Parecia o interior da compaixão de uma ninfa d’água, o brilho madrepérola, amarelo ouro, velho em suas bordas e recém cunhado no âmago, mínimos fios de âmbar, tudo mesclado numa oval brilhante, na boca da concha mas sem o cheiro de mar; apenas um cheiro branco, asséptico, o oceano era de uma água sabor hortelã dentro de minha bocarra. Através das lentes dos óculos salpicados de pasta via o centro da concha, era alva, uma lua cheia pregada na noite sépia de um verão, tão instintiva que fitava minha alma e meus créditos através da dor de minhas pupilas Sua mãe se descuidou porque quis, Luís Antônio, dei tanto dinheiro à ela que já estaria um tetéu, e não ia ter essas reclamações todas Reclamo porque o espelho reclama, Itapuã, meu espanto querido.
Se sentir uma dorzinha talvez não seja manchinha, aí já é cárie mesmo, se sentir, só levantar a mãozinha, tá bom?
Chegando em casa sentaria e num suspiro preparar-me-ia para a casa me engolir. Havia deixado café pronto para mim na garrafa Só você mesmo, hein, Márcia? Só você se enche de café e cigarro depois de vir de uma limpeza no dentista Se foi limpo então é para que se torne sujo novamente, responderia. A barriga; o espelho foi de um salto e ao ricochetear no fundo de meu crânio trouxera-me a barriga. O vapor da água quente, o box grafite, a barriga branca, salpicada com manchinhas como areia molhada da praia ao esfarelar-se sobre tua pele. Quem diria, Márcia, que a bonitinha dos Remédios hoje seria a tia do salpicão? há-há-há!, lembro de Ireninha dizendo ‘tu experimentou o salpicão de Márcia?’
Podemos começar o canal no seu dentinho traseiro, seu molar?
Tu tá com o dente esburacado, Márcia. Dá pra ver de longe, principalmente quando ri mais Nilza depois de ter comido pão! Abri os olhos, a coreana sumiu de minha visão periférica. A luz da madrepérola grudou na retina, a doutora era verde, costas curvadas e verdes, chacoalhando gavetas Mãe! Para!, Luís me segurava e eu o estapeava e abria e fechava as gavetas; o impacto, o ruído violento e a vontade de cada vez mais bater, dilacerar e chorar; que a dor nos percorre de dentro para fora às vezes. Itapuã te bateu? Dor. O braço e os dedos perfurantes, patas de aranha cor de cobre, os olhos de fúria cor de pimenta moça, a baba e o odor de um gás alcóolico vindo de seus xingamentos Eu comi porque tu é uma pedra em meu sapato! Já basta o tapa de 2001, Márcia!, Itapuã já foi visto com Nilzinha desde que Luisinho estudava mais Glorinha, faz é anos! A coreana pegou uma seringa sinistra e de ferro, grossa como os dedos cravados em carne de Itapuã Por favor, me larga eram como a boca de uma armadilha de urso. Olha como tu está gorda, vamos chegar no churrasco e mainha vai falar na frente de todos; Itapuã bebeu e ligou para aquela velha interesseira da mãe dele, disse que vai dar uma geladeira pra ela.
Vou aplicar a anestesia, tudo bem?
a agulha fina perfurou a gengiva, o líquido preencheu meu céu da boca, meu lábio de cima e de baixo, meu queixo; me acariciou e acalentou, cada vez mais terno, dormente, indiferente, cada morrer de um e nascer de outro, coisa de segundo; a dor ali não mais haveria. A doutora começou a cutucar com um delgado palito de aço meu buraco enegrecido que não mais me doía, como mágica. Poderia ali fazer o que bem entendesse, o descanso e o descaso era tanto que minha batalha interminável contra meu nervo exposto se tornara uma batalha contra o sono Do que adianta cutucar o miolo com o palito de dente agora, Márcia? Vai ser sempre assim? Você não percebe, não percebe nada. Não percebeu quando eu percebi que Luisinho era baitola. Odeio quando você chama ele assim, Quer que eu chame de que, Márcia? De Luísa? de repente uma dor aguda, era a rebelião do nervo, era o marido que, se fosse embora, anestesiando a esposa, num decorrer de horas havia de voltar armado de uma facada. Levantei a mão. Mão enrugada, a unhas cruas, cor de frango Sua mãe é tão branca que se cortar o dedo e tu abrir assim, vai ver que é cor de frango.
Quer que aplique mais anestesia, dona Márcia?
decidi dizer não. Queria saber se conseguiria enfrentar Itapuã Pois é, meu filhão, sua mãe branquinha não resistiu ao moreno regueiro de São Luís ela continuou cutucando. Voltou à gaveta, revirando-a mais uma vez. A criatura mascarada (são tantos nessa cidade) retornou com uma lixa barulhenta: Asmodeu dos pacientes fracos do profissional dentista. Mas eu não tinha medo.
Sabe qual é meu medo, Márcia? Ver Luisinho arrebentado na rua, por sua culpa, Márcia Por que você faz xixi sentada mamãe e eu em pé? Queria fazer xixi sentado, é quentinho Era meu filho, um anão de cabelo tigela, os olhinhos com bolsinhas, e abaixo do meu nariz: a barriga, cobria tudo, até minha vulva que sentia tanto a falta de Itapuã; depois, claro, das estria Esburacada essa sua coxa, tu num era assim depois que a barriga nunca mais deixou de gerar, Itapuã quis fugir ali.
Está sentindo algo dona Márcia?
De novo: não. Sentia na cabeça, na goela ao lembrar da armadilha de urso.
De volta à gaveta; ressurgiu com um pedaço ruidoso de bexiga verde, o cheiro de cirurgia vinha espesso do lasco de borracha verde de bexiga. Sobre a luva farelenta que cobria os pulsos da doutora havia um quadrado de plástico tão verde quanto a bexiga. A borracha asséptica feita do sangue da árvore, sangra e o sangue vira tudo, menos gotas no chão da floresta. O irmão de Itapuã está doente com meningite Nilza Também, minha amiga, Luís não sai daqueles matos Ela, a coreana, esticou a bexiga em meu rosto.
Abre mais a boquinha, dona Márcia.
Cortou um pedaço e abraçou meu molar com um colar de ferro. Enforcou meu dente como os dedos, a armadilha de Itapuã na minha goela, eu batia as gavetas, com força e o barulho e com a sensação do impacto; era bom. Ele é mocinha por tua causa, Márcia! Ele dá o buraco dele por tua causa, Márcia!
Cobriu meus olhos com a bexiga verde, via parcialmente a madrepérola, mas havia muito que já estava cega.
A água era jogada, suculenta de hortelã; então era a apoteose dos dentistas: a coreana ligou um tubo que sugava minha saliva, se armou com a lixa e o palito de aço. A dor aguda voltou. Apostei que se a aguentasse aguentaria Itapuã. A dor era um espasmo que me acertava a mandíbula, sentia-a no osso. A bexiga a deixava focada no molar, nada mais ali interessaria, só o molar, somente matar a dor; isso, matar a dor. Era o foco daquela tarde; o meu e o dela.
A lixa fazia-me tremer. A bexiga e a orquestra de limpeza dental me distraíram. Parecia que nem Itapuã, nem Luís existiam, Nilza? nem sei: só sabia de hortelã molhando minha garganta; engolia e mexia um tanto o pulso da doutora e a dor voltava como um relampejo. O que você sofre, Márcia, é um relacionamento abusivo, a situação em que a mulher sente e percebe como a dor emocional é pior que a dor carnal, que a dor física! Estou com uma dor de dente lascada Pronto, agora vou ter que tirar dinheiro do cu? Hein, Márcia?! Vai fazer meu arroz! olha rapaz, é só comigo isso. Chego para o almoço, tomei café nem nada, e nem salada tem? Contei isso pra Marcinho e ele disse: é memo? E eu: pois é, Marcinho. Olha, sinceramente, Márcia, tu é uma vergonha de mulher, mãezinha chora por estou longe e nesse sofrimento Eu no banheiro, abro o box grafite, o espelho graças a Deus está embaçado, me tateio e minha mão sobe e desce, as lágrimas apenas descem Você só chora, por isso seu filho é o que é
Estamos quase acabando, dona Márcia; agora só vou aplicar o material. Mantenha, por favor a boca assim.
Fechei os olhos. Senti um sono que há dois dias atrás tinha fugido de mim; só havia dor, uma dor inflada que torcia minha mandíbula, tirava-me a concentração; como se não bastasse dor naquela casa. Mas ali não sentia nada; lábio, nem minha narina esquerda, sentia torpor, até o pescoço. Itapuã poderia romper naquele instante e me apertar; sobreviveria.
O material era amargo, amargou minha garganta. Por que cuspiu? Tu num é mulher? Tem que gostar disso Olha lá a girafa, Luisinho, era o anãozinho de mãos dadas com Itapuã de peito peludo; o urso que usa a armadilha de urso. Estávamos no zoológico, foi só aquela vez. Tanto tempo que não vejo bicho, nego É memo? Eu via de tudo em São Luís O que já viu mamãe? Ah, meu filho, na chácara de teu avô uma vez um cavalo me cuspiu na cara O amargo era intenso e se grudava em minha goela. A coreana se armava de uma pistola de luz azul quando abri meus olhos. Mas a água refrescante de hortelã retornou, o rio lavou. Olha o jacaré na beira do riozinho, parece tua avó Itapuã?! Tô brincando, benzinho, olha Márcia, como que eles conseguem fazer um laguinho artificial que parece de verdade? Seu casamento é uma mentira, minha amiga, você tem que aceitar isso.
Pode cuspir
a doutora desatou o dente e tirou a bexiga, me curvei e cuspi na bacia branca, não sentia nada na boca, sentia meu busto farto de encontro com a pia de porcelana.
Terminamos daqui a quinze dias, tudo bem, dona Márcia? Aí fazemos a restauração. Vai ficar com o curativo durante esse período. Mas pode ficar tranquila que doer não vai mais.
Saí calada da sala, fui calada para a recepção, paguei calada. ‒ Uma hora sem comer, muito obrigada. ‒ Respondi calada e fui calada para casa. Entrei calada, abri as gavetas cheias de Itapuã, joguei o conteúdo destas pelo quintal, então as calei enfiando-as nas bocas da cômoda, o barulho acordou Luís Antônio, ele e seu shorts curto apareceram: ‒ O que está fazendo sua louca? ‒ respondi calada e continuei jogando as peças que montavam Itapuã no quintal, as pernas, o pinto, os braços, os óculos escuros que usava para olhar Nilza, calado. Tomei café e fumei dois cigarros seguidos; fui até Luís: ‒ Suma. Pode sumir. Eu deixo, vá viver sua vida, não vou mais lhe prender. Tem meia-hora, vá para onde quiser. ‒ E ele foi. Com um sorriso, calado, nem adeus, nem obrigado, nem um não, muito menos um fico. Uma hora depois eu comia pudim do natal enquanto assistia o programa que vendia joias, no mudo. Itapuã batia à porta e xingava após perceber que esta estava trancada. Eu continuei calada, esperei, até ouvir: ‒ Se é isso que você quer, então será. Vai tomar no seu cu, Márcia, pois saiba que eu já estava pensando nisso, você me fez é um favor, cara! Hoje foi dia de pagamento, otária, vou é gastar tudinho no motel com Nilza. ‒ Depois vieram os lamentos dos tecidos sendo postos em sacolas. Se foi. O nervo se foi.
Duas semanas depois voltei à doutora coreana.
‒ Sentiu dor, dona Márcia?
‒ Não, doutora, não sinto mais dor alguma.
Boa noite, Andreas! Li o conto e fui correndo passar fio dental e escovar os dentes! Tenho pavor de dentista kkk
Mas voltando ao conto, ele é bastante visceral. São pensamentos em cima de pensamentos, sem se apegar à alguma estrutura clássica ou algo do tipo, são diálogos, reflexões, memórias e tempos diferentes ao mesmo tempo. Acaba dando ao texto uma identidade própria, o que é muito bom. A protagonista passando em consultas no dentista, enquanto repassa sua vida e repensa os sofrimentos (comparado ao do dente) e se vale a pena continua assim ou não, dentro de um relacionamento abusivo, em que sempre é colocada pra baixo. O final é bastante impactante, quando vai jogando as roupas fora, se livrando do “corpo”.
É aquele tipo de conto que nos traz uma catarse tanto da personagem quanto pro leitor, nos fazendo refletir para as situações que vamos aguentando (como a dor de dente) até o momento que não dá mais, que tem que ser radical (como o canal). Em relação ao estilo, curto muito (e costumo utilizar também) essas metáforas, as descrições poéticas, o exagero visual, o rebuscado. Mas é como uma faca de dois gumes, já que deixa certas passagens bem pesadas ou as vezes travadas, podendo cair no “ame ou odeie” pro leitor.
Como eu disse antes, se ainda lembra, tive dificuldade para assimilar o conto na primeira vez em que eu o li, mas voltaria. Cumprido esse retorno, agora posso dar minhas impressões. Antes, quero apenas chamar atenção para uma crase colocada antes de pronome pessoal (ela), um erro gramatical. Pronto, colocado isso para que não macule o elogio, seguimos.
O conto tem um quê de fluxo de consciência, narrando a relação abusiva de Márcia com o seu marido em paralelo a extração de um dente apodrecido. O paralelo não é apenas na simultaneidade, mas também em comparativo das duas situações. Enquanto esmiúça o processo de extração, faz um translado para trechos da vida ingrata de Márcia, ora dentro do seu relacionamento, ora em conversas com a “amiga”. O recurso do negrito foi uma boa forma de situar o leitor, apesar de ter havido pelo menos um momento em que foi usado para indicar a fala da atendente do consultório, o que não sei se foi um equívoco ou feito de propósito para manter a áurea confusa da leitura.
Um grande mérito é o domínio da escrita, pelo uso surpreendente de algumas palavras, fazendo da lâmpada do dentista uma “concha”, da água mentolada um “mar”, dando a cor de Márcia como “de frango”. Essas caracterizações inusitadas demandam atenção e demonstram alguma ousadia, encontrando-se em todo o texto. O vai-e-vem logo ganha o leitor, se quer saber o que será de Márcia e Itapuã e quanto mais avança a extração do dente, mais claro vai ficando que é uma estória sobre ruptura e se quer saber como se dará a coisa. Por isso, pela construção da expectativa e pela forma como se escreveu, é mesmo um texto digno de nota, sobretudo pela técnica.
Andreas Chamorro.
Sem dúvida, um belo conto!
Daqueles que leva a gente a refletir e retomar os parágrafos na tentativa de decifrar o contexto, querendo se persuadir de que aquilo que entendeu não é aquilo que o conto quis tramitir.
Viajei muito, embarquei no trem sem verdades, mas acabei parando na estação da mais real e obscura realidade.
Obra-prima.