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Detox Literário.

Jesus Cristo Bebia Cerveja – Afonso Cruz – Resenha (Angelo Rodrigues)

Nos últimos tempos tenho me dedicado um pouco mais a ler ficção de autores novos, ou que não sendo novos em idade, que sejam novos por estarem distantes do grande público, numa espécie de cruzada pessoal pelo estranho, pela novidade, seja ela contemporânea ou que represente uma prosa divergente aos cânones em seu tempo e meio.

Não é fácil, pois para os outsiders não há catálogos que os acolham, dado que ao entrarem nesses excêntricos catálogos, por óbvio, tornar-se-iam assimilados como tantos outros. Outsiders precisam permanecer como são e a nós cabe a tarefa de os pescar aqui e ali, como tontos bem intencionados, ficando por conta do tempo o destino que tomarão, se assimilados, perpétuos outsiders ou esquecidos para sempre. 

Nesta linha, cito, por exemplo, autores russos, como Liudimila Petruchévskaia com os livros – creio que os dois únicos traduzidos ao Português – que nos chegaram: “Horas: Noite” e “Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha”, ou ainda Vladímir Sorókin, com “Dostoiévski-Trip”; ou ainda o húngaro, Dazsö Kosztolányi, com o seu “O Tradutor Cleptomaníaco”. Vale a pena conhecê-los.

Mas, estes, ficam para uma outra oportunidade. Por agora quero falar de um livro de Afonso Cruz, um jovem português que escreve uma ficção bastante afinada, que parece, senão todo, ao menos na parte – um escritor multimídia –, apresentar uma boa forma de ruptura narrativa. 

Neste livro, Afonso Cruz nos dá a história de Rosa, uma jovem do interior de Portugal, que após a morte dos pais, se vê na contingência de ter de cuidar da avó, Antónia (como no original), uma mulher idosa que pouco escuta e varia na compreensão do que lhe é dito.

O texto flerta com o Realismo Fantástico em linhas tênues, não descendo a qualquer excesso que o possa caracterizar necessariamente com esse tom de escrita, embora chegue perto. 

O romance é tomado por histórias paralelas, todas muito oportunas e bem colocadas. Não estão ali para dar volume ao texto central, mas para compor o grande puzzle que dará suporte à história que justifica o livro.

Rosa, adorando a avó e vendo-a chegar ao fim da vida sem realizar o seu grande sonho, resolve realizá-lo com a ajuda de moradores de sua Aldeia. A partir deste desejo, encenam-se farsas para levar a avó até a Terra Santa, Jerusalém. Estar na Terra Santa era o sonho de Antónia.

Toda história a partir daí desagua neste viés, que é rico em referências históricas, sem esbarrar no didatismo enfadonho. Todo esse tom “científico” que atravessa a história central, é dado pelo professor Borja, um homem culto em meio a descamisados de boas ideias, gente simples. Borja é um homem que se desajusta perpetuamente do meio social onde vive, ao passo que justo isso o dá volume e personalidade, que, à rigor, conduz o grande teatro do livro.

Para fazer frente à farsa de levar a avó até Jerusalém, constroem na Vila e na mansão da inglesa rica do lugar, a Cidade Santa dos sonhos de Antónia. 

Mais que isso é spoiler.

Ao contrário dos outros livros de Afonso Cruz, este não pega o leitor de imediato, não parecendo, logo de início, dizer ao que veio, parecendo que não irá decolar, dado que é manso, alheio à história anunciada pelo resumo industrial da editora, mas, como um corredor de longas distâncias, Afonso dá ao texto a força de que ele precisa, a trama se vai afirmando, tomando corpo, se adensando até culminar com ricos desenlaces.

Um livro com estilo envolvente, que, à rigor, fala do humano simples de Portugal, da gente que ama a terra onde nasceu, do desejo e, acima de tudo, do sacrifício que alguém é capaz de fazer por aquele que verdadeiramente ama.

Impressiona, particularmente porque é um livro que é Mundo quando é Aldeia, e nisso reside parte das suas rupturas, quando não precisa levantar do chão os pés para fazer uma prosa riquíssima.

De Afonso Cruz reverencio alguns outros títulos, tais como “Flores”, “O Pintor Debaixo do Lava-Loiças”, “Os Livros que Devoraram meu pai”, entre outros.

……………………

Resumo do livro:

Capa comum, 248 páginas,

Editora Alfaguara

Idioma Português (Pt-Pt)

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4 comentários em “Jesus Cristo Bebia Cerveja – Afonso Cruz – Resenha (Angelo Rodrigues)

  1. Fil Felix
    10 de julho de 2019

    Boa noite, Angelo! Muito boa a resenha, li por curiosidade do título. Inclusive os russos que indicou, fiquei curioso quanto ao da mulher que quer matar o bebê da vizinha. Engraçado como esses nomes saltam, me lembram alguns livros e filmes espanhóis, que conversam com o absurdo ou o realismo mágico (que adoro). Interessante a história de Jesus Cristo bebia cerveja, apesar de não citar se tratar de comédia ou drama, fiquei imaginando ser algo descontraído e emocionante, ao trazer à realidade o sonho da idosa. Pelo menos parte desse sonho.

  2. Juliana Calafange
    5 de julho de 2019

    Adorei a resenha. Deu muita vontade de ler, vou procurar cada um dos livros que você citou! Fiquei curiosíssima!

  3. Angelo Rodrigues
    5 de julho de 2019

    Esse anônimo aí sou eu. Como não percebi?

  4. Anônimo
    5 de julho de 2019

    Desculpem-me, mas há no texto dois “à rigor” que teimam em se sublevar na minha displicente escrita. Há também outra bobagem, entre tantas, que diz “…ao passo que justo isso o dá volume e personalidade…” quando deveria ser “…ao passo que justo isto dá volume ao personagem…”.

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Publicado às 5 de julho de 2019 por em Resenhas e marcado , .
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