Extrato da Peça Teatral
O Cão de Palha
Excetuando o Diabo (ainda que possa haver dúvidas quanto a isso), o texto é histórico, com personagens reais pertencentes à Inquisição Medieval na Espanha – Século XIV.
Como tem origem numa peça teatral, foi parcialmente escrito com base em diálogos.
Nicolao Eymerich nasceu em 1320, numa família de comerciantes e religiosos. Nenhum riso o recebeu ao chegar. Entre a felicidade e a tristeza ficava a dura visão de haver nascido um filho homem que vinha ao mundo com uma perna menor que a outra, e cujo destino seria de um eterno coxo. Isto mais o habilitava à vida religiosa que aos negócios do curtume da família, que mais lhe exigiria do corpo que da alma.
O pequeno Nicolao teve uma infância triste, mergulhado com a mãe em intermináveis orações, onde faziam da vida um longo e árduo caminho até a presença de Deus. Contemplativa, sua mãe se dedicava ao recolhimento e à devoção, vivendo extática com o livro das horas nas mãos.
Era tocada pelo impreciso sabor amargo da conveniência de um casamento arranjado quando seus seios ainda não feriam as roupas mais finas. Amava em Nicolao todo amor que tinha, ensinando-lhe a adorar as coisas santas, a mergulhar no transcendente lume das velas e na vertigem dos rosários; a adorar a Cristo como só ela sabia fazer.
Tiveram um pelo outro, até o final de seus dias, um amor absoluto e incondicional.
Quando Nicolao completou quatorze anos, foi levado ao Convento de São Domingos, em Gerona, para iniciar seus estudos. Já falava fluentemente o grego e o latim, tornando-se ardoroso defensor dos princípios da Santa Inquisição.
Com dezoito anos, em busca de definições para o destino, Nicolao empreendeu peregrinação a Santiago de Compostela buscando purificar a alma e encontrar a paz para o corpo — esse eterno intolerante com as coisas da alma. A firmeza de sua vontade e a pureza de sua doutrina, fizeram-no convencido da absoluta fé nos dogmas da Igreja e no destino fabuloso que teria pela frente.
Eram constantes as visões de imaculada mãe apontando a ele o árduo caminho da bem-aventurança.
Alicerçado nas transparentes palavras do Evangelho de São Mateus — Deixai-os crescer juntos até à colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo, recolhei-o ao meu celeiro —, pôs fim às dúvidas que lhe restavam, levando-o à derradeira epifania. Ao cabo de alguns anos Nicolao tornou-se Inquisidor do Santo Ofício, quando queimaria o joio e mandaria ao Divino o trigo das colheitas: dedicou sua vida a cumprir os ditos do Concílio de Tolosa.
Nicolao peregrinava pelas vilas e cidades recrutando clérigos, leigos, pessoas de bem para juntos darem buscas frequentes as casas, porões, celeiros, subterrâneos, com o fim de capturar hereges empedernidos e sabidos anátemas. Frei Nicolao, como um crente semeador, plantava o trigo e o colhia, livrando o mundo do fardo que era o joio.
Em 1357 foi nomeado Inquisidor Geral da Catalunha, Aragão, Valência e Majorca, sucedendo a Nicolao Rossell, levado ao Cardinalato em 1356. Em 1382, em pleno inverno, quando são poucas as colheitas que o tempo permite, castigando o ânimo de um bom ceifeiro, Frei Nicolao Eymerich foi chamado a resgatar de um antigo porão o herege Astruco de Piera, judeu de Barcelona, inculpado de ser invocador de espíritos e negador da Fé Católica.
Com a agilidade de um hortelão, ainda que lhe falhassem as pernas, Frei Nicolao desceu ao tal porão. Uma habitação arruinada pelos anos, abandonada, de estilo indefinido, permitindo supor, pelas raras colunas que ainda estavam de pé e pisos que ameaçavam ruir, que fosse parte de uma habitação ou templo construído pelas hordas púnicas que se espalharam pelo mediterrâneo quando ocuparam o sul da Espanha.
Frei Nicolao empreendeu uma rigorosa busca e em alguns minutos já havia vencido a primeira centena de degraus que supunha o conduziriam ao acusado judeu Astruco.
Sentiu estranheza quando se deu conta que uma construção como aquela pudesse ter escadas tão longas, que ao despropósito o conduziam ora à direita ora à esquerda, em voltas, sempre descendo. Mas a firme vontade de queimar o joio o mantinha decidido a continuar, e assim o fez até chegar a um enorme portão onde as Quatro Bestas de Daniel o aguardavam.
— Vim buscar o blasfemo Astruco de Piera — ele disse.
Como um domador de feras, ameaçava aqueles monstros apontando em direção a eles um grande crucifixo feito da verdadeira madeira da cruz do calvário. A magia de suas palavras fez com que os portões se abrissem. As quatro bestas o reverenciaram e o deixaram passar.
Com passos serenos, Frei Nicolao irrompeu os portões sempre segurando sua cruz, e foi tomado por um bafo gelado que enchia o ambiente. Pouco podia ver. A névoa que o circundava tornava as distâncias indecifráveis. Havia no ar um forte murmúrio de vozes, embora não conseguisse decifrar uma só palavra. Vagou por algum tempo pela bruma e concluiu que havia morrido, pois estava no Céu. Sua vida havia sido coroada com a bênção de ter sua alma retornado ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Teriam valido os esforços de semeador e ceifeiro de Deus. As Quatro Bestas de Daniel seriam monstros arrependidos que guardavam os portões do Paraíso, impedindo a entrada dos blasfemos, dos anátemas, dos mouros infiéis e dos judeus. Bastava ver os modos gentis daqueles monstros e sua respeitosa reverência às coisas santas. Não havia dúvida.
Sentiu que finalmente escolheria um lugar acolhedor onde pudesse deitar o corpo sobre uma cama de névoa e olhar sua obra dar os frutos da ordem e da salvação. Assim o fez, e ao acordar percebeu que era observado.
Em pé, ao seu lado, havia um homem de barba longa, branca e cristalina, a se confundir com os cabelos que lhe passavam dos ombros. Tinha a pele alva e um rosto tranquilo. Suas roupas branquíssimas se estendiam até os pés, a lhe conferir uma aparência venerável.
— Ó Senhor, enfim O encontrei, rogo misericórdia a esta alma que tudo fez para merecer esta visão. Abençoado o caminho que trilhei, os percalços, as dúvidas vencidas que me conduziram até Vossos pés. Rogo que façais de mim Vosso humilde servo aqui no Céu, como fui na Terra. Dizei-me a obra que me aguarda, a mais árdua, que a tomarei nos braços com o amor que tenho por Vós. Dizei-me, Senhor!
— Por quem me toma, Nicolao?
— Por quem haveria de tomar-Vos, Senhor? Sois o Senhor do Mundo, do Céu, do Paraíso.
— Não, Nicolao, não chego a tanto. Minha obra ainda caminha. Por agora cabe-me ser o Senhor deste mundo que você pode ver.
— E que mundo é este, Senhor?
— O Inferno, Nicolao.
— Ora, Senhor, por quem me tomais? Sabemos que o Inferno é a morada do Diabo, do fogo e do enxofre. Tudo aqui contradiz o que sei do Inferno: a brisa fria, o silêncio, a paz. Estou no Céu do meu Senhor, posso afirmar.
— Vejo que você pouco aprendeu sobre as coisas de cá, Nicolao. O Inferno é frio, inóspito, brumoso, impessoal, despido de acomodações e acolhimentos, e… enxofre, Nicolao!, que coisa mais desagradável! Enxofre é um dos excesso dos seus. E quanto ao Diabo, lamento não me haver apresentado. Cá estou, e não digo a lhe servir pois aqui me servem todos.
— Então, como será o Céu?
— Bem, do que ainda posso lembrar, o Céu é quente e acolhedor, embora extremamente monótono… tedioso ao extremo.
— Que triste destino o meu, morrer e vir parar no Inferno, tendo trabalhado tanto pela obra de Deus.
— Não me aborreça com as obras do teu deus…
— É o meu Senhor. Por que não o adoraria?
— Porque ele é um deus vaidoso que precisa de tolos como você, que o adulem dia e noite. Por isso ele sempre aceitou ficar ao lado dos mais fortes, dos que aterrorizam, dos que destroem e criam hordas de coitados que aderem às suas seitas. Eu dou a dor, o desprezo, a solidão. Os que me seguem não trazem até aqui a ilusão do Céu ou da Salvação, pois quiseram a Verdade do Mundo, que é Sofrimento apenas. Quando vejo um de vocês, fico inclinado a sentir ódio e compaixão. Suas caras variam, mas o que permanece por baixo da pele é a arrogância e a covardia. A estupidez é a primeira condição dos seus. Então eu os trago até aqui para que conheçam a Única Verdade.
— Pater noster, qui es in caelis…
— Recomponha-se, homem, e pare de choramingar como um bebê. Você está realmente no Inferno, mas morrer ainda não te aconteceu, embora isso seja uma questão de tempo.
— Como, então?
— Bem, digamos que conduzi você até aqui apenas para tratar de negócios mútuo.
— Não quero negócios com o Filho das Trevas.
— Apure seus ouvidos, Nicolao: eu não sou o Filho das Trevas, eu sou A Treva. E não esqueça que você está aqui sob as minha ordem, e não havendo negócios mútuos a tratar, escolha um canto frio em que possa sofrer pela eternidade. Aqui, não há a morte que possa extinguir a loucura, o sofrimento ou a dor. Só existe a eternidade, que, convenhamos, é bem mais longa que a vida.
— Não quis ser intransigente, podemos conversar, afinal, serão apenas negócios.
— Pois bem, Nicolao. Vivemos numa época de ingenuidades, o mundo pouco sabe de horrores e de pecados que valham a pena cometer, e ficam por aí, uns tolos vagando sobre campos e cidades, e isso me tem causado profundas desvantagens frente ao seu Senhor. Como você deve saber, meu atributo principal é a inveja, assim, não quero sustentar este desequilíbrio entre nossas forças de poder e domínio, porque o outro, lá do Céu — se é que você me entende —, é espertinho e insidioso com aquele horrível jeitinho de bom-moço, um falso…
— Não lhe devem faltar almas, se tantas mandei para cá durante tantos anos. Olha que tenho me esforçado para ceifar o joio, queimá-lo e despachá-lo aqui para este Inferno.
— Não o bastante, Nicolao. De cada dez que você queima, só um me serve, normalmente por outras culpas, outros crimes, outras avenças, que não as que você lhes atribui.
— Mas envio aqueles que rogam pelo teu nome, os que cometem perjúrio e blasfemam, os feiticeiros, os heréticos, toda horda de amasiados ao teu nome e os mouros e judeus, é claro.
— Não meta os judeus em nossos assuntos, Nicolao, eles têm lá o que lhes apetece e isso já é bastante. Quanto aos outros, coitados, quando aqui batem não posso tê-los em confiança; são loucos e não sabem o que dizem. Tanto para ti quanto para mim de pouco valem. Ficam andando por aí a me estorvar o espaço, que embora seja bem grande, já anda meio tumultuado.
— Não é possível, é gente do mais alto horror. Pura blasfêmia e nenhum pudor. Vivem a fornicar, não comem com frugalidade, fazem do riso um modo de vida. Não me diga que não lhe servem tantas imundices.
— Bem, diria que em tempos em que tive por hábito o gosto por coleções, foram importantes. Importava-me, na adolescência, o muito sem qualidade, hoje não. Prefiro uma pequena safra de boas almas a uma horda de tolos e aluados.
— Ora, tal conversa já me esgotou a paciência. Se estou vivo como há pouco me disse, aqui não é o meu lugar. Volto à Fé Católica e à Igreja do meu Senhor.
— Impossível! Aqui você está e aqui permanecerá até que eu decida em contrário, se decidir, que fique claro, e isso eu custo a decidir. Quando quero, tenho boa memória para o esquecimento.
— Se não sou feito de pecados, não tenho aqui o meu lugar.
— E eu sou o Diabo, Nicolao.
— Não entendi.
— Se você for um pecador, e não afirmo que não o seja, daqui você não sairá, mas sendo um puro de alma, e também não afirmo que o seja, mantê-lo aqui seria algo muito… muito diabólico, bem ao meu estilo. Mando que as bestas que guardam os portões não permitam a sua saída, afinal, elas não estão lá para proibir entradas, mas para impedir saídas.
— Vejo que pouco me sobrou.
— Talvez lhe tenha sobrado em ações, Nicolao.
— Boas ações.
— Não diga bobagens. Você me serviu bem enquanto precisei, embora ainda tenhamos negócios a terminar, e vamos a eles sem demora…
— Servi apenas ao meu Senhor.
— Digamos, Nicolao, que você serviu a ambos e pomos uma pedra sobre o assunto.
— Não quero este fim.
— E como você o quer?
— Que fique claro que só servi ao meu Senhor.
— Serviu a ambos.
— Estamos circulando…
— Você empreendeu uma corrida em direção ao Inferno, Nicolao.
— Talvez eu não devesse estar aqui.
— Você chegou aqui com as pernas estropiadas que lhe dei quando estava ainda no ventre de sua mãe.
— Diabo! Então foi assim?
— Sei o que faço e sempre tenho planos, todos diabólicos. Mas continuemos.
— Cheguei aqui conduzido por suas artimanhas.
— Mas foram suas pernas estropiadas que trouxeram você até mim.
— Seduzido em colher o joio. Queria pegar o judeu Astruco.
— Esqueça o judeu Astruco. Eu sou o joio, Nicolao, é isso que sou. Você admite? Queria colher-me, Nicolao? Ceifar-me? Atar-me em feixes? Aqui estou… estamos juntos, podemos permanecer juntos, o ceifeiro e o seu joio. No frio e na tristeza, neste campo infértil em que tudo é joio, e farte-se com isso…
— Já disse. Desejava buscar o maldito judeu Astruco de Piera.
— Lá vem você de novo com essa obsessão pelos judeus…
— Herético! Demoníaco…
— Astruco é apenas um lunático que um dia você e o Bispo de Barcelona farão emparedar.
— Então admite que viverei para emparedar o judeu?
— Admito, mas posso dizer que você nunca emparedará o pobre coitado, que permanecerá aqui. Tenho nas mãos o Tempo dos Mundos e posso dirigi-lo como bem quiser.
— Rogarei ao meu Senhor que me livre de suas garras, pois sei que sou frágil como todo homem sobre a terra… resta-me orar a que…
— Por que você imagina que Ele lhe quer ouvir, Nicolao?
— Porque colho o trigo e queimo o joio, já lhe disse…
— Ainda com isso, Nicolao? Você só tem olhos para o joio. Se o teu Senhor falou em joio, falou também que, ao colhê-lo, corria o perigo de ceifar o trigo que alimenta o seu mundo. Você esqueceu disso?
— Não esqueço as Escrituras…
— Mas nunca teve olhos bons para ela. Preferiu o orgulho da certeza, a empáfia dos soberanos e dos deuses. Esqueceu a humildade e a indulgência. O orgulho, Nicolao, é o pecado que mais tem enchido este lugar.
— Vivemos tempos de fogo e de ferro.
— Não, Nicolao! Você e a tua Fé Católica fizeram do ferro e do fogo teus instrumentos contra ingênuas criaturas. Mas não digo que não pus meu dedo nisso, devo admitir, e como disse, sempre tenho planos.
— Pessoas se aproximam…
— Pois tente ouvi-las, Nicolao.
— Não posso, as palavras se misturam como…
— Como o joio e o trigo, Nicolao.
— …como as palavras se misturam…
— Não fuja do assunto. Tente ver as pessoas que falam à nossa volta, Nicolao.
— Não posso, elas somem na bruma sem que eu possa vê-las.
— Isto é o Inferno, Nicolao, estamos todos sós. Quando chegam aqui, depois de tanta arrogância e crueldade, ficam todos pacificados, arrependidos. Arrependidos! Tenho ódio daqueles que se arrependem, que pedem compreensão, mas deixaram para trás um mundo de sofrimentos. Não lhes tenho compaixão. Deixo que vivam a solidão de saber que o próximo estará sempre distante. E você? Escolha aqui um canto que o seu orgulho te concedeu. Tenha no Inferno a tua morada final.
— Ora, lembro me haver proposto um acordo, assuntos de interesses mútuos…
— Você é uma boa alma, Nicolao, para mim, é claro. É uma pena que ao Inferno não desçam muitos homens como você, que entendam tanto de conveniências.
— A conveniência nunca foi um pecado.
— Digamos que ficam todos os convenientes com um pé aqui e outro lá.
— Lá, quer dizer no Céu?
— Não, Nicolao, um pé no Inferno e outro na lama do seu mundo. Essa história de Céu virou uma irritante obsessão.
— Não faça caso de pormenores.
— Cuide-se, Nicolao, você está progredindo na arte do sofisma; trate de limpar o pé da lama em que sempre viveu metido.
— Pater noster, qui es in caelis…
— Muito tarde para tanto ardor, Nicolao. Si volumus non redire, currendum est.
— O que quer dizer-me?
— Não importa. Devolvo você ao mundo dos vivos se você me prometer uma obra que faça deste Inferno um lugar digno de se viver, diabolicamente, claro. Quero aqui os escritores, cronistas, literatos, filósofos, homens de ciência e até mesmo uns loucos bons de conversa; só não me mande homens de religião, pois detesto ouvir tolices. Quero aqueles com quem possa ter dias agradáveis, algo impossível com essa corja que você me manda, suja e iletrada que perambula por Aragão, Valência e Catalunha…. Tenho tédio… e não há dor maior que o tédio… aprenda isso.
— Não tenho forças, sou um homem velho para me bater em busca da boa canalha infiel.
— Você está no ponto, Nicolao.
— Como assim?
— Você ganhou a confiança dos seus, sua palavra tornou-se uma lei. Torne-a conhecida, dando a ela o peso do ferro e do fogo de que você tanto gosta.
— Já não lhe bastam os que queimamos?
— Mandou-me apenas os tolos que pouco me valem. Quero os inocentes, inculpados pelas vinganças que serão por você imputadas sob uma lei louca e odiosa, óbvio, algo maravilho de se ver aqui do Inferno.
— Isto não será difícil, se eu aceitar a sua proposta.
— Você não tem escolha, Nicolao.
— Pelo que disse, aqui é o meu lugar; tanto posso aceitar o acordo como não aceitar, pouca diferença me fará.”
— Não sou injusto, não foi este o pecado que me derrubou do Céu. Ofereço a você a minha recusa em recebê-lo no Inferno, quando da sua morte. Mando que as Quatro Bestas de Daniel impeçam a sua entrada e ninguém nesse ou em outro mundo o fará chegar até mim.
— Me receberão no Céu, então?
— De novo com isso… Não vejo a menor chance, Nicolao.
— Pode estar me enganando, seria típico de sua parte…
— Livro você do Inferno se aceitar correr tal risco, que já não é grande quando avaliada a tua situação. Sem o acordo, vou recebê-lo de braços abertos, reservando o canto mais úmido e frio que tenho. Mandei que fizessem um epitáfio bem bonito que lhe encherá de honra: Nicolao Eymerich, fiel companheiro… essas coisas que se diz de um morto sem jeito de ser verdade, mas que ficam bem quando gravadas em pedra.
— Onde ficarei, então, se me dispuser a pactuar consigo?
— No Limbo. É o máximo que posso fazer, não me peça mais. Após a morte não são tantas as opções como você pode imaginar. Há o Céu no qual não tenho qualquer influência, o Inferno, que é onde você está, e o Limbo, que não é aqui nem lá, um meio termo, uma água morna, um tapinha nas costas, um mais ou menos. Apenas isto.
— Quero mais informações acerca do Limbo.
— Pois bem. Imagine um equilibrista sobre um arame. Se ele cair, cairá no Inferno; é isto.
— E o Limbo?
— Pois não é óbvio? O Limbo é o arame onde o equilibrista permanece lutando para não cair.
— E o Céu?
— Para quem está no Limbo, o Céu é a chance que tem de não cair enquanto permanecer em equilíbrio. Com nosso acordo, posso dar a você uma daquelas varas compridas que ajudam no equilíbrio, mas só isso.
— São poucas as minhas chances de conseguir o Céu.
— Diria que nenhuma, nenhuma chance. E não lhe posso deixar de avisar que todos, um dia, acabam cansando de ficar sobre o arame e caem. Vamos ao acordo.
— Pois vamos, que remédio… Como começamos?
— Anota, Nicolao. Você escreverá O Manual dos Inquisidores. Anotou?
— Sim, anotei.
— Vamos chamá-lo de Directorium Inquisitorum, em latim para ficar mais bonito. Preciso e elaborado. Você levará o resto de sua vida para aprimorá-lo.
— Sei bem como começar: Quem vacila na fé é infiel. Nunca devem ser acreditados aqueles que ignoram a verdadeira fé.
— Bom, Nicolao, você está pegando o jeito…
— Depois podemos colocar algo como: Quem sendo capaz, não desvia os outros do erro, demonstra que está ele mesmo caindo em erro.
— Magnífico, Nicolao! Juntamos no mesmo saco os que pecam e os que nada têm com a história. É justo o que eu imaginava. Mas não esqueça de me mandar os filósofos, os escritores… essas coisas…
— Imagino mais, veja: Os magos necromantes ou invocadores e sacrificadores dos espíritos — que são todos a mesma coisa — podem conhecer-se pelos sinais seguintes: têm a vista torta, por causa das visões, aparições e conversas com os espíritos maus; põem-se muitas vezes a adivinhar coisas futuras, mesmo aquelas que dependem só de Deus e às vezes da vontade dos homens.
— Gostei, Nicolao, faltam-me aqui alguns estrábicos e gente ruim da vista. Abriremos um novo departamento para eles.
— Veja mais esta que imaginei: É muito útil para a Fé Cristã que os Inquisidores possuam muito dinheiro, para poderem sustentar-se, assim como às suas famílias, para a busca e perseguição dos hereges, para obviarem às outras despesas que são obrigados a fazer.
— Nicolao! Você está se saindo melhor que a encomenda! Se me desse conta disso há mais tempo, teria antecipado a tua vinda, ganharíamos um bom tempo.
— Não posso fugir ao hábito. Se me afundo na lama, que seja em bom estilo.
— Boa, Nicolao! Você está trazendo vida ao Inferno.
— Literalmente, Senhor, por isso estou aqui!
— Beleza, Nicolao, você está demais! Fará sucesso no Limbo! Um incansável equilibrista sobre o arame. Já nem darei a você a vara do equilibrista.
— Não me traga essa lembrança. Causa-me pesar ter perdido o Céu.
— Lá vem você novamente com essa tola obsessão pelo Céu. O Céu não é tudo, Nicolao.
— Era tudo o que eu queria.
— Valeu a intenção, Nicolao, e depois de tanto esmero já vejo um novo epitáfio para ornar a sua tumba: Praedicator veridicus, inquisitor intrepidus, doctor egregius, uma beleza dizer isso em latim. Agora pode contar a todos que me tem como amigo; e mãos à obra, Nicolao, porque o Inferno está à toda.
Frei Nicolao Eymerich deixou o encontro com o Diabo e tomou o caminho de volta. Ao cruzar o enorme portão, as Quatro Bestas de Daniel o reverenciaram novamente. Tomando a escada, transpôs os seis degraus de que ela era feita e chegou à rua. Astruco de Piera já estava nas mãos da guarda.
Houve grande querela em torno desse judeu abjurado. Seu complexo processo de imputação de culpas findou por ser levado ao Papa Gregório XI. Ouvidas as partes, o Papa ordenou que o judeu Astruco de Piera fosse entregue ao Inquisidor Frei Nicolao Eymerich que, depois de torturá-lo como devido, mandou que o emparedasse para sempre, pondo fim à querela.
O trigo recolhido ao celeiro; o joio ligado em molhos e queimado, o grande livro de Frei Nicolao Eymerich não demorou a chegar às mãos dos que professavam a Fé Cristã e foi um sucesso estrondoso por muitos séculos.
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