Ali, sentado no centro daquele terreno quase único de um subúrbio de uma grande cidade, ele finalmente sentia a tão sonhada paz, com um misto de orgulho de ter cumprido uma missão hercúlea e o prazer de ver o seu projeto pronto.
Entretanto, como todo bom jardineiro, ele sabia que um jardim sempre precisaria de cuidados. Eventualmente, uma ervinha brotaria, uma planta cresceria mais do que deveria e necessitaria de uma poda. Sem contar que teria de tentar encontrar uma hipótese para uma flor não dar o ar da graça. Definitivamente, um mal educado jogaria um saco de lixo e, como um protetor daquele lugar, caberia a ele resolver a situação.
Essas coisas o desmotivavam, por vezes. Ao contrário do que os vizinhos pensavam, ele também tinha seus dias ruins. Às vezes levantava pela manhã desejando que o jardim estivesse intacto e, se esse fosse o caso, apenas regaria uma ou duas plantas e pronto, trabalho cumprido. Como um biólogo, sabia que esse mini-desleixo não faria mal algum para o seu terreno. Apenas aumentaria o numero de tarefas para o dia seguinte. E até isso não seria um problema exatamente. Ele tinha todo o tempo do mundo.
Mas, todo dia, pontualmente às nove horas da manhã, contra a vontade de filhos e alguns médicos, Rui chegava ao jardim no qual trabalhava todos os dias, carregando em uma mão suas ferramentas de jardinagem e, na outra, sua bolsinha de necessidades. Parava apenas na hora do almoço, por causa do sol forte.
O jardim era mais seu lar do que sua própria casa, a qual ficava há uns trezentos metros de distância do terreno. Comprara por uns cento e vinte mil reais. Dois de seus filhos, ao saberem que Rui não construiria uma casa ali, entraram num estado de frisson. Cogitaram que o pai havia apresentado o primeiro sinal de insanidade. Sobrou para Vanessa, a filha mais nova e a favorita do biólogo (embora ele jamais falasse isso para não causar briga entre os irmãos) convencer Mário e Roberto do contrário.
Por conta de sua rotina extremamente atribulada, Vanessa não tinha muito tempo para ajudar Rui. Achava a imagem de seu pai, com todo o aparato de jardineiro, andando de um lado para o outro cuidando do terreno, solitária e assustadora demais. Digna de causar um aperto de culpa em seu coração. Por isso deixava e incentivava Sofia a ir para o jardim do avô.
Era difícil decidir quem se dava melhor nesse trato implícito. Ao contrário do que a maioria das pessoas poderia pensar, Sofia se divertia muito no jardim do avô. A garota não sabia descrever exatamente o que sentia e nem conseguia nomear aquilo, mas deveria ser algo parecido com a sensação dos beija-flores, que iam de flor em flor, numa velocidade rápida demais para os olhos castanho-verdes dela. Ou quando se anda de bicicleta numa velocidade maior do que a segura, mas não naquela que você perde o controle e caí, estabacando-se toda.
Embora o calor dominasse a região, o jardim era um reduto de frescor. Para Sofia, mesmo que não desse muito para correr, o suor parecia realmente refrescar o corpo. Não era nem nojento sentir as gotas brotarem na testa, enquanto seu vestido leve grudava nas costas. E no final, ainda poderia colocar os pés na mini-fonte que o avô construíra.
Geralmente, depois de ajudar a cuidar das flores, a garota tomava um suco bem gelado que seu avô fazia. Toda semana era uma fruta diferente, sempre tentando agradar a neta. E, no final das contas, ela sempre pegava um gole do suco de maracujá que seu Rui levava. Por Sofia, ele podia fazer apenas o amarelo, doce e azedo ao mesmo tempo.
A companhia da neta era ótima. Claro, normalmente, seu jardim era uma espécie de templo. O costume dele era, depois de terminar os fazeres, ligar a caixa de som, colocar músicas antigas (achava os ruídos modernos extremamente dolorosos ao seu ouvido, enquanto os temas eram algo que ele nem ligava tanto. Todo mundo gosta do “rabetão”, só não confessa). Então, armaria sua cadeira de praia, sentava e começava a ler seus livros.
Bom, na verdade, não eram os livros dele. Eram da falecida esposa, Paula. Como ela gostava daqueles livros filosóficos, das teorias orientais. Quantas vezes ela lhe explicou sobre taoísmo e como fazia total sentido o tal do bem dentro do mal e do mal dentro do bem? Tantas que ele se convenceu que estava certa.
E o jardim? Paula amava a natureza. Dizia que se não fosse os filhos, o arrastaria para uma cidade bem interiorana, compraria o terreno mais afastado possível, plantaria arvores e flores. Faria um laguinho, onde uns peixes viveriam. O casal sentaria na margem, colocariam os pés e aproveitariam a sensação da paz. Quem sabe, devido ao isolamento, poderiam viver mais soltos, sem essa coisa de se vestir. Liberdade total. Embora, Paula era extremamente friorenta. Talvez essa parte fosse apenas uma utopia exagerada.
No final, o jardim não era de Rui. Era biólogo, é bem verdade, mas o senhor achava a ideia de viver isolado da sociedade assustadoramente exagerada. Por ele, viveria num condomínio afastado, com umas flores na entrada e pronto.
De fato, o jardim era de Paula. Ela teria demorado muito menos para espalhar o tal dos filtros dos sonhos (mandalas) pelas árvores. Com certeza, convenceria os filhos a visitarem o jardim com mais freqüência. Provavelmente, os almoços de domingo seriam ali. A cada ano, aumentariam o tamanho da mesa, para caber todos os integrantes da família.
O final do dia se aproximava. Rui ergueu o rosto do livro e, mais uma vez, sentiu que sua missão estava cumprida. Mesmo que o jardim não fosse do jeito exato que Paula queria, era o mais próximo que dava para ficar. Provavelmente, ela diria:
– Só está faltando eu aqui, não acha?
Talvez fosse isso que motivava Rui a continuar a trabalhar no jardim. Um dia Paula aparecia de repente, com o jeito maroto e solto dela. Elogiaria o trabalho do esposo, o abraçaria. Pousaria a cabeça no ombro dele, como fazia todas as vezes que o abraçava. Depois que saísse do enlaço, faria um afago leve, quase uma cócega, na barba áspera dele.
O biólogo saiu do transe nostálgico para apreciar a neta. Sofia lia o livro que havia trazido de sua casa. No ritmo do sambinha de raiz que tocava, a garota balançava o pé, agitando a água da fonte. Os olhos castanho-verdes passavam lentamente pelas linhas do “O Ladrão de Raios”.
A nostalgia quase tornou-se realidade. Talvez fosse o vestido rosa com estampas floridas, ou o jeito de prender o cabelo negro, num coque bem desleixado e ironicamente arrumado. O jeito de ler o livro, saboreando cada palavra, imaginando cada cena como se estivesse lá.
Paula estava ali, do lado de Sofia, movimentando a água.
Sim, o trabalho do jardineiro terminou.
O corpo é a beleza, a forma, o mensurável, o moldável. A alma é a sensibilidade, os sentimentos, as ideias, as máscaras. O espírito é a essência, o imutável, o destino, a musa. E com esses elementos, junto com meu ego, analiso esse texto, humildemente. Não sou dono da verdade, apenas um leitor. Posso causar dor, posso causar alegria, como todo ser humano.
– Resumo: O jardineiro, que também era biólogo, não se importava tanto assim com o jardim. Mas sua falecida amada se importava. E, como queria estar próximo dela, mesmo separados pela morte, criou aquele viridário, desejo de quando ela ainda suspirava ao repousar a cabeça em seus ombros. Foi contra tudo e todos, mesmo não sendo tão bom ou cativante quanto ela. E em sua rotina, com dedicação ao amor, viu-se dividindo com sua neta os prazeres que apenas a natureza proporciona. Assim termina a história, com Paula em Sofia e Rui em paz.
– Corpo: Givago, já sabia disso, acredito que todos sabem, mas esse conto reforçou isso: você escreve muito bem. A narrativa é sólida e bem desenvolvida, ocorre naturalmente e sem grandes tropeços. O estilo simples é agradável, mas não impressiona. E talvez o intuito não seja deslumbrar o leitor, apenas oferecer uma bom texto. Você tem potencial para desenvolver um estilo mais complexo e notável, caso queira seguir profissão na área, talvez seja uma boa ideia deixar sua escrita sofrer uma mutação dessa natureza. Se for apenas um belo hobby, fazer o que o coração manda já basta.
– Alma: Uma história que transpira doçura. Até demais, no caso. Tudo gira ao redor de Rui, do jardim, de suas motivações, como sua família o enxerga, Paula e Sofia. Apesar da extensa narrativa para falar sobre tudo e todos, tudo se resume num único ponto, que é toda hora indicado por você: o amor de Rui por sua esposa e o que ele faz por ela mesmo depois da morte. A repetição dessa ideia acabou empobrecendo o conto, que dependia muito de como a premissa iria se desenrolar para se tornar algo realmente bom, já que, nesse caso, a originalidade do roteiro é quase nula. Talvez dividir o conto em atos, tendo a narrativa focada num personagem por vez e com o jardim como o centro de tudo, poderia enriquecer o texto. Imagine a visão de Roberto, depois da Vanessa, seguindo de Rui e finalizando com Sofia. Cada um com suas particularidades e personalidades. A certa incompreensão e distância do filho, o medo de filha em relação ao pai não superar a morte da mãe e ficar sofrendo, o amor de Rui e tudo o que ele faz pela falecida esposa e a nova paixão de Sofia: a natureza (daria uma narrativa muito fofa, hahaha). Enfim, é apenas uma sugestão, pois achei a narrativa focada apenas em Rui muito longa e com muitas repetições de ideias. Outro fator que me incomodou: o título me parece simplista demais e já vi nomeações suas que eram maravilhosas. Pode fazer melhor do que isso, também.
– Espírito: Há muito potencial na forma como você escreve. Fica apenas a dúvida: o que realmente deseja? Por que escreve? O que o motiva a ir adiante? Sei que, muitas vezes, a vocação age através do coração, mas também se manifesta na mente. Seria esse mais um chamado para a arte de criar mundos? Só você poderá responder isso. A essência do conto é muito bonita e impressionantemente humana. Com um pouco mais de exploração e desenvolvimento, poderá aproveitar todos os personagens e situações, dando vida ao texto. Você tem os meus parabéns, pela escrita sensível e potencial de escrever maravilhas!
– Conceito: Ouro!
Olá, Fabio!
Tudo bem?
Primeiramente gostaria de agradecer os seus comentários não só no meu texto, mas nos outros contos, crônicas e sonetos que apareceram por aí. Acho que, num mundo ideal, se mais pessoas participassem com apontamentos e sugestões, a escrita de todos melhoraria muito.
Bom, você sugeriu algo que nem passou pela minha cabeça: mostrar os pontos de vistas de outros personagens. Talvez eu consiga adicionar isso numa versão 2.0
Quanto ao questionamento que o senhor colocou em “Espírito”, ele sempre retorna para “me assombrar”. Tanto que uma vez o Gustavo me questionou algo bem parecido. Talvez me falte a vontade de me debruçar numa narrativa e puxar ali e acolá, até ficar esteticamente belo. Aos poucos eu vou adquirindo o hábito de dedicar mais tempo a isso, tentando encontrar o equilíbrio entre o singelo e o “concreto”.
A verdade é que muito me agrada o lado singelo.
PS: Uma vez eu escrevi um pensamento sobre o motivo de escrever. O meu motivo é tocar o leitor, seja por ter vivenciado algo que escrevi, seja por pura empatia.
E também para dar uma vazão à minha imaginação fértil
Acredite, isso assombra todos, hahahaha. Há pouco tempo estava numa fase de estagnação, sem escrever e apenas vivendo a rotina. Mas agora estou nesse agonia, de me descobrir e desenvolver minha harmonia na escrita. Estamos juntos nesse barco!