“A injustiça que se faz a um é a ameaça que se faz a todos.”
Montesquieu
Recostado na desconfortável cadeira giratória que rangia sob seu peso, ele tentava disfarçar a inquietude que o consumia movendo-se de um lado para o outro enquanto observava as pequenas nuvens de fumaça que saiam de suas narinas perderem-se no ar abafado do entardecer que engolia a capital cor de chumbo.
Sentia o fedor do seu próprio suor grudado em sua pele e em suas roupas depois do calor sufocante que havia dominado o dia e que em breve seria varrido pela garoa fina que se aproximava prometendo algum alivio.
Exausto, seu corpo cobrava o preço das longas horas sem dormir e da enorme quantidade de café ingerido. O estalar sincopado e constante das teclas da máquina de escrever mais próxima tilintava em seus ouvidos embalando uma forte sonolência que ameaçava embaralhar seu raciocínio.
Massageou as têmporas com a ponta dos dedos tentando conter o pico de ansiedade febril que se aproximava. Estava acordado há mais de quarenta e oito horas e seus olhos vidrados ardiam como quando se mergulha na água salgada do mar, porém ele sabia que não podia se dar ao luxo de dormir. Não enquanto o trabalho não estivesse terminado.
Pensou em sua pequena filha que àquela hora já estaria dormindo, aquecida e protegida em sua cama e sorriu. Gostaria de poder passar mais tempo com aquela menina doce de olhos calmos, cheia de perguntas e surpresas, mas o trabalho ocupava todo o seu dia e não raramente as noites também.
Sempre buscava se redimir de sua constante ausência com presentes e regalias para mãe e filha, contudo, o que realmente o deixava em paz era saber que todo aquele sacrifício era feito pelo bem de seu país e, acima de tudo, para proteger sua família da ameaça vermelha que se avizinhava há anos.
Muita gente não compreendia ou sequer tinha consciência de que havia uma guerra sendo travada. Uma guerra velada e não declarada, porém, igualmente destrutiva, e na qual ele era um dos soldados na linha de frente. Pensar naquilo fez um arrepio frio percorrer seu corpo desfazendo por completo a imagem pacífica que até então tinha em mente.
Levantou-se tentando afastar o sono e caminhou até a janela escancarada buscando fugir do ar viciado que pairava por todo o ambiente como um fantasma.
Ficou ali por alguns minutos sentindo no rosto o vento que soprava suave, inspirando o aroma doce do fim de tarde e observando o crepúsculo devorar a Rua Tutóia que, àquela hora, ganhava um aspecto ainda mais perturbador.
Com um estalar de dedos, lançou para cima a bituca do cigarro ainda acessa, observou a ponta vermelha descrever uma acrobacia convexa no ar e se inflamar enquanto rodopiava percorrendo o curto trajeto até o chão, fazendo-o pensar nos olhos injetados do homem que o aguardava na sala do segundo andar do prédio dos fundos.
Havia sido recrutado para aquele trabalho há mais de quatro anos e apesar de entender a importância que os delatores tinham para a defesa do regime, ainda se enojava quando a denúncia vinha de um parente ou de alguém próximo ao denunciado, como naquele caso.
Apenas uma ligação havia sido suficiente para que o apartamento fosse invadido e lá estavam todas as provas. Livros e mais livros. Literatura subversiva. Marx, Engel, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Monteiro Lobato…
Mas, para ele, pior do que aqueles livros doutrinadores eram as revistas encontradas aos montes por todos os cantos. As imagens repugnantes retratadas nas páginas que os agentes e policiais mostravam uns aos outros de forma despudorada e que expunham o sexo de forma invertida e contrária à natureza tinham lhe causado asco e provado que o morador daquele lugar, além de comunista, era um pervertido.
Com os olhos atônitos, tentando esconder o medo que lhe borrava as feições o homem sequer tentou se explicar. Não havia como justificar aquilo, então aceitou seu destino deixando o prédio com as mãos atadas às costas e sob os olhares acusadores dos vizinhos, cheio de uma dignidade que nem sempre era vista.
Aquela prisão havia sido anunciada como uma grande operação e uma vitória importante na luta contra aqueles que desejavam instituir uma ditadura vermelha no país, entretanto, passadas quarenta e oito horas, ele começava a ter dúvidas de que aquele homem de corpo franzino e alma alquebrada realmente representasse algum risco para a segurança nacional, pois ou o pobre diabo nada sabia ou, mesmo sendo claramente afeminado, era o cara mais resistente que já tinha passado por suas mãos.
Percebendo a natureza sensível do prisioneiro, ele havia decidido começar os procedimentos levando-o para o que costumavam chamar ironicamente de “passeio”, crendo que talvez aquilo fosse suficiente para fazê-lo falar sem que lhe fosse necessário sujar as mãos.
Ao adentrarem a sala onde uma luz pálida e vacilante iluminava o corpo nu e destroçado de uma mulher que jazia em meio à urina, fezes e sangue, com os bicos dos seios arrancados, a pele branca coberta por hematomas verde-arroxeados e as pernas abertas em uma posição impossível, exibindo parte de uma ratazana enorme e cinzenta que pendia de sua vagina como se a tivessem surpreendido dando à luz a um ser grotesco, o homem entrou em choque e teve que ser carregado para sua cela inconsciente.
Depois daquela tentativa frustrada, ele seguiu todo o protocolo estabelecido pela cartilha da OBAN para as operações do DOI-CODI, pondo em prática as técnicas que sempre faziam até os mais fortes e tenazes falar em meio a gritos de dor e suplicas por clemencia.
Porém, mesmo após horas sendo submetido ao ritual bizarro no qual as perguntas eram repetidas incessantemente e, ante a ausência de respostas satisfatórias, dedos eram esmagados, unhas arrancadas, articulações moídas e, até mesmo, um fio podia ser introduzido no pênis do interrogado para que fossem aplicados choques elétricos até que se perdesse o controlo de todas as funções do corpo, o homem não dera qualquer informação.
Passadas as primeiras horas sem resultados, o jogo parecia agora virar-se contra ele e o tempo se tornara seu maior inimigo. Ele precisava conseguir algo antes que a vida escapasse daquele corpo que não poderia resistir por muito mais tempo, deixando-o sem nada. Se o prisioneiro morresse sem lhe dar qualquer informação, ele estaria em maus lençóis.
Tinha recebido a missão diretamente do Doutor Tibiriça(*) e falhar não era uma opção. Temia as consequências que decepcionar aquele homem de testa alta, cabelos ralos e farda alinhada, com os olhos sempre escondidos atrás de óculos escuros, tornando impossível saber para qual direção ele olhava, causando em todos ao seu redor a estranha e desconfortável sensação de estarem sempre sendo vigiados, poderia acarretar.
Mesmo para ele, o medo constante era tão natural quanto o ato de respirar e agora que a possibilidade de falhar parecia perto de se concretizar, seus sentidos começavam a se entorpecer pela ansiedade, o coração batia forte ecoando em seus ouvidos, a boca estava seca e ele podia ouvir o sangue correndo em suas veias.
Se ao menos o homem tivesse família ou amigos próximos, alguém por quem temesse ou a quem amasse acima de sua ideologia estéril, essa pessoa poderia ser usada para forçá-lo a falar.
Aquele era um recurso usado somente em casos extremos, mas que nunca havia falhado, porém, as informações constantes do relatório policial do prisioneiro diziam que ele vivia sozinho naquele apartamento, mantendo contato esporádico apenas com a enfermeira que ministrava suas injeções semanais e que era a pessoa que o havia delatado.
Concentrou-se em busca de algo que parecia ecoar vindo do fundo de sua mente. Ele tinha a nítida impressão de que havia deixando algo escapar, um detalhe que poderia fazer a diferença.
Então, subitamente, lembrou-se de algo que vira quando estivera no apartamento do interrogado, rezou para que ainda estivessem lá e discou para a central exigindo um carro com urgência.
Aquele seria um golpe desesperado, mas necessário.
(…)
O homem olhava para a massa amorfa que eram agora os dedos de suas mãos totalmente destruídos e lágrimas escorriam por sua face. Não era só a dor física que as fazia brotar era, sobretudo, a dor de saber que jamais voltaria a pintar um quadro novamente. Talvez sequer conseguisse ficar em pé outra vez.
A dor era tão completa e intensa que só percebeu que a fome também lhe corroía quando a porta se abriu e ele sentiu o aroma invadindo a cela de azulejos brancos e encardidos pelas centenas de manchas de sangue que os havia tingido nos últimos anos.
Só então se deu conta de que não comia desde que seu apartamento fora invadido pela polícia. Ele não sabia precisar quanto tempo havia se passado desde que tinha sido levado para aquele lugar que todos conheciam como “sucursal do inferno”, onde o ar cheirava a medo e morte e cujo apelido estava longe de expressar o verdadeiro terror que ali se via.
O homem que havia sido seu carrasco entrou trazendo uma grande panela. O prisioneiro observou o caldo espesso e fumegante guarnecido por grandes nacos de carne arroxeada ser despejado em um prato fundo que lhe foi servido em seguida.
O cheiro fez sua boca salivar e ele pode sentir o gosto ferroso do sangue que emanava abundantemente dos buracos em sua boca onde antes havia dentes.
Sentiu uma fisgada forte na costela quando estendeu o braço moído para pegar a refeição, uma das muitas fraturas que se espalhavam por seu corpo, e pôde ouvir o borborigmo do próprio estomago.
Após toda a brutalidade a que seu corpo havia sido submetido, aquele gesto parecia inacreditavelmente gentil. Ele sorveu o caldo com vontade, sem sequer sentir a dor que aquilo provocava e assim que terminou estendeu o prato implorando por mais.
A sopa foi novamente servida com generosidade. A carne que boiava em meio ao liquido gorduroso era dura e sem sabor, entretanto, a fome que o dominava tornava aquela refeição a mais saborosa que ele já havia provado em sua vida.
Quando se sentiu satisfeito, agradeceu acreditando que talvez aquilo fosse sinal de que tinham compreendido que ele nada sabia sobre planos terroristas e guerrilhas e que ele não passava de um artista plástico sem qualquer interesse por política.
Não negava que as revistas encontradas em sua casa eram suas, mas os livros não. Tinham sido de sua mãe, uma professora que sempre fora apaixonada por leitura e que havia morrido há muito tempo, deixando aqueles volumes que ele guardava como uma lembrança sem jamais imaginar que pudessem fazer mal a alguém.
– Nós não somos monstros, amigo – começou dizendo com a voz rouca pela falta de sono e excesso de cigarros, enquanto tirava o prato vazio das mãos do homem que voltava a tremer – Estamos aqui para fazer nosso trabalho, apenas isso. Não pensou que deixaríamos você morrer de fome, não é?
O pouco que restava do homem destruído permaneceu em silêncio.
– Imagino que agora que você foi alimentado, deve estar pronto para falar, certo? – perguntou com calma.
– Mas eu juro que não sei de nada – o prisioneiro choramingou ao sentir toda a esperança se despedaçar e continuou em meio aos soluços desesperados -, não tenho nada a ver com guerrilhas ou terroristas… eu nem gosto de política, não me envolvo… sou neutro… eu juro pela alma de minha mãe, aqueles livros não são nada, pode levá-los, pode queimá-los, faça o que quiser com eles, mas por favor, me deixe ir…
Ele respirou fundo antes de recomeçar, precisava manter o foco, aquela era sua última jogada e tinha que ser um xeque-mate.
– Quando estivemos na sua casa, percebi que você tem um belo casal de poodles, não é mesmo? – Questionou de forma retórica, articulando bem as palavras.
– Sim, meus pequeninos… Dino e Lola… – respondeu o prisioneiro se dando conta de que era possível sentir ainda mais medo.
– Pois bem, saiba você acabou de matar a sua fome comendo a carne do pobre Dino… se não quer que Lola seja servida no almoço de amanhã, é melhor começar a falar…
– Não, não… isso não é possível, nem vocês seriam capazes de tanta crueldade – o homem dizia balançando a cabeça com violência.
O agente então se levantou e foi até a porta, puxou para dentro da cela uma caixa de papelão de onde tirou a cabeça de um poodle, o pelo antes alvo era agora um emaranhado vermelho, e atirou-a aos pés do homem que, ao compreender o significado daquela visão horripilante, uivou em desespero agarrado ao que sobrara de seu cão antes de seu coração simplesmente parar.
(…)
Sua carreira jamais se recuperou do fracasso daquela noite. Após o incidente, passou a ser conhecido à boca miúda como “o moça”, o acara que não tivera culhões para fazer uma bicha falar.
Com o tempo, sem qualquer fundamento ou razão lógica, surgiram boatos de que ele tinha boicotado o interrogatório do importante líder dissidente a fim de proteger a identidade de uma militante com quem tivera um relacionamento amoroso e, por mais que não houvesse qualquer razão para que as pessoas acreditassem naquilo, o boato acabou por se tornar verdade.
Não demorou a que os colegas de farda começassem a evitá-lo temendo que a proximidade pudesse fazer com que seus próprios nomes acabassem assossiados àquela situação.
Ninguém queria ser associado àquele possível opositor e, por mais que ele se esforçasse, não conseguia convencer aqueles que o conheciam há tanto tempo de que sempre fora fiel à sua esposa e ao regime e que tinha ido até as últimas consequências para cumprir a missão que lhe fora confiada.
Quando, por fim, cansado de todo aquele falatório aventou a possibilidade de que o temido Coronel Ustra pudesse talvez estar enganado quanto ao envolvimento do prisioneiro com os terroristas, acabou sendo transferido sem qualquer explicação para um departamento burocrático esquecido em algum canto da periferia paulista.
Desde então passou a acordar durante a madrugada para conferir se as portas estavam bem trancadas, pegava-se olhando por cima do ombro o tempo todo e sentia como se algo ou alguém o acompanhasse por toda parte.
Não dormia. Não comia. Não vivia.
Certa noite, no final de 1973, quando ele caminhava para casa após mais um dia de serviço maçante, um Lincoln preto e lustroso estacionou ao seu lado, o vidro da porta traseira foi baixado e lá estavam os olhos escondidos atrás dos óculos escuros a observá-lo.
Reconheceu imediatamente aquele homem pacato e enigmático que dirigia o DOI-CODI com mãos de ferro e que mantinha a voz calma mesmo quando instruía os gorilas sobre os métodos mais eficientes de fazer os prisioneiros falar.
O homem fez sinal com a cabeça para que ele se aproximasse e imediatamente ele sentiu o pavor por ter sugerido que o coronel pudesse estar errado.
Sentindo o sangue gelar diante daquele sorriso tranquilo e dos olhos onipresentes, tentou se convencer de que não havia nada a temer, de que ele sequer devia saber sobre aquela conversa boba entre ele e os colegas e, para se acalmar, invocou a eterna romessa de que o cidadão de bem estaria sempre protegido.
Não lhe fariam nada de mau. Não havia qualquer motivo para tanto, disse ele a si mesmo e um pouco mais calmo aproximou-se do carro rezando para conseguir controlar a bexiga e não se mijar todo na frente do coronel.
(…)
O agente Alberto Mascarenhas, um dos mais graduados membros do DOI-CODI da capital paulista, foi dado como desaparecido no dia 3 de dezembro de 1973.
Os principais jornais noticiaram o possível sequestro informando que o crime ocorrera nas imediações da Avenida do Estado, quando o agente voltava para casa no inicio da noite.
Em entrevista exclusiva ao Jornal Nacional, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra esclareceu aos milhões de cidadãos que assistiam temerosos às noticias veiculadas pela mais confiável emissora de TV do país, que os indícios apurados até aquele momento apontavam como autores daquele crime bárbaro um conhecido grupo de guerrilheiros comunistas.
Afirmou, ainda, que o ato fora impetrado contra um de seus homens mais experientes em represália ao ressente desmantelamento de uma perigosa rede de militantes terroristas após a prisão de seu líder, um obscuro artista plástico que acabara por se suicidar nas dependências de 36º delegacia de polícia da capital.
Elogiou o trabalho que vinha sendo desenvolvido com eficácia pelo departamento no combate à ameaça vermelha que jamais deixava de rondar o país, comprometeu-se de forma categórica a não permitir que polícia e exército descansassem até que aquele crime que fora praticado não só contra o agente Mascarenhas, mas contra a própria instituição policial do Estado, fosse solucionado e os culpados encarcerados e submetidos aos rigores da lei e, por fim, reafirmou que a bandeira brasileira jamais seria vermelha.
O corpo do agente Alberto Mascarenhas, entretanto, nunca foi encontrado.
(…)
NOTA: Doutor Tibiriça (*) era o apelido pelo qual era conhecido o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI da capital paulista e conhecido torturador homenageado pelo recém-eleito presidente da República no momento da prolação de seu voto durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Infame, pusilânime, infrator terrível e escandalosamente necrófilo.