começava o antebraço?

O certo é que as perguntas continuaram sem respostas um tempão, enquanto a amizade entre o amarelo e as demais cores só aumentava. Quando misturávamos uma cor quente com uma fria, então, o milagre acontecia. Era bonito de se ver. Era um espetáculo para os olhos e – por que não? – para o coração. 

Mas é preciso informar, a bem da verdade, que muitos de nós se queimaram ao tentar uma mistura equivocada, vermelho com amarelo, por exemplo. Zé Bicha teve as orelhas queimadas, coitado! Isso para ficarmos no caso mais notório ali na redondeza. 

Foi numa sessão de mistura de cores que a professora de Artes, dona Maria Zilda, teve uma ideia para lá de genial: como esfriar uma cor metida a besta, tipo amarela, sem maiores complicações. 

– Como assim, professora? Nos oriente, por exemplo, mulé abençoada! 

– Muito simples, pessoal: com um balde de água fria! Se ele é capaz de ressuscitar até morto, que dirá esfriar uma cor quente!

A professora explicou tudo bem explicadinho, ainda fazendo cara de agradecida, como se por trás daquela explicação tivesse uma segunda intenção. Ou mais de uma intenção. 

Dois dias depois da aula esclarecedora da professora Maria Zilda, o homem amarelo levou um balde de água fria na cara. E o que era, até então um mistério para todos nós, acabou esclarecido publicamente. 

– Vejam só: não é um homem amarelo, mas um cão amarelo – anunciou Gê Geraldo, fazendo as vezes de porta-voz da comunidade. 

Para sermos mais exatos, era um labrador amarelo com um nariz tamanho família. Aliás, tudo nele era familiar: os olhos, a boca, as orelhas, enfim, até o temperamento amistoso. 

– Amarelou tem que rezar! – gritou um gaiato no meio da pequena multidão surpresa que se formara.

E não é que, naquele instante mágico, o bicho foi capaz de articular uma palavra, bem estranha, mas ainda assim um achado linguístico: Corona! 

– Enfim, povos e povas, uma mistura de cor e coração. Cordialmente – elucidou bonito Gê Geraldo. 

Não demorou mais que alguns minutos para que o mesmo GG, com a aprovação dos presentes, batizasse o improvável homem de “Corona, o cão do amor”! 

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3 comentários em “O Homem Amarelo – Conto (Almir Zarfeg)

  1. Almir Zarfeg
    12 de outubro de 2020

    Grato pela leitura, rapazes. O conto é apenas um exercício de realismo fantástico à baianeira. (risos) Gosto tanto da vírgula, Anderson, que, ali, preferi dar uma folga à danada. (mais risos) Também estou feliz com minha estreia aqui. Até mais ver!

  2. opedropaulo
    11 de outubro de 2020

    Ao contrário de Anderson, não corro o risco de me constranger, pois sequer investiguei o possível sentido do conto! Li a maior parte do texto apoiado na ressalva que geralmente essas premissas surreais nos oferecem, que é a de se desapegar do significado. O ponto em que achei maior linearidade foi a curiosidade em torno do forasteiro, típica de cidades pequenas ou espaços mais restritos (como um prédio, por exemplo). A partir daí, o conto prende pelo mistério em torno dessa figura amarela, que a princípio é pessoa e cor ao mesmo tempo. O tom prosaico e falastrão dos especuladores é pândego e, enquanto faz rir, também nos faz pensar. Afinal, também me peguei supondo sobre o que explicaria aquela aparição colorida. O final foi um tanto desconcertante e foi onde tentei fazer algum sentido da estória, literal ou figurado, fosse na natureza subitamente canina do forasteiro ou na palavra agourenta que conseguiu pronunciar. Não encontrei nenhuma. Então a conclusão desaponta um pouco, mas a jornada, breve e brincalhona, temperada com mistério, garantiu uma leitura agradável.

  3. Anderson Do Prado Silva
    11 de outubro de 2020

    Olá, Almir! Então este é seu trabalho de estreia no EntreContos?! Seja bem-vindo! E que bela estreia, hein! Seu texto está muito bem escrito e bem revisado! Textos mal escritos e mal revisados perdem leitores logo nas primeiras linhas. Assim, seu texto se tornou um convite para que sigamos adiante. Enfim, seu português está ótimo!

    Mas não apenas seu bom português é convidativo! Seu texto é dinâmico, veloz, fluido. Além de ser curto, claro, ele é divertido, possui algumas inserções de diálogos e seus personagens, apesar de apresentados brevemente, cativam. Por essas qualidades, espero contar com você muito tempo por aqui!

    Li seu texto com bastante atenção. Não me deparei com nenhum erro gramatical ou ortográfico que chamasse atenção de um leigo. Apenas aqui, talvez, eu acrescesse uma vírgula depois de “acontecimentos”: “Àquela altura dos acontecimentos ninguém se importava se o homem vestia alguma coisa amarela”.

    Tive dificuldade com o seu enredo. Não me ficou claro qual teria sido a sua proposta. A menção do “Corona” me fez supor se tratar de uma alegoria, de uma fábula sobre a pandemia de coronavírus, mas não alcancei nenhuma de suas analogias.

    Como eu sou o primeiro a comentar, estou correndo um risco enorme de me constranger. Sabe aqueles romances policiais repletos de revelações esclarecedoras? Ou aquelas imagens que contêm mais de uma figura? Então, pode ser que você ou algum outro entrecontista comentarista apareçam aqui com uma explicação esclarecedora. Ainda assim, vou deixar aqui consignada essa minha dificuldade porque, infelizmente, o fato de um ou mais leitores não terem alcançado o propósito do seu texto pode significar um defeito de construção, um ruído de comunicação que você, como escritor competente que é, pode corrigir com seu amplo cabedal.

    Outra hipótese que cogitei é você ter construído esse enredo intencionalmente aberto, criando uma confusão ou obrigando o seu leitor a pensar, a refletir. Bem, se for essa a hipótese, respeito a sua escolha, mas me coloco fora do seu público leitor, porque, veja bem!, meu intelecto de leitor não acompanhou o seu intelecto de escritor. Não enveredei por extensas, profundas ou, mesmo, rasas reflexões, apenas me senti frustrado por estar diante de um texto tão bem escrito, tão bem revisado, tão bem humorado, mas cujo enredo não me fez o menor sentido, não me ofereceu qualquer contentamento. Escrevendo isso eu me sinto quase um “leitor de entretenimento”, mas o EntreContos, ao mesmo tempo em que nos permite crescer como escritores, também nos permite identificar o nosso público leitor.

    Almir, apesar das minhas ressalvas, foi grata sua chegada ao espaço, pois percebo que você chegou já imbuído de muita força, muita competência. Será, ou talvez já seja, um escritor muito bom. Apenas este seu enredo aqui (e apenas este) ficou confuso, difícil ou inalcançável para este seu leitor aqui (o Anderson, com artigo definido). Desejo melhor sorte com outros leitores! Mais uma vez, bem-vindo ao EntreContos! E parabéns pelo texto!

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Publicado às 10 de outubro de 2020 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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