Fiquei feliz quando soube que Sebastian e Sada haviam morrido. Vesti o meu melhor terno, uma camisa limpa e a gravata mais nova que encontrei, sem manchas de café ou cinzas de cigarro, escanhoei a barba, pus uma graxa nova nos sapatos, e corri ao cemitério. Sebastian e Sada… — Mortos! Pensava no fim das minhas dívidas de jogo, naquele milagre tão repentino quanto oportuno que pôs fim às minhas obrigações quando já não havia dinheiro que o fizesse.
Nunca achei que cemitérios fossem lugares ruins, talvez a morte que eles acolhem é que não me caísse bem, pois sabia que o fim de tudo pode chegar naquele piscar de olhos que não interrompe a visão, e morre-se assim, sem perceber o que aconteceu. Embora soubesse que para onde vamos segue também conosco a morte, não costumava ir cemitérios nem mesmo para enterrar amigos, mas saber que Sebastian e Sada logo estariam sob a terra era diferente, e fui direto ao São João Batista para uma íntima comemoração.
Não era um dia ruim para enterros, havia chovido pela manhã, o que amenizava o calor que fazia naqueles dias de um Outono que apenas começava. Depois veio um vento frio com nuvens baixas e escuras, e isso deu às tumbas um ar bastante receptivo, com as lápides sendo tomadas pelo frescor das águas novas, musgos crescendo e flores em vasos cor de âmbar. Era o quarto dia seguido de chuvas intermitentes, bastante agradáveis.
Nas poucas vezes em que fui ao São João Batista, sempre gostei de passear pelas ruelas lendo o nome daqueles que por lá descansam. Vez por outra encontrava um conhecido, alguém de quem ouvi falar, gente com quem cruzei minhas cartas, e sempre havia a boa surpresa quando descobria que um credor de jogatinas havia batido as botas, e, nesses casos, ganhava a certeza de que a morte nada mais é do que uma mudança na decoração das casas, e que essa morte, em si, é o único objetivo da vida, não do morto, é claro, mas dos que se beneficiam com tal partida, certamente a de um credor mesquinho.
Estava nisso a vantagem de chegar cedo aos enterros e rever, ao menos em lembranças, os cretinos que se foram — era quando eu dava graças a Deus por ainda continuar vivo sabendo daquela gente ali deitada; e para sempre.
Enfastiado de olhar aqueles tantos nomes, entrei na capelinha e encontrei por lá velhos amigos, todos ainda vivos como eu, conhecidos jogadores que se mostravam surpreendentemente felizes. O Alfredo Pinheirinho estava lá, foi ele o primeiro que vi. Parecia mais esticado, pois a cifose que o tornava um maldito corcunda havia quase desaparecido de tão contente que estava. Logo que me viu veio rápido para um cumprimento, não sem antes levar sua mão peluda ao estômago para apertá-lo, aproveitando para me dizer que sua úlcera não andava bem. Depois veio um cumprimento de mão suada pela hiperidrose que arrasta consigo desde a adolescência, que fez seguir de um longo abraço. Disse-me, em seu infeliz vício de duvidoso advogado, num latim de tribunais:
— Avarus facit nihil recte, nisi quum moritur.
— Deus immisit ventum vehementem… — respondi sem muita convicção do que falava, porque, não sendo advogado, meu latim era apenas de soar bem aos ouvidos.
— Ufa! — ele fez, já com o rosto colado em meu ombro.
Pinheirinho não cheirava bem, com um odor amargo deixando seu corpo, atacando o meu nariz. Talvez fosse apenas o cheiro de roupas tiradas do armário, não sei, ou a exalação dos inúmeros remédios que toma. Dei a ele um sorriso sem mostrar os dentes para não ofender além do necessário aqueles que jaziam frescos em seus caixões, mesmo sendo aqueles dois demônios deitados tão próximos de nós.
— Quanto? — perguntei.
Queria saber o valor que aquelas duas mortes o perdoavam em dívidas de carteados.
— Ah! A morte, a morte, a morte… agora entendo o motivo de dizerem que o dia da morte é mais proveitoso que o dia do nascimento. Mortes que me salvam a vida… dois por um… no todo, isso não é mal — ele disse. — Meus débitos chegavam a…
Não terminou de falar, pois entrava na capelinha o tristonho Raul Molina, que nos abraçou, com olhos que lacrimejavam, seu narigão vermelho de sempre e um lenço amarfanhado nas mãos que secava uma fingida lacrimação de choro sentido. Molina sempre foi um cínico incorrigível.
— Deus nos favorece… isso é fato? — ele disse, e foi apressado certificar-se da veracidade daquelas duas mortes.
Estava também por lá o remoçado Avelino Fonseca, que ao me ver levantou as sobrancelhas e pôs os polegares nas alças dos suspensórios — uma mania antiga —, depois me sorriu. Havia muito tempo que não o via. Diziam que o Fonsequinha havia fugido para longe de Sebastian e de Sada, em direção ao interior, Minas ou Bahia, nunca se soube, que estaria morando em um casebre à beira de um rio sujo, falido, vivendo com uma prostituta que lhe dava um filho por ano. Pois nada! Avelino Fonseca estava o mesmo, grande e viçoso como sempre, ao lado da mesma tal prostituta, uma mulher bonita que pendurava argolões de ouro nas orelhas. Filho algum eles tinham, e agora também sem as velhas dívidas. Animado, sorria largo aos conhecidos enquanto cumprimentava cada velho amigo que encontrava na capelinha.
Logo chegou o tristonho Adolphinho Bartók, mas este não me pareceu bem. Pudera, sempre foi um tolo apaixonado por Sada. Muito ruim nas cartas, Adolphinho nunca soube a hora de deixar a mesa de jogo e ir embora antes que os dois demônios o arruinassem. Era jogar e perder. Jogava muito e perdia muito, e nunca se preocupava com as consequências do vício. Agia como se fosse um barão europeu quando ignorava os limites do que perdia, sempre sorrindo quando sem pé nem cabeça pedia revanches que aumentariam ainda mais as suas perdas. Nunca o vi ganhar algum dinheiro que minimizasse os estragos que promovia em suas finanças, embora, como prêmio e trágico consolo, terminasse suas noites na cama de Sada para um estranho amor. Pela manhã, Adolphinho deixava o leito daquele demônio ainda mais arruinado, esquecido de tudo, como se houvesse bem diante dos seus olhos uma névoa espessa capaz de o fazer esquecer seus rotineiros fracassos. O que lhe valia nessas horas era ter uma esposa rica e fidelíssima, essa sim, uma baronesa do café paulista e do leite mineiro, completamente apaixonada, sempre disposta a salvá-lo de suas incontinências com o dinheiro que era apenas dela.
Vendo Eugênia Bartók ao lado de Adolphinho, não tive coragem de olhar mais fundo em seus olhos por saber de sua dor de muitos anos vivendo aquele maldito casamento. Então lhe acenei de longe, mão aberta e um sorriso que falava da minha simpatia pela dor que se transformava em salvação. Eugênia vivia naquele dia uma objetiva sensação de liberdade, como todos ali, pois os demônios Sebastian e Sada estavam finalmente mortos.
Aos poucos eu fui percebendo que a morte daqueles dois deixava um rasto harmonioso de frescor na alma de muita gente. Não havia quem pudesse encontrar na capela que não vivesse alguma forma de alegria, ainda que fingida e envergonhada demais para se revelar. Era uma alegria íntima, silenciosa, embora luminosa para quem a soubesse, como eu sabia, pois só via sorriso no rosto de quem olhasse.
Nunca fui de fazer graça com aqueles que tomaram o rumo do além, mas, olhando os rostos de Sebastian e Sada ali deitados, achava que a natureza avara e pusilânime de ambos não lhes deixava ganhar a elegância sutil dos que morrem em paz, ainda que tratados com penteações caprichadas e muito rouge nas bochechas buscando dar a ambos alguma vida depois da morte. Não chegavam a ter a aparência desastrosa dos que partiram de forma violenta, não, isso não, e embora estivessem naquela quietude horizontal, já era bastante para os arruinar quando não podiam afastar das faces as maldições de suas almas, o que os tornava ainda mais repugnantes.
Sebastian e Sada ainda viviam o momento em que suas almas os abandonaram, recolhendo-se a um lugar insabido. Descansariam, pois sendo a morte a última expressão do que no mundo há em demasia, os pecados, vivendo elas no corpo daqueles dois, tornavam-se repugnantes e eternas pecadoras.
Dei a Sebastian e Sada o mérito de partirem com a dignidade de prestar aos que permaneceram vivos o benevolente favor de esquecer nossas dívidas, e, como prêmio, foram levados de súbito, como se a mão do Senhor lhes tomasse de volta as almas que nunca fizeram por merecer, e assim: zap! e zap! Fim! E lá se foram os dois para o outro lado.
Sada mantinha ainda no rosto o ar petulante que sempre teve, e estar ali, deitada e morta para sempre, não lhe tirava o perpétuo ar trapaceiro, agora cercado de flores que pareciam sobras de outros enterros. Vestia uma roupa antiga com brocados de seda com relevos de linhão prateado, tinha nas mãos alguns anéis de cobre com pedriscos que tingiam de azinhavre os seus dedos, e na cabeça alguém lhe pôs uma peruca que escondia o raleamento dos cabelos. Na boca ainda o mesmo batom vermelho que tirava dela a costumeira palidez da morte que se antecipava.
Sebastian estava como sempre. Tinha um cravo na lapela, cabelos pintados de negro e engomado por uma pastosa brilhantina, na boca a permanente contração dos lábios deixando ver seu canino de ouro. Pareciam bem ajeitados para viver no além quando a vida neles já funcionava como um sonho ruim e a morte como um reconfortante despertar.
Duas coroas magras de flores ornavam seus caixões baratos, feitos de pinho com alças de alumínio. Um véu de tule negro cobrindo o rosto de Sada funcionava bem quando afastava as moscas que rondavam o bojo de suas narinas. Em torno do rosto de Sebastian havia um círculo de cravos que murchavam velozmente falando da pouca reverência que tinham por aquele morto.
Estar ali, levando-os à terra em tão boa hora não era a última gentileza que prestávamos a ambos. Queríamos, todos na capelinha, ter a certeza de que Deus finalmente lhes havia solapado a alma, algo bom e definitivo.
— Mortos! Mortos! — disse Alfredo Pinheirinho, que permanecera até então silencioso ao meu lado.
Pinheirinho sempre teve o porte de um cavalheiro inglês, um lorde antigo de uma época que não viveu. Alguém que inspirava total confiança aos que não o conhecessem. Por onde fosse portava-se como alguém acima de qualquer suspeita ou dúvida, a menor que fosse: bigode aparado rente, olhos azuis invernais, costeletas longas e fartas lhe conferiam um perpétuo ar de interesse por quem o procurasse para uma consulta advocatícia. Tinha sempre sob a axila uma pasta de couro marrom onde havia processos judiciais eternamente arrastados por Varas de Apelações. Diligente como sempre o fora, não queria perder nenhum dos processos sob o seu comando, embora a eles também não desejasse a vitória. O dinheiro que perdia nos jogos de pôquer, buscava tirar dos clientes com apelações que levava sempre aos mais altos tribunais, sempre pedindo mais e mais, mostrando confiança numa vitória que seria iminente e certa quando sabia que vitória alguma poderia haver.
— Mortíssimos! Mortíssimos! — confirmei, sorrindo, como se minhas dívidas não fossem tão volumosas quanto a de todos ali naquele cômodo que deveria ser de lamentações e era de plena felicidade.
Levado pela impaciência em vê-los sob a terra, fiquei rondando como um tonto, observando e compartilhando com tantos uma felicidade comum em local tão impróprio. Ora ouvia o que diziam, ora olhava os mortos, e em ambos os momentos tudo ali me agradava. Havia piadas curtas, lembranças de longas passagens e risadas que eram logo contidas por um falso pudor. Tudo era o triunfo da liberdade ganha com tão pouco, com duas mortes que traziam conforto a jogadores tão cretinos quanto eu.
Minhas idas e vindas aos caixões de ambos buscavam manter-me ciente de que Sebastian e Sada não se levantaria de onde estavam para nos cobrar dívidas impagáveis. Haveria na capelinha uma atenta prontidão até que ambos fossem definitivamente levados às suas covas.
Enfastiado com tanta demora nos procedimentos finais, acabei por me entediar com as conversas e piadas que pouco progrediam, lembranças intermináveis de casos dos quais quase nada lembrava. Deixei a capelinha e fui me deitar de olhos bem fechados sobre um bloco de mármore branquíssimo e limpo onde havia um par de querubins à cabeceira, que mais pareciam dois licenciosos sátiros pisando em nuvens que guardiões do Paraíso. Os dois me olhavam penetrantes em meus olhos e me deixavam saber que eram diabinhos que me piscavam, piscavam e piscavam me avisando que a morte é algo que chega num piscar de olhos que não interrompe a visão.
Deitado a meditar entre tantos mortos, experimentava a estranha leveza da vida, talvez pela primeira vez, livre do pesadelo que se encerrava com Sebastian e Sada descendo às suas sepulturas. Comecei a imaginar que a vida não podia ser algo que eu devesse levar às costas, como um fardo, mas algo que estivesse à minha frente, diante dos meus olhos, sentindo que a obrigação de viver não poderia ser algo a lamentar. Foi este o instante em que comecei a ouvir coisas estranhas:
— Sabia que você não nos deixaria, que acabaria vindo conosco — disse Sebastian, mostrando o mesmo tom entusiasmado que antecedia nossas partidas de pôquer.
Sada chegou logo em seguida com seu jeito de cadelinha de sempre, maliciosa, sorrindo e abanando o rabo.
— Você virá esta noite para os jogos? — ela disse. — Sebastian já está organizando tudo… ele não é perfeito?
Não fazendo caso do que ouvia, levantei-me e fui tomar uma das alças do seu esquife, e não havia alças que bastassem para tantas mãos que desejavam levá-la ao mais fundo do chão. Fiquei de lado, apenas observando. Adolphinho Bartók à frente, mostrava abatimento sincero para desespero da esposa Eugênia, que permanecia fiel ao seu lado, esperançada de que o mundo de inconsequências e pecados do marido fosse também enterrado naquele caixão que ele ajudava a segurar. Devia também, como todos ali, fazer as contas de sua liberdade financeira. Alfredo Pinheirinho parecia querer apressar as coisas quando mostrava uma incomum impaciência. Se lhe viesse uma boa chance, creio que jogaria a falecida direto da capelinha à cova, num único golpe. Dissimulado como sempre, Avelino Fonseca mostrava o melhor de sua cara de manequim de vitrine quando segurava uma das alças do centro do caixão, e de tão alto que era, andava com as costas curvadas para não deixar que caísse sobre si mais peso do que desejava carregar. Indiferente ao que fazia, Raul Molina caminhava impassível querendo que tudo logo terminasse para uma nova rodada de carteado num local que dizia haver descoberto.
Após os procedimentos com Sada, retornamos à capelinha para levar até junto dela o esquife de Sebastian. Corri a uma das alças que acabei por dividir com o Alfredo Pinheirinho, e tão leve estava aquele corpo que me pus a imaginar que enquanto viveu, Sebastian só tinha de pesada a alma, que ao abandonar aquele corpo deixou um vazio. Dei-me conta de que ainda havia os malditos cadernos onde estavam anotadas as nossas dívidas. Por onde eles andariam? Às dívidas de jogo não cabem sucessores, disse o advogado Pinheirinho. Ainda há justiça nesse mundo, pensei.
Mesmo sabendo dessas minúcias advocatícias, senti uma vontade imensa de interromper a caminhada e vasculhar o caixão de Sebastian. Queria ter certeza de que os malditos cadernos estariam lá, sob flores murchas e prontos para serem levados ao esquecimento no fundo da terra. E foi o que fiz, embora isso não tenha causado espanto a ninguém. E lá estava a maldita contabilidade sob tantas margaridas murchas. Um alívio.
Em torno de Sebastian e Sada se juntou um bando de carolas de cemitério dizendo lengalengas e cantando hinos desafinados, como se desejassem animar os mortos para que eles mesmos corressem apressados às tumbas. Não demorou para que Sada me procurasse como já fizera antes. Peremptória e lânguida como sempre, ela me disse:
— Não vem? — e ao dizê-lo me tomou pela mão, levando-me com ela.
Logo que cheguei aqui invadiram meu cômodo enquanto eu permanecia disperso ouvindo o silêncio que me chegava do teto. Não eram muitos, talvez dois ou três. Vasculharam meus pertences e me disseram coisas que não fui capaz de compreender. Procuravam algo de valor que pudessem tirar do meu corpo — um par de sapatos, uma aliança, abotoaduras, um prendedor de gravatas, um relógio, um dente de ouro quando vasculharam a minha boca. Nada encontraram porque nada trouxe comigo, então me deixaram em paz, partindo em direção à bruma espessa da noite.
Agora mesmo estou em meu leito e descanso, preso a este lugar. Como não tenho certeza sobre o que me aconteceu naquele dia no São João Batista, atribuo toda a culpa aos malditos querubins, que por graça ou cacoete piscavam e piscavam em minha direção.
É fato que nunca se aprende a morrer, ainda que se queira e tente. Sempre haverá a surpresa ao ver chegar esse inimigo obscuro e inesperado, e sempre cedo demais. Se foi difícil viver minha vida por todos os anos, como se levasse às costas um pesado fardo, não foi animador saber que com a morte que me chegara tão repentinamente, haveria de carregar comigo um outro pesadelo.
A morte é isso: você pode olhar a vida como um jardim imaginando que suas pernas o levarão a lugares distantes, sem dores ou doenças, à exceção daquela insabida artéria que pulsa nervosa em seu cérebro até que um dia ela se rompa e faça ruir todos os seus sonhos. Se via na morte o conforto final para tudo, descobri que com a morte nada termina, nem mesmo a vida.
Tenho comigo a lembrança de que houve uma época em que quis propor ao governo fazer um censo capaz de catalogar todos os tolos do país. Imaginava colher deles o nome e o sobrenome, indispensável o endereço completo. Tudo para que não se perdesse tempo em procurar uma casa onde se pudesse entregar um corpo arruinado pela bebida, cobrar alguma dívida de jogo ou ouvir a negativa de uma paternidade indesejada. Foi quando me falaram dos impostos, coisa que nunca soube entender com precisão. Sabe quanto nos custaria um censo?, me disseram. Para tudo há um imposto a pagar’. Então eu disse que não, que esquecessem o tal censo. Impostos extras só fariam aumentar essa horda de tolos que anda por aí. Melhor seria que os tolos continuassem bem embaralhados, alguns perpetuamente anônimos.
Sebastian e Sada sabiam dos tolos, conheciam todos, com dados perfeitos e atualizados. E lá sempre estariam os meus, detalhe por detalhe. Meu nome, rua e número, cidade e código postal, identidade e caderneta de vacinação. Se lhes devia sem pagar por mais de uma semana, batiam na minha porta, espreitavam-me nas ruas. Se devedor contumaz, me quebrariam um braço com seus truculentos capangas. Então lhes dava o que tinha e o que conseguia com agiotas para continuar inteiro.
Imaginava que encabeçaria qualquer lista de tolos que nosso governo viesse a preparar. O número um, o primeiro de uma imensa lista. Assim, Sebastian e Sada não me perderiam de vista, lhes poupando trabalho nas épocas baixas de perpétuas desculpas por não lhes ter como pagar.
Não me desconforta o que agora me ocorre — deste lado não me batem na porta para cobrar impostos —, dado que sempre soube do destino de tolos como eu. Embora saiba que reconhecer a merecida desgraça não conforte o desgraçado nem amenize as suas dívidas.
Àqueles que tiveram o vício das bebidas e das drogas, este lugar é um paraíso, pois nunca os abate o álcool ou os alucinógenos, por mais que os usem. Ficam todos pelos cantos, olhos pequenos, pensando, pensando, embora não imagine o quê, pois se filosofar significa aprender a morrer, de que adiantaria filosofar àqueles que já estão mortos? Talvez lhes reste tardiamente aprender o que significaria viver, o que me parece outra tolice.
Os viciados nos baralhos sabem que as cartas podem rolar por noites e dias, dado que nunca nos incomoda o sono e o desconforto do corpo, e isso não nos deixa saber se estamos no Céu ou no Inferno. Nada me diz o que seja este lugar onde há goteiras por toda a parte, que encharcam tudo, que tem o cheiro azedo que vem das paredes, os bichos que passeiam por todo o lado como se gente viva fossem e pagassem impostos. O piso de tábuas range onde permanece seco e faz emergir um bolor negro onde a umidade é extrema, as divisórias que nos separam são de madeira barata e se deterioram com a água que corre do alto até aqui, e lentamente apodrece tudo, deixando no ar abafado um cheiro insuportável. Os ratos são abundantes, as aranhas, as lacraias. Já vi escorpiões que eram tais como lagartos de tão grandes que eram. Alguns encontrei passeando nas sombras com seus ferrões em pé, procurando, sempre procurando.
Este lugar parece uma pensão de infinitos cômodos tomada por anos de abusos e desleixo, e julgo que o local, se um dia teve alguma glória, foi há muitos anos, quando o sistema de calefação, as pias, os ralos e os encanamentos possuíam a dignidade do funcionamento, o que já não acontece. Um mundo estacionado como uma memória ruim que me chegou para ficar.
Agora mesmo estou em meu leito, com as mãos cruzadas sobre o peito e descanso, é o que me resta. Por mais que busque na lembrança uma explicação para o que me acontece, não consigo saber o motivo de ter vindo parar aqui quando sei que o que há sobre nós é apenas um teto que nos abriga da impiedade do mundo que ficou lá fora, o outro mundo, aquele de onde todos viemos. Olhar a noite não nos deixa ver um céu para onde se possa ir. Há apenas a escuridão. Talvez um dia nos permitam saber que o limite da bondade daquele que nos mantém aqui seja não nos deixar saber que não existe esse Céu luminoso para onde se possa escapar; que nunca haverá. O Céu e a terra não são bondosos. Para eles, todos os seres são como o cão de palha que queima, e queima em seu próprio sacrifício.
Tudo que há neste lugar e além são vias que se estreitam e se alargam, um emaranhado delas, sem princípio ou fim. caminhos pelos quais se espalham todas as terras onde alguns dão o nome de Inferno e outros de Céu. Caminhos em direção a eles, caminhos que trazem deles. Este lugar é o centro mais exato das vias que levam para longe e trazem de volta, tudo são circularidades intermináveis.
Estou deitado em meu leito e observo a escuridão. O que ouço é o silêncio, o momento em que tudo se modifica e se move em perpétua permanência. Ao investigar as infinitas passagens que nos envolvem nesse movimento, pude saber daqueles que me fazem companhia, todos iguais a mim, acima, ao meu lado, por toda a parte. Acredito que viva o desconforto de um cerco.
Quando deles quis me distanciar, vaguei perdido por intermináveis corredores até encontrar a porta do meu próprio quarto, meu nome escrito nela, a data de minha chegada, e todas as vezes que daqui me distanciei, retornei a ele com facilidade, sempre tão perto de mim. Acabei por capitular. Entrei, deitei-me em meu leito e aguardei que a mecânica deste lugar viesse a se quebrar me libertando em qualquer outra direção — mas isto nunca aconteceu.
Compreendi que fui, durante toda a vida apenas uma linha de caligrafia no imenso rol de palermas que imaginei constar no censo de tolos. E, se lá em cima não houve nenhuma apuração, aqui embaixo o fizeram com acerto, pondo meu nome bem no alto dessa lista sem fim: o que um dia chamei de destino, mostrou-se que não é nada além da reunião das tolices que cometi.
Tenho ouvido por aqui que um pouco de vida ainda permanece naqueles que morreram, como uma estranha inércia que faz a vida continuar por um tempo num corpo sem alma. Alguns me falam de dois ou três meses, outros de mais, até de anos. Dizem que a vida se vai esvaindo do corpo até deixá-lo em balbucios desconexos. Estou por aqui há mais de um ano e a vida ainda me continua e parece se perpetuar.
Alguns, os mais pessimistas, falam que aqui se vive como se viveu antes do nascimento, pois a vida não é nada além do que um equivocado hiato entre dois estágios da inexistência. Meu tempo de permanência por aqui ainda não me permitiu chegar a uma boa conclusão sobre isto.
Após ouvir essas coisas, retorno ao meu leito e fico observando a escuridão, esse silêncio feito para enlouquecer. Espero que o tempo passe e acerte todas as coisas enquanto experimento o que invade continuamente o meu quarto. Paredes finas me fazem compartilhar intimidades de gente que nunca conheci. São homens e mulheres que vivem também os seus vícios incorrigíveis. Um dia eles chegam por aqui, cumprem suas rotinas por um tempo e retornam aos caminhos que se estreitam e se alargam por toda a parte. Todos deixam este lugar todos retornam a ele como se aqui nunca tivessem posto os pés. Tudo se move para continuar como sempre esteve.
Existem aqueles que têm passagem livre, que se afastam daqui ou retornam a este lugar, outros se incumbem de fazer chegar até aqui os que se perdem ou demoram a se encontrar, que fingem desconhecer o destino que tomaram para si. Dois deles eu bem conheço, são os maliciosos querubins do São João Batista. Demônios.
Sebastian e Sada a tudo comandam com mãos de ferro. Ele a lhes fornecer as mesas de jogos, as drogas, as prostitutas; e Sada a seduzi-los com seu corpo decrépito e suas canções antigas. Cumprem a rotina dos dias, das noites, dos vícios que nunca terminam. É quando meu cômodo se enche de uma bruma espessa saída de mil cigarros, cachimbos, charutos, que se acendem e se apagam nos carteados que acontecem nos infinitos salões de jogos.
Deitado em meu lugar de descanso, ouço suas tramas entre partidas de carteado, onde, por meio de farsas e truques, arranjam a ruína dos jogadores condenados a permanecerem eternamente neste lugar com suas dívidas impagáveis.
Não são barões de indústrias, financistas ou afortunados herdeiros endinheirados que deixam as mesas esfolados de uma parte de suas almas. Estes, por mais que pequem em suas libertinagens, na torpe melancolia de nada fazer, têm lugar privilegiado em alguma parte de um Céu que não conheço. Sei que por lá também chega a força do poder e do dinheiro, pois há muitos mundos e todos definitivamente iguais. O que há por aqui são velhos punguistas, falsários, enganadores de pouca imaginação, rapinantes, ladrões, viciados, cafetões e prostitutas em fim de curso, todos como eles, Sebastian e Sada, e todos tolamente esperançados, imaginando suplantarem um dia a própria sorte para finalmente vencerem. Buscam o ganho fácil e perdem o que haviam tirado de outros pela força ou pela malícia, e saem daqui para tomar os caminhos que os fazem retornar, noite após noite. Difícil sabê-los vivos ou mortos, pois nenhum deles sabe algo acerca de almas.
Há momentos em que me dou conta de que meu cômodo é um lugar de alumbramentos, de terríveis revelações, onde meu futuro é exato como o meu passado, onde memórias são pesadelos. Houve um dia em que inspecionei o espelho que há junto à minha cama procurando nele a minha imagem, pois dela pouco me lembrava. Minha imagem veio até mim quando a requisitei, mostrou-se vaga, como se quisesse brincar comigo, pondo-se no liso do espelho com notável retardo. Experimentei dominá-la muitas vezes e em todas, arredia, ela não se deixou dominar. Em outro momento percebi que não só a minha imagem demorava a me confrontar como também não tinha o foco natural dos espelhos. Difusa apenas em mim, a imagem do meu corpo era refletida como se entre nós houvesse uma nuvem que desvanecesse tudo. Imaginei me falharem os olhos, mas percebi impossível, pois tudo ao meu redor se mostrava normal e nítido. Meu leito, as paredes, o teto negro, os insetos que passeavam, o próprio espelho que, como um totem parado diante de mim, expunha a imagem que me observava. Havia também aquele jarro tão conhecido meu, com suas flores mortas, afogadas em águas na cor do café. Tudo estava lá, e havia foco.
Inspecionei as bordas do meu espelho. Tocando-o de leve com as mãos o percebi adensado pelo tanto de imagens que sobre ele se acumularam, incontáveis anos ali, tantas e todas. Umas por sobre as outras. Finíssimas, as imagens terminaram por espessar meu espelho. Tentei movê-lo de onde estava, trazendo-o até junto do meu leito e percebi impossível. Meu espelho tinha o peso das infinitas imagens que se agarravam a ele. Delgadas e expressivas como aqueles que algum dia se mostraram à sua frente.
Comecei a desfolhá-las, como se fossem camadas, uma a uma, e as imagens que retirava de sobre ele se puseram a vagar pelo cômodo quando as libertei. Caminhavam pelo chão, corriam, dançavam, saltavam sobre o meu leito, moviam minhas coisas, criavam desordem por todo o lado. Cativas de um sonho silencioso, aquelas imagens experimentavam a liberdade. Algumas fugiam assustadas pela imobilidade de tantos anos, e todas queriam dizer uma palavra, a última que um dia pronunciaram ali, diante do espelho, estacionadas num gesto congelado. Pude vê-las moverem os lábios no gesto final das palavras, depois o espanto de um som que por longo tempo permaneceu morto. Retornos de existências paralisadas na superfície fria do espelho ganharam vida próximas de mim.
Experimentei saber como eram os homens e as mulheres em suas intimidades. Aqueles que um dia, diante daquele espelho experimentaram se conhecer, olhar e não se ver quando se imaginam outros. Horas que antecediam festas, os momentos que antecediam o amor. O amor realizado. Às vezes o gozo, às vezes a mais pura tristeza. Movimentos estacionados e palavras interrompidas, paralisadas para sempre no instante da captura. Homens sós, mulheres sós. Todos ali. Aqueles que um dia estiveram diante do meu espelho, naquele momento todos diante de mim.
Os que choravam e os que mostravam felicidade, os que jubilavam vitórias, os que experimentavam fracassos ou se viam em peles que não eram as suas, que odiavam ou que desejavam para si. Vi crimes e amores, pude experimentar dores e risos de tantos, todos ali, paralisados num último instante. Libertei-as a todas, aquelas imagens. Meu espelho ficou aliviado do peso de tantas imagens, pronto para recomeçar. Experimentei ficar só diante dele, deixando minha imagem ser a primeira, aquela que um dia sucumbiria a outros infinitos instantes.
Olho então para mim e vejo meu terno sujo, a gravata tomada por nódoas, a camisa que um dia foi branca, os cabelos que lentamente se vão, as mãos que mostram os sinais do tempo, a boca e os lábios murchos, as faces ainda rosadas pelo pó na cor do carmim que depositaram sobre as minhas bochechas, o lenço passado sob o queixo um dia escanhoado.
Experimento saber que não tenho controle sobre o que posso ver em meu espelho. O ambiente no qual eu estou refletido não é o do meu cômodo. Em torno da minha imagem tudo muda com frequência irregular. Meu corpo salta em direção a um beco, de um beco a uma praça, de uma praça a uma festa, um cinema, um parque, uma rua. Há por aqui um sistema de mudanças sobre o qual não tenho controle. Eu estou em todos os lugares nos quais me pus a observar a fraqueza das pessoas e me regozijar com isso, sabê-las também fracassadas como sempre soube serem. Saber de intimidades tem dessas coisas, pois sei que por mais que alguém se queira um vencedor, sempre se acaba por revelar as máscaras das fraquezas. Em meu exíguo cômodo eu estou em todos os lugares, e sinto que tenho todas as máscaras.
Um dia fui tomado por um estado de contemplação que se transformou em assombramento, que findou por me fazer experimentar a náusea seguida de uma estranha e intensa agonia que acabou por me trazer a prostração. Estou exausto e sem ânimo, assombrado pelas imagens que retornam ao meu cômodo e se acercam de mim, furiosas por lhes haver revelado em suas intimidades. Elas experimentaram a liberdade e agora querem o cativeiro, e giram ao meu redor como se eu estivesse em todos os lugares e em nenhum deles, dominando-me, fazendo-me tonto, tonto, tonto.
— Você está morto… deixe-nos… — todas gritam bem alto.
Então me chegam aqueles dois querubins e me dizem que o tempo me fará compreender como tudo funciona nesse meu lugar de descanso.
— Os irreparáveis vícios da vida — eles dizem —, devem continuar com a morte.
Depois de ouvi-los, o silêncio. Deito-me em meu leito e fico ouvindo a escuridão.
Em torno de Sebastian e Sada orbita Stric, um sujeito magérrimo, vil e insuportável. Se algo além lhe posso atribuir, é sua boca de lábios finos, úmida e larga, que o remete ao mundo das salamandras, a um mundo estranho de homens onde em um corpo não pode caber uma alma, ainda que pequena. Stric tem passagem livre entre os mundos. Traz alguns até aqui ou os leva embora. Incumbe-se de fazer chegar a este lugar os que se perderam pelo caminho ou se negam a saber de seus destinos. O que não tem de corpo, tem de crueldade. Vive pelos corredores alardeando não ter sossego com as mulheres, dizendo que é desejado por elas. Nunca o vi com uma mulher que não fosse uma prostituta viciada em álcool ou em drogas. Com nojo, quando posso, o espreito e os vejo a todos, sempre cercados por uma turma de jovens licenciosos, que vivem de colher migalhas quando lhes oferecem sexo e drogas.
Deitado em meu lugar de descanso, ouço suas tramas entre carteados, onde, por meio de farsas e truques, eles arranjam a ruína dos jogadores condenados a permanecerem eternamente neste lugar com suas dívidas impagáveis. Pude também saber de suas confusões quando ouço seus passos buscando se livrar daqueles que os desafiam. Após a subjugação de algum coitado, arrastam-no pelos calcanhares e, num impulso coordenado, despejam-no pelos muitos caminhos que levam e trazem a este lugar. Depois o silêncio retorna, que vai se acalorando até retornar à normalidade das vozes entusiasmadas com vitórias e derrotas nos carteados. Na noite seguinte, o desgraçado escorraçado está de volta para tudo recomeçar. São homens sem recuperação.
Stric pouco fala, e ao fazê-lo comigo, quando me encontra pelos corredores, tem sempre um jeito de torcer as coisas em direção a uma observação ladina, sexual. Uma piadinha, uma insinuação, sempre algo libertino e luxurioso. Ele fala e ri ao tempo em que apalpa e aperta o próprio sexo murcho como a pele das múmias, num odioso hábito sobre o qual não tem controle, como se desejasse estar perpetuamente no auge de alguma excitação carnal.
Está sempre disposto a me oferecer mulheres que diz serem suas. Fala delas como se me oferecesse gatos de uma ninhada sem dono. Diz que as tem em suas mãos, todas apaixonadas por ele.
— Louras, morenas, ruivas — ele diz.
Eu apenas abaixo os olhos e aguardo que termine de falar. Sou um passivo envergonhado. Então ele continua:
— Tenho anãs, gigantes, esquálidas e obesas, é só escolher…
É quando observo minhas mãos, as unhas que já não crescem, e aproveito para dar um peteleco nos insetos que passeiam sobre o meu ombro. Permaneço calado e firme no exercício de resistir a ele; a todos que encontro por aqui. Ele não se detém.
— Brancas, negras, asiáticas. Tenho também indianas, malaias, japonesas… — ele continua com sua lista sem fim, enquanto ri.
Ele sabe que eu nunca as aceitaria. Sabe do meu recato e quer me provocar. E se me as oferece como gatos de uma ninhada, não sabe que nunca suportei os felinos. Não o repilo, claro, pois trato a todos neste lugar com a máxima submissão e a plácida reverência que se deve aos criminosos e às autoridades constituídas, todos iguais em suas diferenças.
À noite, nos momentos que antecedem a chegada dos jogadores, Sada veste-se como uma dama antiga, e ignorando o calor extremo e a unidade que há neste lugar, ela põe sobre os ombros um manto de pele morta e puída de algum bicho felpudo, calça botinhas com lantejoulas coloridas e desfila pelos corredores arrastando atrás de si um séquito de pulhas, sempre fumando cigarros com sua piteira feita do osso de algum animal pequeno. Invade todos cômodos chamando um a um para que partilhem com ela e Sebastian, os jogos que logo irão começar.
Resisto. Preciso resistir a tudo neste lugar. Quando ela entra em meu quarto, cruzo os braços sobre o peito e finjo um sono profundo. É certo que finjo, embora saiba que Sada sabe que sou mau fingidor, sabe que meu sono é fingido, então ela ri como se me desprezasse, pois não lhe fica a dúvida de que acabarei por segui-la com os outros em seu séquito. Meu corpo diz que devo resistir e ignorá-la, mas minha vontade me faz também correr às mesas de jogos e jogar por dias e noites seguidas, ouvindo a sua voz que canta músicas antigas.
Minhas dívidas se acumulam, as antigas e as novas. Como poderei pagá-las estando neste lugar? Se essa minha vida, que me continua como por inércia tem algum valor, se em mim ainda houver um pedaço de alma, talvez um dia eu a entregue a eles. Mas não creio que a queiram, pois nem todo demônio sabe o que fazer com as almas que lhes chegam às mãos.
— Você está morto, anime-se, e venha com a gente… — ela diz, e vai embora depois de bater as cinzas do seu cigarro sobre a minha gravata.
Quando ela sai, eu a acompanho com o canto dos olhos até que deixe meu cômodo, e ali, deitado em meu leito, posso ver seus cabelos raleados penteados em direção ao alto como uma torre de arames amarelos sustentada pela firmeza de um banho pegajoso de laquê. Traz sempre na cabeça um diadema de latão com pedriscos e seus vestidos se arrastam pelo chão como faria uma noiva se dirigindo ao altar. Sada é uma mulher a quem se pode odiar sem receio ou restrição.
Quando teve o corpo e a alma consumidos pelo álcool e pelas drogas, juntou-se a Sebastian para juntos explorarem os viciados que lhes caem nas mãos, lá em cima e aqui, gente cuja alma feneceu antes mesmo que o corpo tivesse o seu fim. Decadentes e submissos aos vícios eternizam neste lugar as suas desgraças. Sei como isso funciona, pois tudo é ilusório e a vida um instante que flui em direção a coisa alguma, e nesse fluir o vício e a compulsão desejam enganar o destino, embora não saibam que a vida é uma empreitada que não cobre os seus próprios custos.
O que posso fazer se o vício me tenta, se nesse destino que se repete aqui, sou fraco e vulnerável? Então espero que Sada se vá e consiga resistir ao chamado das cartas, do álcool, das prostitutas que por aqui são ainda mais fáceis de conseguir, sempre tão disponíveis. Corro a passear pelo meu cômodo, tomado e trêmulo pelo chamado daquele demônio. Inspeciono coisas fingindo a mim mesmo que dou importância ao que faço, procurando algo que sei não haver perdido, talvez querendo recordar as lembranças boas que nunca tive. Então observo o que há ao redor do meu leito buscando ver além da obviedade: um cinzeiro onde se acumulam as cinzas tiradas de sobre a minha grava quando sobre ela Sada bate o seu cigarro, também um vaso com flores antigas, talvez crisântemos, ou rosas, ou lírios, ou petúnias; nunca as pude conhecer. Em meu cômodo não poderia haver flores, menos ainda próximas ao meu leito. Quem ingenuamente imaginou que eu as mereceria após a morte? Mas elas estão ali como se buscassem me contrariar, tomadas pela água da cor do café, e por mais que eu queira, não consigo dar a elas um nome porque por elas nunca tive interesse. Do que há ao meu redor só conheço as pedras, que como os mortos, eternizam-se em silêncio como os meus sonhos mais íntimos.
Com a ponta dos dedos toco os insetos que andam por toda a parte, que vêm e vão e ainda passeiam sobre mim quando me aquieto em meu leito. Já os abominei, mas hoje sei que com uma sequência de petelecos posso jogá-los longe de mim. A tudo se acostuma, pois, no fundo, o que se almeja é o alívio de nada ter com o que se preocupar, e com eles já não me preocupo.
Enfastiado por saber de cor essas coisas, vou aos corredores inspecionar outros quartos, quem por aqui habita. Logo ao meu lado está um tal João das Neves, 25 de maio de 1936 — é o que diz em sua porta —, mais adiante alguns Josés, Antônios e Carlos. Os Josés são como as pragas imemoriais, de todas as épocas, parecem surgir de toda a parte em infinitos tempos. Há tantas Anas quanto Franciscas, e apenas as Marias as superam. As datas variam como variam os dias do ano. As Marias são tantas que já não se fazem perceber. Marias Marias Marias. Há ainda as Mary, as Marians, as Maries, as Marikas, as Mireles, as Mirens, as Anas Marias, as Marias Franciscas, as Marias Antônias. Essas, então, são mais. Quando chegam ou partem, não procuro saber, pois me deixaria tonto.
Sigo caminhando, observando os quartos até chegar a uma sala bem decorada onde as luzes das velas me enchem os olhos e animam. Gosto de estar ali e sempre escolho para me sentar a poltrona mais macia que encontro. Então chegam Sada e seu séquito e os jogos começam. Sei de tudo isso, e o que mais me dói é saber também que finjo procurar por um nome ou uma lembrança qualquer e o que quero de verdade é encontrar uma mesa para começar a jogar.
Sebastian aparece logo em seguida, esfrega suas mãos parecendo animado com tanta gente, os mesmos bajuladores de todas as noites. Então ele diz:
— Senhoras e senhores, vamos iniciar nosso encontro com uma canção que Sada nos vai oferecer.
Sada faz uma mesura, afina a garganta com um Bó-bó-bó-bó e caminha em direção ao palco no fundo da sala.
— Sada! — diz Sebastian quando ela sobe ao palco, e todos a aplaudem com entusiasmo.
A música, a mesma, as noites sempre iguais. Os resultados dos jogos nunca variam. Apenas minhas dívidas se modificam e continuam a crescer. Os cadernos com as nossas dívidas também são os mesmos, que por leviana imprudência, deixei que ficassem sob as flores murchas que enfeitavam o caixão de Sebastian. Não se escapa de um destino!, ele me diz. Sebastian trouxe com ele todos os seus cadernos com nossas pendências perfeitamente anotadas, e aqui ele soma aos nossos antigos débitos o que passamos a dever sob tanta terra.
Anda por aqui um casal de romenos. São Lucian e Anca, velhos feios, magros e ossudos que parecem me dedicar alguma especial simpatia. Lucian consegue ser apenas um sujeito infame e desqualificado. Tem as feições de um mordomo displicente e os modos de um serviçal sujo e negligente. Seu rosto fino e encovado faz parecer que os ossos da face sugam sua pele em busca de proteção, seus olhos caídos deixam ver o vermelho pálido sob as pálpebras remelentas e os dentes, bem, seus dentes me causam nojo. São como os de um babuíno.
Lucian e Anca são os zeladores deste lugar, e dizem isso com orgulho quando apontam para o aspecto deplorável de tudo. Arrastando chinelos por onde passam, Lucian não move uma palha para melhorar as condições insalubres de tudo que há por aqui. Vive zanzando pelos corredores como se procurasse a saída de um infinito labirinto — e já se disse que o pior labirinto é uma linha reta.
Anca é diferente, é apenas indolente, sem feição de coisa alguma, senão a da indiferença diante de tudo que não seja o seu infame jogo de paciência, sempre em andamento numa das mesas do salão de jogos. Quando ela não está por perto, corro até lá, dou uma espiada no que faz e posso ver aquela fileira de cartas ensebadas à espera de um movimento. Por algum vergonhoso hábito atávico, Anca diverte-se passeando pelos corredores cantando ou ouvindo músicas folclóricas da Romênia. Irritantes, intermináveis, ladainhas capazes apenas de agradar aos surdos. Por hábito e desgosto, passei também a odiar as músicas folclóricas da Romênia.
Às vezes sou abordado por Anca, que insiste em ter comigo uma conversinha estranha, feita de meias palavras, gestos lascivos, sonoridades confusas, sussurros guturais, coisas assim, das quais não faço caso, mas percebo a sua aura licenciosa chegando até mim. Como perdi o dom das escolhas quando cheguei a este lugar, limito-me a tudo ouvir, então ouço, ouço e ouço. O que posso fazer?
Espreitando os passos de Lucian, descobri que ele tem seu vício focado nos baralhos. Passei a me colocar por trás de um móvel, de uma porta, a observá-lo. Não consegui entender uma só palavra do que saía de sua boca. Sua voz rouca, gutural e pronunciada em solavancos, sempre diz frases a Sebastian e Sada que me parecem sem sentido. Tudo que sai de sua boca é também um Bó-bó-bó-bó que repete sem parar. Comecei a suspeitar que Lucian deixa todas as noites nas mesas de jogos um pedaço de sua alma.
Há dias em que Lucian bate na minha porta, entra sem me olhar, mãos nos bolsos, e se senta a um canto. Não liga aos insetos que passeiam em seu corpo, deixando que cumpram seus desejos de o consumirem lentamente. Então começa a dizer Bó-bó-bó-bó, e continua assim por um longo tempo, a mesma ladainha, até que Anca, livrando-se de suas cartas por alguns momentos, o venha resgatar. Ela o toma pelo braço e saem os dois arrastando chinelos pelo piso gasto ao som das frases intermináveis de Lucian, com seu Bó-bó-bó-bó, que se soma às músicas folclóricas que Anca gosta de cantarolar.
Anca tem o hábito de passear pelos corredores vestida apenas de camisolas, e só veste outras roupas quando as coisas se animam nos salões de jogos, momento em que ela põe sobre o corpo um roupão de banho e troca a cor dos chinelos. Lucian está sempre o mesmo, com seu pijama cor de terra cujos fundilhos lhe chegam aos joelhos. Quando estão assim, vestido em galas, sei que irão para as mesas de carteados deixar nas mãos de Sebastian e Sada algumas moedas de almas.
Diante de tanta estranheza, passei a ficar em meu leito, braços cruzados sobre o peito, olhos fechados observando o negro nascido sob as pálpebras. É quando posso imaginar que caminho por um longo corredor estreito e posso ver uma luz diáfana amarela no final, que se vai apagando aos poucos enquanto as paredes me abraçam e me protegem. Nesse ponto sou tomado por um desejo admirável de viver outras vidas, vidas melhores do que a que tenho aqui ou tive lá em cima. Sei que essa é uma forma de escape, mas como não querer escapar daqui? É o que sempre me digo.
Tenho como refúgio as minhas lembranças e pouco deixo meu lugar de descanso; minha reclusão parece amenizar tantos inconvenientes. Mas tudo ao meu redor parecia estar mudando, eu podia perceber, e foi assim que um dia sonhei que caminhava à noite por esse enorme labirinto de corredores e me vi entrando em um cômodo que não era o meu. Forcei uma tramela na forma de uma borboleta e ela cedeu após flexionar por três vezes suas asas azuis, permitindo que eu entrasse. Lutando contra a pouca luz do ambiente, percebi que por sobre uma cama de dossel, circundada por gazes diáfanas, havia um casal que copulava, intensos ou loucos, não pude saber. Seus corpos haviam perdido quase toda a carne que os deveria cobrir, suas vozes eram roucas e não paravam de dizer coisas um ao outro. Eram sussurros que não me deixavam saber se lhes tomava o prazer ou recitavam diabólicas orações a um culto estranho e infernal.
Coloquei-me por trás de um móvel e fiquei a olhá-los de olhos bem abertos, mas logo fui descoberto. Aquela dupla esquálida parou o que fazia e instantaneamente luzes fortíssimas se acenderam, fazendo com que as duas caveiras fossem tomadas de uma fúria que fez brotar do chão um visgo pegajoso de cheiro insuportável. Das paredes começou a escorrer uma lama grossa e fétida, tornando o ar insuportável, do teto caíram os corpos daqueles que circulavam pelos corredores ou participavam das mesas de pôquer de Sebastian e Sada. A seguir caiu uma chuva de gotas de fel, enquanto cartas de baralho enlameadas voaram pelo cômodo como se ali circulassem ventos furiosos. Em poucos segundos a lama que crescia tomou conta do ambiente, formando à minha volta uma pocilga insuperável. Fugi desesperado, patinhando apressado, deixando para trás um rasto nodoso que me grudava ao chão, dificultando a minha locomoção. Corri pelos corredores que se afunilavam à minha frente. Meu desejo de acolhimento me traía, uma vez que as paredes se apertavam querendo me esmagar. Eu fugia sentindo que não haveria chance alguma de escapar. Meus movimentos se tornaram lentos e pesados, me obrigando a exercer uma força imensa para vencer cada uma das passadas que dava. Ao olhar para trás pude ver que esqueletos ainda me perseguiam, e tinha nas faces a expressão do ódio que serpenteia o Inferno. Faziam-lhes companhia naquela insana perseguição o odioso Sebastian e o esquálido Stric, que trazia nas mãos um par de navalhas que cortavam o ar como se quisessem dividi-lo em dois.
Após sonhar por três vezes este mesmo sonho em noites seguidas, um mundo de agonias me tomou, pois sempre dou por mim quando estou sobre uma cama de dossel que não é minha e, para meu desespero, tenho sobre o peito um par de mulheres ossudas como caveiras, que me acariciam o rosto a me dizerem coisas que nunca fui capaz de compreender. São Anca e Sada, como múmias, enroladas em trapos imundos, tomadas por fúrias que não terminam, possuídas por um louco desejo de sexo bestial que não sou capaz de lhes dar. Sou a sua presa passiva e fácil. Ouço a voz de Sebastian e os grunhidos de Lucian, também a me dizerem coisas que não compreendo. Stric, com sua boca larga de salamandra, grita me dizendo que o problema do bom amante é não ter sossego com as mulheres. Todos rondam o meu lugar de descanso em um carrossel de agonias embalado por um coro de vozes puxado pelos jovens licenciosos que os acompanham. E todos repetem vez após vez que devo me entregar aos prazeres dos carteados, do álcool e das prostitutas.
Aniquila-me saber que neste cômodo úmido e lúgubre, invadido por brumas e velhas imagens que nunca param de rondar o meu espelho, estou deitado e imóvel sobre uma cama que não é minha. Meu sonho, esse meu único sonho, se lança para dentro de si mesmo em circularidades eternas, imagens que circulam sem parar entorno de mim. Então eu rondo dias e noites pelos corredores deste infinito labirinto esbarrando em fracassados, velhas prostitutas e jogadores miseráveis como eu. Todos fantasmas que esfriam meu corpo pouco a pouco. Ao fim, Anca e Sada, todas as noites se recolhem ao meu lado, deitam a cabeça sobre o meu peito e me dizem coisas que nunca consegui entender.
Quando em meu leito ninguém aparece para perturbar o meu descanso, ponho as mãos sobre o peito, olhos fechados, e mantenho suspensa a respiração, o que já me é de hábito. Às vezes tenho que dar um peteleco em um ou outro inseto que tenta me invadir as narinas.
Há dias chegou por aqui o amigo Adolphinho Bartók. Estava só, pois ficara lá por cima a esposa fiel, a Eugênia Bartók. Disse-me que na ausência de Sada, entregou-se a muitas amantes e outras mesas de carteado, todas novas, com seus Sebastians e suas Sadas. Pois isto foi o tanto que faltava para que a esposa lhe prescrevesse, nos dias em que aparecia em casa para o jantar, generosas doses de arsênico numa xícara de café com leite.
— Que ironia — disse a ele —, justo no café com leite?
Adolphinho agora anda por aqui, um tanto azulado, mas ainda bem e falante.
— Toda mulher é um animal cruel, que sob uma pelagem bonita esconde o doce perfume das vinganças — ele me disse assim que o encontrei. É um filósofo. — Toda paixão é um sinal de fraqueza… — ele insistiu.
Por cortesia, não discordei. Talvez Adolphinho precisasse se acostumar com tudo o que há por aqui. Aguardamos juntos, os três, que chegue por aqui o Raul Molina, pois o Pinheirinho chegou um pouco antes do Adolphinho, pego finalmente pela úlcera que comia em silêncio o seu estômago.
Chegando mais um, completamos uma boa mesa para os carteados.
Com atraso, li o seu conto, caro Ângelo. É esplêndido e, perdoe o trocadilho, profundo, subterrâneo.
A primeira parte é ágil e sarcástica, narrada de uma maneira que é admirável o cinismo dos personagens e a felicidade que, surpreendentemente, embala quem lê. Já a segunda parte, bem maior do que a primeira, é densa e mórbida, irônica de uma forma incômoda que faz sentir pena do protagonista, aprisionado a este tentador e macabro purgatório. Foi um pouco cansativo, confesso, senti que a repetição não prejudicou o texto por ser terrivelmente adequada, condizente com o cenário em que se passava a história. Aliás, além das sacadas textuais que o Anderson destacou e que me embasbacaram durante a leitura, a própria ideia de além-vida que se vê aqui é bem colocada e tormentosa, uma confirmação constante da forma como os vícios em vida perseguem os fantasmas em suas mortes. Fantasmas para fantasmas.
Excelente! Terminei a leitura precisando tomar fôlego.
Olá, Pedro,
Novamente, obrigado pela leitura. Fico feliz que tenha gostado.
Confesso que, após haver postado esse texto, fiquei imaginando que facilmente seria flagrado como sendo o autor de A Máquina (o Anderson, que havia lido esse texto anteriormente, sacou na hora a minha autoria de A Máquina).
Ambos os textos são, até certo ponto, colaterais, dado que abordam, por aproximação, o mesmo tema: a morte, as suas causalidades antecedentes e consequências (supostas).
Concordo que seja um tema que possa gerar algum cansaço, digamos, espiritual – sei que não foi essa a palavra que você usou. E justo por não ser algo com o qual se lide rotineiramente.
Para fazer justiça a quem a merece, gostaria de dizer que comecei a escrever esse texto (O que há sobre nós) após ler um pequeno “conto” de Dostoiévski. Nessa escrita, levei alguns anos. Não há, por óbvio, qualquer “colagem” com o texto do mestre russo, mas um cheiro distante de uma ideia. Trata-se de Bobók. Um conto maravilhoso que passeia pelo submundo dos mortos.
Grande abraço, Pedro, e novamente obrigado pela leitura e comentário.
Anderson, muito obrigado pela leitura atenta. Obrigado também pelas correções. Vou levá-las ao texto imediatamente.
Como você disse, o título tem um duplo sentido (não sei se foi esse o seu ponto):
O ‘Sobre” aglutina dois sentidos: acima e acerca.
Acima porque estão todos mortos, sob a terra, e ele, o personagem, fala sobre o mundo que deixou (também sobre o mundo em que vive);
Acerca porque fala do que somos. Muitas vezes hipócritas, com nossos vícios costumeiros, algo humano, como é o caso do personagem principal do texto.
Valeu muito pelo comentário, Anderson.
Grande abraço pra você.
Quanto esforço! Quanto capricho! É possível notar a mão paciente do artista que o Angelo é em cada linha!
O enredo possui muito de realismo mágico, em que o absurdo aparece como metáfora para um real que, por vezes, se afigura mais absurdo que o primeiro absurdo mencionado.
O texto está recheado de sacadas geniais:
– “talvez a morte que eles acolhem é que não me caísse bem”;
– “para onde vamos segue também conosco a morte”;
– “a morte nada mais é do que uma mudança na decoração das casas, e que essa morte, em si, é o único objetivo da vida”;
– “meu latim era apenas de soar bem aos ouvidos”;
– “Dei a ele um sorriso sem mostrar os dentes para não ofender além do necessário aqueles que jaziam frescos em seus caixões”;
– “Estar ali, levando-os à terra em tão boa hora não era a última gentileza que prestávamos a ambos. Queríamos, todos na capelinha, ter a certeza de que Deus finalmente lhes havia solapado a alma, algo bom e definitivo.”;
– “Diligente como sempre o fora, não queria perder nenhum dos processos sob o seu comando, embora a eles também não desejasse a vitória.”;
– “nunca se aprende a morrer, ainda que se queira e tente. Sempre haverá a surpresa ao ver chegar esse inimigo obscuro e inesperado, e sempre cedo demais”;
– “com a morte nada termina, nem mesmo a vida”;
– “se filosofar significa aprender a morrer, de que adiantaria filosofar àqueles que já estão mortos?”;
– “Talvez um dia nos permitam saber que o limite da bondade daquele que nos mantém aqui seja não nos deixar saber que não existe esse Céu luminoso para onde se possa escapar; que nunca haverá.”;
– “o que um dia chamei de destino, mostrou-se que não é nada além da reunião das tolices que cometi.”;
– “a vida não é nada além do que um equivocado hiato entre dois estágios da inexistência”;
– “máxima submissão e a plácida reverência que se deve aos criminosos e às autoridades constituídas, todos iguais em suas diferenças.”;
– “Toda mulher é um animal cruel, que sob uma pelagem bonita esconde o doce perfume das vinganças […] Toda paixão é um sinal de fraqueza”.
Nesses trechos, há também muito senso de humor! Um humor refinado, elegante, mesmo os personagens, enquanto tipos humanos, se revelando chulos em alguns momentos. Aliás, incrível a habilidade do Angelo (notei presente em outros textos de sua lavra) de extrair profundidade e complexidade de tipos humanos que, a um primeiro e superficial julgamento, soam grosseiros.
O que há após a morte? Talvez um intervalo em que é preciso se redescobrir? É nesse hiato em que está preso o protagonista, num permanente esforço para aceitar e compreender sua nova “realidade”.
Angelo, vou betar o seu conto, porque, de tão bom, ele merece essa generosidade! Segue:
– “não costumava ir cemitérios”: não faltou a preposição “a”?;
– “O dinheiro que perdia nos jogos de pôquer, buscava tirar”: o sujeito da expressão “buscava tirar” é “O dinheiro que perdia nos jogos de pôquer”. Portanto, a vírgula não seria incabível?;
– “Sebastian e Sada não se levantaria”: o verbo não deveria estar no plural?;
– “Adolphinho Bartók à frente, mostrava”: de novo o sujeito parece separado por vírgula. Há duas soluções: remover a vírgula ou inserir mais uma vírgula entre “Bartók” e “à frente”;
– “Corri a uma das alças que acabei por dividir com o Alfredo Pinheirinho”: aqui, “que acabei por dividir com o Alfredo Pinheirinho” possui natureza explicativa e, portanto, deveria ser antecedido por vírgula;
– “caminhos pelos quais se espalham todas as terras”: erro de digitação – frase iniciada com inicial minúscula;
– “Compreendi que fui, durante toda a vida apenas uma”: faltou uma segunda vírgula, logo após “durante toda a vida;
– “me pus a observar a fraqueza das pessoas e me regozijar”: faltou um “a” entre “e” e “me”;
– “ignorando o calor extremo e a unidade que há neste lugar”: erro de digitação na palavra “unidade” (“n” versus “m”);
– “flui em direção a coisa alguma”: deveria haver crase?;
– “as cinzas tiradas de sobre a minha grava”: erro de digitação na palavra “grava” (i.e., “gravata”);
– “só conheço as pedras, que como os mortos, eternizam-se”: aqui, o mau posicionamento da vírgula tornou os mortos “digestíveis”; mova a primeira vírgula para depois do “que”;
– “cheiro insuportável. Das paredes começou a escorrer uma lama grossa e fétida, tornando o ar insuportável”: troque o segundo ar por “impossível de respirar” ou coisa que o valha;
– “me grudava ao chão, dificultando a minha locomoção. Corri pelos corredores que se afunilavam à minha frente. Meu desejo de acolhimento me traía”: releia para se certificar de que não há um uso abusivo dos pronomes em primeira pessoa. Quais seriam dispensáveis?;
– “em circularidades eternas, imagens que circulam”: cacofonia entre “circularidades” e “circulam”.
Esqueci de mencionar: possuo profundo incômodo com textos narrados em primeira pessoa por autores defuntos, tanto que, no último desafio, meu texto explorou, em tom jocoso, justamente essa temática. No entanto, faço concessões para autores que se revelam muito geniais ou competentes, como Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, João Cândido em “O coronel e o lobisomem” e, agora, Angelo Rodrigues em “O que há sobre nós” (putz, apenas agora me atentei para a sagacidade do título!; li o conto sem me atentar para o título! ou o esqueci enquanto lia! que foda!).
Enquanto lia, marquei com uma cor o que queria destacar como extremamente meritoso e, com outra cor, o que gostaria de betar. Agora, percebi aqui que me confundi com as cores. Com isso, eis que surgem essas outras sacadas geniais presentes no conto:
– “a morte é algo que chega num piscar de olhos que não interrompe a visão”;
– “Este lugar é o centro mais exato das vias que levam para longe e trazem de volta, tudo são circularidades intermináveis”;
– “o pior labirinto é a linha reta”: este é de Borges, mas, como tudo é FanFic da arte rupestre, vai que o Angelo chegou, por outros caminhos, ao mesmo destino?!