Imagine a seguinte situação: você é uma garota de dezessete anos e está fugindo da guerra na Síria. Sua irmã, dois anos mais velha, a acompanha. Com dificuldade, vocês conseguem chegar à Turquia, mas seu objetivo é a Alemanha. Às margens do Mar Egeu, você quase enxerga as ilhas gregas, a porta de entrada da Europa. Da salvação. Da vida nova. Um sujeito mostra um bote e diz que você, sua irmã e mais dezoito pessoas, crianças inclusive, devem fazer a travessia nessa embarcação. Você diz a ele que ali não cabem mais do que seis pessoas, mas ele, o sujeito, dá de ombros. A escolha é sua.
Resignados, todos entram, você, sua irmã também. Alguém dá a partida no motor, que sofre para impulsionar o bote adiante, vencer as ondas e a arrebentação. Apesar do aperto, todos têm fé de que tudo vai dar certo, que a Grécia é logo ali, que ninguém vai cair no mar e morrer afogado. Até que o motor engasga, tosse e falha. Recusa-se a pegar. E você, sua irmã e mais dezoito pessoas, crianças inclusive, estão à deriva no mar que se agiganta. Sem o impulso, o peso das pessoas faz com que a água comece a entrar no bote.Homens e mulheres se entreolham, tentando abafar o desespero. O barco vai virar, alguém murmura. A noite está chegando. Vamos morrer, berram os pensamentos. Imagens de imigrantes mortos à beira mar vêm à mente. Tantos, tantos… Por que nós? Surgem as primeiras preces, os lamentos, as promessas. O que fazer?
Yusra Mardini e a irmã Sara não tiveram dúvidas: pularam na água. Nadadoras desde a infância, sabiam que eram a única chance de sobrevivência daquelas pessoas. Por mais de três horas, enroladas em cordas, enfrentaram as ondas, o vento e a escuridão para manter o barco estável, no rumo da ilha de Lesbos, lutando contra o cansaço, o desânimo e o desamparo, empurrando e puxando o bote.
O que se passa na mente de alguém que encara a morte? Que carrega o peso de tantas vidas nas costas? Que não pode errar, que não pode sucumbir aos próprios medos? Que não pode desesperar-se porque o canto da autopreservação pode ser sedutor demais, porque o instinto para salvar a própria pele pode condenar os outros.
Em “Butterfly: From Refugee to Olympian”, ainda sem tradução para o português, acompanhamos a história da jovem Yusra, desde as primeiras braçadas em Damasco, passando pelo drama da fuga de uma Síria arruinada pela artilharia, até seu mergulho na piscina do complexo olímpico do Rio de Janeiro, como representante da equipe de Refugiados concebida pelo Comitê Olímpico Internacional.
Por óbvio, não se trata de spoiler saber que Yusra e a irmã venceram o mar e que salvaram aquelas dezoito pessoas. Muito menos que Yusra disputou duas provas nos Jogos do Rio. Essas informações constam do título do livro. O que realmente torna essa obra fascinante é acompanhar seus passos desde a saída de Damasco até o momento da redenção.
A guerra civil na Síria dura tantos anos que de certa forma nos acostumamos às cenas de destruição e barbárie, aos milhões que buscam abrigo em países vizinhos, aos milhares que se aventuram no mar sem saber nadar, às centenas que encontram nas águas sua morada final. De fato, são cenas que vêm se repetindo e que nos anestesiam os sentidos, tornando-nos insensíveis aos dramas que tantas famílias passam por conta disso.
A jornada de Yusra e Sara tem o condão de nos resgatar desse torpor, de mostrar como o ato de sobreviver demanda coragem, sacrifício e improvisação. De como é difícil tornar-se um pária, alguém sem pátria, sem identidade. De fazer-nos perceber, ainda que no nível infinitesimal, o que significa atravessar países nem sempre dispostos a ajudar, negociar com aproveitadores e policiais corruptos enquanto recebemos notícias de amigos mortos.
Pelo relato da jovem Mardini vislumbramos a crueza do desconforto de noites ao relento, os esconderijos arranjados às pressas, o medo de ser roubado. Mas também percebemos o valor da amizade, da lealdade e da crença de que no final tudo terá valido a pena.
Nesse contexto, o triunfo que o título dessa obra autobiográfica deixa subentendido não significa necessariamente vitória — especialmente porque Yusra e Sara deixaram para trás o lar que tinham, além de uma vida próspera, familiares e amigos, tudo ao sabor das bombas, dos morteiros e das rajadas de metralhadora — mas apenas um passo a mais na longa marcha pela dignidade.
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