Se corpo é destino, voz é maldição, e Ignácio Vilarinho possuía as duas coisas: era encovado e terroso, alto como uma vara de amoreira, e tinha uma voz de caverna, opaca e úmida, levando-o a se aproximar demais das pessoas para lhes falar e ser ouvido por elas.
Conheci Ignácio quando eu era um pouco mais que um garoto. Crescemos próximos, eu à frente dele uns cinco anos. Quando se tornou adulto, ficaram para trás os amigos de infância, todos enfastiados com o hábito que tinha Ignácio de dobrar o corpo para fazer suas intermináveis confidências com sua voz de algodão.
Aos poucos, Ignácio foi se tornando para todos um fardo insuportável. A fala, o hálito, a proximidade excessiva que só acentuava o cheiro do suor que deixava exalar do corpo. Todos diante de Ignácio ficavam miúdos, apequenados, tão grande que ele era. Tudo o que dizia, até a coisa mais irrelevante, logo se transformava em malquerida confidência, segredo irrelevante, e logo após dizer alguma coisa, Ignácio sorria antecipando uma graça que nunca havia. Tudo nele era o mais puro tédio.
Todos que o conheciam começaram a fugir dele querendo evitá-lo ao custo que precisassem pagar. De uma conversa rápida, ainda que pouco tolerável, pulou-se à esquiva sorrateira, e, em seguida, às escapadas acintosas para não o ter por perto. Tudo se transformou em algo doloroso demais, de ouvir ou dizer, e até mesmo um bom-dia, uma boa-tarde, um boa-noite já não soavam como de costume. Os conhecidos atravessavam a rua, rápidos, fugidios, quando Ignácio começou a ser açoitado todos os dias por uma implacável repulsa silenciosa.
Boas desculpas não faltavam para que dele se afastassem, e se faltasse alguma, logo davam providência de arranjar: um gato que se queria longe e dele se fugia; uma sombra que procuravam quando debaixo de um sol extremado, lutando contra os suores; um amigo imprescindível que surgia logo ali, adiante, e partiam a cumprimentá-lo. Todos salvos pela distância, longe de Ignácio; protegidos de algo que não atinavam a causa, mas sabiam que causa haveria a justificar as urgências de um penoso abandono. O povo, ao fim e ao cabo, sabe bem o que faz.
Ignácio certamente fingia não se dar conta do que lhe ocorria, eu bem sabia, pois ele não queria esquecimento ou sossego; queria ser visto, reconhecido, querido por todos. Era assim a cabeça de Ignácio, e dissimulado como era, parecia ter uma alma que lhe confidenciava um desejo permanente da companhia, vejam só! Então ele corria a procurar exatamente aqueles que não queriam ser achados. Sorria, se expunha, agradava, e chegava mesmo a perseguir fingindo docilidade àqueles que dizia mais gostar. Mas de Ignácio, com toda a razão, a distância era tudo o que importava. Logo digo o porquê.
Muitas vezes fugi de Ignácio, e como tantos, não sabia exatamente o motivo. Sentia que o devia evitar e o evitava. E tanto fiz assim que nem mais buscava um motivo que me desse conforto, embora, desde cedo soubesse que o mal de Ignácio acabaria por se revelar, eu sabia, pois está no Livro Sagrado que os que dissimulam glórias acabarão por receber condenações ainda mais severas! Eu começava finalmente a entender Ignácio como deveria.
No decorrer de uma solidão socada, diária, Ignácio Vilarinho foi adquirindo hábitos cada vez mais estranhos, soturnos. O uso do chapéu de feltro castanho que mantinha enfiado na cabeça escondendo um cabelo desgrenhado, o paletó negro que nunca tirava de sobre o corpo que porejava rios de água e sal, o olhar embaciado que não transmitia ou inspirava confiança, as botinas arruinadas pelo uso, tomadas pelo pó vermelho das ruas, o cachorro sujo que teimava em o acompanhar por onde quer que fosse. Quando sorria, e já pouco nos sorria, mostrava os dentes de morsa que bem convinham aos olhos amarelos de um bode. Por tudo, um estranho em meio a tantos conhecidos que o evitavam.
Alto como era, Ignácio se deixava ver de longe, e eu o via de longe, e sempre me escondia, dando cada vez menos ouvidos ao coração. Aos poucos Ignácio foi se tornando um estranho, alguém que pouco se tolerava quando não era possível evitar. Ora não gostavam dos seus dentes de morsa, ora dos olhos de um bode que a tudo secava, ora do insuportável cheiro de abutre, ora do tamanho de suas pernas, de seus braços, de sua voz, do cão que o acompanhava e das sarnas que se espalhavam por toda a parte. Era tudo, quando tudo se tornava o melhor dos motivos pra querê-lo distante, e a isso não se exigia nenhuma explicação.
Pouco demorou para que eu visse em Ignácio um poder maléfico e sobrenatural, e sei que isso o povo sempre descobre quando há o que descobrir, e sempre há o que descobrir quando o mal é evidente: Ignácio conhecia uma reza que falada ao ouvido das mulheres da cidade era capaz de as seduzir de imediato, uma reza definitiva, insidiosa. Não foi difícil logo se confirmar que Ignácio andava pela cidade a perseguir mulheres, todas, acossando-as. Aproximando-se delas de modo sorrateiro, ele declamava a sua reza para que subitamente elas por ele se apaixonassem. E todas se apaixonavam, sem exceção. Era uma reza forte e poderosa, de resultado imediato, algo certamente maligno. Uma reza curta, que falada antes de a mulher fugir, bem funcionasse, qualquer que fosse a mulher, pudica ou de sabida pouca virtude.
Ignácio era um maligno, enfim, descoberto por mim, por todos, pois foi assim que lhes contei. E eu sabia que Deus não entregaria o mundo nas mãos dos malignos e cobriria os olhos dos juízes com uma venda de trevas, e se assim não era, de onde viria tanta maldade?, e Ignácio estava ali, com suas rezas, a levar horror àquela gente da minha cidade.
As mulheres passaram a correr de Ignácio Vilarinho como lebres perseguidas por cães. E aquela que não fosse rápida o bastante, após ouvir a reza de Ignácio, cairia aos seus pés como obediente cadelinha. Se ordenadas pelo maldito, seguiriam com ele ao Inferno, alheias à própria sorte, ainda que fosse pura a sua vontade de não o seguir, escravas servis de um amor poderoso e inexplicável.
Ninguém conhecia a reza de Ignácio, o que ela dizia, e em que língua era dita. Se uma língua só conhecida por ele, suave ou desabrida, se franca ou sussurrada, se santa ou de parte com o Demônio. A certeza estava em que, dita por aquela voz de algodão maliciosa, o efeito era imediato.
Chegado aos quarenta anos, Ignácio Vilarinho vivia absolutamente só na casa em que sempre viveu, afastada de tudo, vejam, e bem no centro de um grande vazio de um terreno tomado pelo mato e pela falta de cuidados, para os lados da grande amendoeira centenária depois do monte mais alto. A única coisa da qual Ignácio por lá se ocupava, eram suas grandes figueiras, herdadas do pai, na borda do Rio das Moças. Delas tirava sustento quando vendia seus frutos, que após colhidos eram levados às feiras da cidade.
Havia dias em que eu passava horas a observá-lo, vendo-o à sombra da varandinha de sua casa a esculpir com um canivete amolado, meticuloso, pequenas figas feitas do caule negro de alguns loureiros. Esculturinhas que Ignácio oferecia aos pais das crianças nascidas pela cidade, querendo que ornassem os pulsos das que chegavam, protegendo-as dos maus-olhados. Tudo em oferenda, ele dizia. Seria a transferência da paz benévola de Ignácio às crianças recém-nascidas. Nem a isso o povo suportava: que as figas feitas por Ignácio jamais chegassem às filhas meninas, pois essas os pais protegiam logo bem cedo de suas rezas, das magias daquele demônio grande e terroso que vivia tão próximo a eles.
O tempo e os hábitos simples e falsos de Ignácio consolidaram a ideia de que sua reza era realmente muito forte, tinha o poder do convencimento, e ele, além dos horrores de um lado maldito que tinha, cheirava forte ao odor acre do alho, premonitório, doidejante. Bem sei que se deve ter cautela com quem não tem bálsamo ou maldade, e se o povo não sabia de nenhum bem que chegasse daquele demônio, santo é que Ignácio não poderia ser, e provas haveria por todo o lado, bastava que procurassem. E eu procurava.
Diziam, então, de um a um, que o cheiro insuportável de Ignácio era maligno como era demoníaco o cão que o acompanhava. E ia longe o cheiro que exalavam aqueles dois, dando chance a que as dúvidas terminassem: Ignácio tinha o cheiro do enxofre, tão bem percebido nos muitos demônios que por todo canto do mundo se é capaz de encontrar, e já não havia dúvidas de que seu cão era uma sentinela cega, um insubmisso pastor mercenário a caminhar sinistro ao seu lado pela cidade.
Certo dia eu disse aos homens que me ouviam: ‘Do Céu ficarão de fora os cães e os feiticeiros’. E eram todos, aqueles que me ouviam no pátio da nossa Sagrada Igreja. Foi numa manhã de sábado que lhes disse exatamente assim, com o Livro Sagrado em minhas mãos. E o povo me ouviu, como sempre me ouviu.
As mulheres temiam só de pensar que poderiam se deparar com Ignácio nas esquinas das ruas, nos campos, e serem possuídas por ele, acadeladas, amantes servis do homem que era tal como um talo terroso de gente. E estava tudo lá, bem à vista: Ignácio era incerto na cor, magro como um varapau, olhos de bode, dentes de morsa, soturno; um Filho do Demônio, talvez o próprio Demônio posto ali, na minha cidade, apenas para nos trazer o engano e a traição. Foi então que voltei a lhes falar: ‘Alguns demônios estão sob trevas, em algemas eternas; outros estão livres pra vaguear sobre este mundo’. E eles me ouviram.
Eu lutava sereno contra o lado manso que Ignácio mostrava e, no mais das vezes, quase sucumbia ao que era uma voz leve e bondosa que corria em mim. Notei que era quando o Demônio pregava suas maldades em meus ouvidos; e era a voz de Ignácio que bem no fundo de mim me falava, mas nunca esquecia que a testemunha sincera não engana, e a falsa faz transbordar suas mentiras, e se os mansos herdarão a terra, os simples herdarão a estultícia, e os prudentes se coroarão de conhecimento. Pois era quando eu sabia que Ignácio não me enganaria, não, jamais, e logo tranquei os ouvidos ao Demônio e aceitei que em Ignácio havia de fato um mal muito grande; e tão perto de nós.
Uma noite, um incêndio ao qual deram providência os homens da cidade. Eu estava lá e os acompanhava, orientando seus corações. Destruíram todas as figueiras de Ignácio quando quiseram afastá-lo para que ele fosse rezar suas maldições a outras mulheres, em outros sítios, não as dali, da nossa cidade, que já não suportavam suas crueldades, pois era o horror que a todos habitava: o medo entre mulheres e a desarmonia entre homens. Não ali, mais, de modo algum Ignácio continuaria a reinar. Era o que pensavam; tão óbvio que era pensarem assim, pois sei que um homem bom sempre tem na alma as próprias providências.
Quando naquela noite de fogo me perguntaram pelo cão de Ignácio, disse a eles que o cão retorna ao seu próprio vômito e lhes apontei as labaredas. Pois arderam a carne do cão e as figueiras nas mesmas chamas que a tudo consumiu. E então eu lhes disse: ‘Das narinas daquele cão subirá fumaça; da sua boca sairão brasas vivas de fogo devorador, e depois do fogo virá um sussurro de brisa suave e tranquilo’. E não foi diferente quando as chamas se elevaram bem alto enquanto queimavam tudo.
O povo sabia que nas noites das maiores luas, Ignácio dizia rezas entre as figueiras que tinha no em torno de sua casa, e delas tirava seus poderes de sedução, capazes de transformar as mulheres em fêmeas dissimuladas, possuídas, e eram muitas e não sabidas por ninguém, mulheres ocultas de Ignácio que, se perguntadas, nem mesmo elas saberiam dizer de suas sonâmbulas submissões. Tudo segredos e horrores. Odiavam tão profundamente a Ignácio Vilarinho que concluíram que a ele era bem merecido queimar também sobre o fogo que consumira seu cão. ‘Ao Demônio, o fogo!’, eles gritaram. Foi quando uma voz corrente de bondade voltou a me tomar mais uma vez, e eu lhes disse não. ‘Ao fogo, apenas a sentinela cega, o cão, e as figueiras também, a fonte de tanta desgraça’. E assim foi que os homens só puseram fogo às tantas figueiras de Ignácio, e o fogo a tudo consumiu para sempre.
Sem ter o que fazer, sem as suas figueiras que foram queimadas, Ignácio se asilou no interior de sua casa, que haveria de cheirar eterno à carne queimada do cão e ao esturricado negro dos frutos de suas figueiras. As cinzas da carne, das folhas, dos caules e das raízes, tudo foi revolvido para que nunca mais brotassem ali, próximas aos poderes de Ignácio.
Em sua cabeça permanecia o soturno chapéu de feltro castanho, o paletó negro que nunca tirava, cobrindo o corpo que porejava, os olhos amarelos de bode, os dentes de um animal que só conheciam de ouvir falar. Tudo isso fazia de Ignácio a fonte de um medo que não davam conta de compreender, embora providências não faltassem para afastá-lo. E graças ao fogo que fiz arder, Ignácio tornou-se apenas um meio-demônio, sem os poderes das rezas que bem conhecia, sem as figueiras, sem o cão.
Eu continuava a observá-lo, a vida quieta que Ignácio levava, que olhava pela janela da casa quando queria lembrar das figueiras deixadas pelo pai, agora queimadas. Ele passeava pela borda do Rio das Moças que corria no fundo do quintal, girava à toa pelo terreno, voltava à varandinha e procurava sem nunca encontrar o cão que agora era apenas uma terra negra e fina, varrida todos os dias pelo vento.
Talvez ainda quisesse fazer algumas figas que ofertaria aos pais de crianças recém-nascidas pela cidade, mas não fazia. Era quando eu via o Demônio andando ao derredor da casa, bramando como um leão em fúria, buscando a quem pudesse tragar. E ali estava Ignácio Vilarinho, tão vulnerável a um mundo de coisas malignas.
Eu observava o silêncio de Ignácio, sua mansidão de enganar, vivendo o desespero do não fazer, distante das artes das figas, da venda dos figos na cidade. Do cão que tão bem queimou: ‘Ide, pois, até lá e ateai fogo nele!’, é o que eternamente diz o Livro Sagrado.
Observava aquela falsidade maligna de Ignácio, que olhava suas figueiras mortas, que rezava mais fundo a um demônio que era apenas seu. Pela mão divina e sorte do povo, nunca foi possível a Ignácio rezar tão forte que trouxesse de volta das cinzas a vida naquelas figueiras, nem mesmo dali fez surgir um cão que o acompanhasse. Ignácio apenas olhava pela janela, certamente pensando no porquê de estar sempre tão só. E fingia para mim, que o observava, que não se dava conta de haver um motivo. Um falso.
De Ignácio eu nunca quis me afastar. Sou a sentinela alerta de que minha cidade tanto precisa, pois sei que sempre haverá de correr em mim uma voz suave de bondade, embora tenha comigo o fogo que a tudo pode pôr um fim, bastando que chegue a hora.
É um bom prosador. Falta agora ter uma boa estória para contar.
Caro Britoroque,
Tempo. Tudo o que conta é o tempo. Algo intangível que se vai tornando cada vez mais raro à medida que se envelhece. Não se pode armazenar, não se pode controlar, e nenhuma riqueza o pode comprar: é um vetor único e de única direção. Um bem que vai se tornando cada vez mais precioso ao que é usado. O que conta, enfim, é o tempo.
Por isso, quando me vejo diante de comentários como o seu, penso “Ah, não vou perder meu tempo…”
Mas, sob certas circunstâncias, imagino que seja um erro “não perder tempo”, ou melhor, “não gastar o tempo” que temos.
Muitas vezes me pergunto o porquê de fazer arte, escrever, enfim, de “perder tempo”. Por que um escritor escreve – e nem me coloco como tal, como escritor – quando poderia estar “gastando seu tempo” com algo “muito mais precioso”, talvez de custo equivalente ao alto preço do tempo?
Essa foi a minha primeira reação. Não perderia meu tempo.
Logo me dei conta de que o conto que escrevi fala sobre mal, da maldade gratuita, aquela necessidade que às vezes sentimos de pôr uma gota de fel no doce de alguém. Porquê? Quem pode saber? Eu realmente não sei. Aquele momento em que se observa a felicidade do outro e, assim, sem mais, resolve feri-lo com um gesto, com um sorriso obliquo, ou com uma frase de poucas palavras.
Por isso resolvi “não perder meu tempo”, mas “gastá-lo” para dizer que seu comentário agora é parte do meu conto, dado que o ilustra perfeitamente.
Se meu conto fosse uma pintura, uma gravura, um desenho em um dicionário ilustrado, sob ele haveria um verbete que bem o explicaria: “Falta agora ter uma boa estória para contar”. Perfeito. Isso ilustra o mal, o mal desnecessário, sem qualquer explicação, embora presente, gratuito, aquela gota amarga que quer fazer apodrecer o doce de alguém.
Por isso resolvi “gastar meu tempo” para reafirmar que não escrevi sobre fantasias, mas sobre algo real, tangível, e perpetuamente presente.
Não perdemos nossos tempos, ambos; conto e comentário estão agora definitivamente unidos.
Angelo, seu conto tem uma elaboração literária muito refinada. Imagens fortes, plot extremamente bem construído. Exige um bom leitor para captar as nuances e a sutileza da tessitura. É um texto de um escritor maduro, que sabe manejar as palavras e conduzir a narrativa. Parabéns. Realmente muito bom. Abraços!
Obrigado, Sonia, pelo comentário. Fico feliz que você tenha gostado. É um conto, até certo ponto, bastante amargo, embora não muito distante de um quotidiano que obliteramos, e justo por isso. É como muitos de nós nos construímos em relação ao nosso exterior.
Em segunda camada ele trata de algo bastante subjetivo: poucos se imaginam maus ou se desejam maus, ainda que o sejam. Nesse ponto de inflexão da psiquê, constrói-se uma capa de onde se faz emergir o bem, a dor pelo bem, quando não em proveito próprio e direto, atua-se em benefício de terceiros. É quando a maldade flui sem dificuldades e sem barreiras, pois quase todos se querem humanos do bem. Um paradoxo; e seguimos adiante.
Valeu pela leitura.
Eu diria que esse texto tem o valor de um ensaio sobre o ódio. Aqui se lê sobre um sentimento cego que se retroalimenta, cultivando seu próprio mito em torno do seu alvo. A narração em primeira pessoa cabe perfeitamente ao conto, pois é a perspectiva do protagonista que permite enxergar a construção gradual, pessoal e obsessiva da raiva profunda que fundamenta a sua pregação. É megalomaníaco, pois o narrador, embora não diga, confunde-se com Deus, com uma espécie de tradutor da Palavra e executor dos castigos.
Uma vez, ouvi uma pessoa – que fazia um julgamento e, por seguinte, uma decisão em cima disso – dizer que errar é humano, errar duas vezes é burrice e perdoar é divino. O narrador parece atravessado pela mesma desilusão de grandeza, pois enxerga em sua agressão a justiça e e na moderação de sua punição vê benevolência. Mas a leitura atenta – fácil, pela qualidade do conto – desnuda a verdadeira razão pela qual Ignácio foi “poupado”. O que o narrador teria se sua vítima fosse embora ou deixasse de existir? No ostracismo e na ruína, ao menos Ignácio continuará ali, a comprovar a sua misericórdia e a ser vigiado com cautela, para observar suas possíveis maldades futuras… é perverso e assustador, pois o que o protagonista fez de sua vida foi a cruzada pessoal contra um homem que, antes por besteiras, depois sem razão e, enfim, legitimado por uma causa “superior”, odeia profundamente.
Gostei desse ainda mais que o conto dos lobos. Muito bom!
Seu texto tornou-se parte do conto, dado que foi tão bem compreendido e explanado. Obrigado.
A ideia que persegui foi exatamente essa: o mal praticado sob a visão do bem, da defesa contra algo que, a rigor, não representa perigo, quando o perigo é exatamente a palavra daquele que tem alguma forma de poder sobre outros, que sabe lidar com o medo, com a mentira – ainda que o narrador não minta, porque simplesmente é de sua natureza o que faz.
Ignacio sobreviveu ao fogo exatamente para que aquele que domina o mal continuasse a sua cruzada. Perfeita a sua análise. Sem Ignacio o que seria do nosso narrador?
Quando se quer, tudo conspira contra. Do cão sarnento ao suor nas roupas, aos dentes de morsa, da fala atrapalhada de Ignácio às rezas que proferia (ou não proferia).
É realmente um conto sobre o mal, que, a rigor, nunca é gratuito, certamente nunca para os que sofrem as consequências.
Muito obrigado pela leitura e comentário, Pedro.
Abraços pra você.