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Detox Literário.

O Ateu – Clássico (Rachel de Queiroz)

Era uma vez, já faz muito tempo, havia um homem que era ateu. Naquele pequeno povoado onde morava não existia nenhum outro ateu igual a ele, de forma que o coitado vivia em grande isolamento. Mas era orgulhoso e não se queixava, mesmo quando se sentia mais solitário, por exemplo nos dias de domingo em que todo o povo da terra ia ouvir missa e ele ficava vagando entre as árvores da praça; ou na véspera de Natal, quando as pessoas só se preocupavam com o Presépio e com a Missa do Galo. Tocavam os foguetes, os sinos repicavam, todo o mundo se alegrava e ia cear, mas o ateu declinava os convites que lhe faziam: não tendo rezado não se achava com direito à ceia, pois ele com ser ateu não deixava de ser honesto; trancava-se em casa e ficava de vela acesa, lendo um dos seus livros de ateísmo. E, se alguma das pessoas vindas de longe para assistir às festas naquele povoado, estranhava a silhueta do homem solitário a ler junto à fresca da janela e perguntava por que não estava ele na missa ou na ceia, o povo da terra explicava:

– Ele não pode, coitado. É o nosso ateu.

No mais, o ateu vivia como os outros. Trabalhava no seu ofício, plantava couve e orégano no quintal, criava dois cachorros perdigueiros e, à boca da noite, tomava parte na roda dos conterrâneos que conversavam sentados nos degraus do chafariz. E quando a conversa tocava em assunto de religião sempre havia uma observar:

– Você, que é ateu…

Mas, então chegou um ano em que o nosso ateu, por diversas razões, parece que deu para se sentir ainda mais só. Esqueci de contar que ele era solteiro. Embora a cidade alimentasse um certo orgulho em possuir aquela singularidade – um ateu público-, as moças não sentiam coragem de casar com um homem assim marcado e que, mal expirasse, iria decretado para o inferno. Veio uma peste canina e matou os dois cachorros perdigueiros; pareceia castigo para mais agravar a solidão do pobre ateu. E os livros dele, de tão lidos e relidos, já não lhe contavam mais nada. De dia, o trabalho ajudava a fazer companhia; e de tarde tinha os amigos. Mas nessas eras antigas os homens eram muito religiosos e grande parte do tempo levavam na igreja: de manhã era a missa, de tarde o terço, de noite a novena e, a qualquer pequena festa, as procissões. E nessas horas numerosas em que toda a gente se metia na igreja, o ateu saía de casa, sentava à sombra do cruzeiro, sentia o cheiro bom do incenso queimando nos turíbulos, e lhe dava uma certa vontade de entrar, de ver o dourado nas vestes dos santos, e escutar o belo latim do padre. Mas continha-se; que diria o povo se o visse lá dentro?

Outras ocasiões de inveja tinha-as nos dias de procissão, quando todos os seus amigos vestiam uma opa de seda colorida e iam carregar o andor, as varas do pálio ou os tocheiros acesos, e ele ficava nas esquinas, as mãos penduradas dos cotovelos, na sua roupa velha do diário. Então voltava a trabalhar, embora fosse dia de festa, e ninguém se escandalizava com isso pois todos compreendiam a sua condição de ateu, embora lhe lamentassem a desventura.

E foi aí, na altura do fim desse ano, apareceu uma moça – por sinal sobrinha do padre – que se apaixonou pelo ateu. Como começou ninguém sabe, mas o amor tem disso: vai passando uma moça pela rua, vê um homem que toda a vida viu, e de repente sente um baque no peito e está amando aquele homem. Ele a princípio ficou apenas enternecido ante os olhos que ela lhe puna, toão doces e amigos; mas depois, descobrindo-se amado – ele, a quem ninguém amava-, começou a amá-la também.

E todas as pessoas do lugarejo lamentavam os namorados, sabendo que podiam pensar em casamento, queo padre não iria entregar a sua ovelhinha inocente às mãos de um ateu confesso.

Assim chegou o Natal e foi arumando o Presépio ecomeçou a romaria dos visitantes que iam beijar o pé do Menino. E a namorado do ateu deu de teimar que ela a acompanhasse nessa visita obrigatória. Ele dizia que não e só com muito custo consentiria em entrar na sala e ficar a um canto,
enquanto ela fizesse a sua devoção. Mas assim a rapariga não aceitava:

– Que é que custa um beijo? Você não me beija? Ele sorria:

– Mas você é gente, é de carne e eu lhe quero bem. O Menino, como vocês chamam, é um bonequinho de louça.

A moça argumentou que de louça também era a xícara que ele levava aos lábios e não lhe fazia mal nenhum. Ele então alegou o seu amor-próprio. Afinal era o ateu dali, o único. A moça nesse ponto começou a chorar, a dizer que se ele tinha mais amor-próprio do que amor a ela estava tudo acabado. O ateu se assustou com a ameaça e consentiu, embora constrangido. Acompanhou à moça triunfante; entrou na fila atrás dela, enfrentou os olhares de espanto. De um em um, os devotos paravam diante da manjedoura, dobravam o joelho, rezavam uma jaculatória e beijavam o pé do Menino. Chegou a vez da namorada que, feita a sua reverência e dado o beijo, virou-se e sorriu para o seu bom ateu, a fim de o animar. Ele correu o olhar em torno e viu em todos o mesmo ar de animação e esperança. Resolveu-se: dobrou o joelho áspero, curvou a cabeça sobre os pezinhos do santo. E sentiu debaixo dos lábios, não o frio da porcelana, mas o calor da carne, o movimento, a pulsação da carne. Ergueu os olhos assombrado. Encarou o Menino e viu que Ele lhe sorria radioso, e dos olhos lhe saía uma luz que jamais olhos de louça teriam.

Dizem que o ateu caiu no chão, com os braços em cruz, chorando e adorando. E naquela noite de Natal acabou-se o único ateu do povoado.

Mas dizem também que ele não se casou com a namorada. Não podia, pois largou tudo e foi ser frade.

…………………………………..

Publicado em 1964 no livro O brasileiro perplexo

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3 comentários em “O Ateu – Clássico (Rachel de Queiroz)

  1. Ana Rosa
    21 de janeiro de 2019

    Ora, o ateu então se converte por amor. Será? O comportamento dele diante da sociedade, no começo do texto, é de claro isolamento. Ele age não, como está escrito, por conta dos seus ideais. Mas sim seus ideais surgem como justificativa para suas ações. Ele é um ser incapaz de conviver socialmente, tímido, com medo. E acha no ateísmo uma escapatória louvável.

    E assim, surge uma ponte. Uma bela, formosa, ponte. A menina. Ela o leva para a religião. Mas não por amor a ela, simplesmente. Apesar dela precisar convencê-lo, não é porque ele não quer. É pelo medo. Ele foi isso a vida toda, saberá não sê-lo?

    Ele segue adiante, beija a figura sagrada e sente algo nunca sentido antes: aceitação alheia. Se apaixona tão profundamente por esse sentimento que se torna frade. Não há nada de místico no texto.

    Agora, adentrando em um campo levemente mais profundo:

    Por quê Deus é um cara lá em cima? Por que alguém sente algo por estátuas que imitam humanos?

    Idolatramos, o tempo todo nossa própria imagem, ao invés de adorar à Natureza. O que nos deu a vida não foi nem Deus como o conhecemos nem o caos como os pequenos ateus tanto reiteram. Foi a Natureza em sua majestosa e ordenada perplexidade.

    Há maravilhas nas leis da física que ainda não nos vieram à consciência ainda. Mas, querendo ou não (e a ciência não é democrática nisso), houve um Big Bang. Zilhões de trocentas partículas surgiram a partir de algo, que não se sabe o que é.

    A partir disso, elas colidiram loucamente, formando partículas cada vez maiores. Tudo isso, lembrando, seguindo as leis da física. E assim foram criados átomos, asteroides, planetas, sóis, sistemas solares, galáxias e, claro, o próprio ser humano. Somos átomos. E átomos são prótons, elétrons e vácuo. Prótons são mésons. Elétrons são luz (a grosso modo). Vácuo é matéria escura. Ou seja, somos parte de um todo. Nós somos Deus, porque nós nos criamos. E também este computador, o qual utilizo para escrever, é Deus. Porque antes dos átomos dele estarem aqui, estavam em diversos outros lugares e talvez um deles fizesse parte de algum ser considerado vivo. Deus não é onisciente, onipresente e onipotente porque ele é um cara lá em cima que manda em tudo. Deus é literalmente tudo.

  2. Eduardo Selga
    15 de janeiro de 2019

    Certamente muitos leitores desse conto já de depararam com a situação de menosprezar alguma narrativa por não expressar o que supomos ser a realidade ou o que pode ser considerado válido como tal, ainda que se trate da chamada literatura fantástica, essa narrativa que quebra muito mais parâmetros formais que de representação de conteúdo. Noutras palavras, um conto ou romance é bom se ele espelha de algum modo o nosso Narciso interior.

    Rachel de Queiroz, nesse sentido, trabalha o texto de um modo bastante agradável: ao representar esteticamente a força transformadora do amor, um preceito do Romantismo, e da inevitabilidade da força do que chamamos Deus, ela acaricia o senso comum, que organiza em seu imaginário um mundo de modo absurdamente simples.

    É uma estratégia narrativa falar o simples de modo coloquial. Quando feito com maestria, é exatamente aí que se encontra a sofisticação de textos assim. Faz parte dessa estratégia, no conto, expressões como “era uma vez” e o truque de construir um narrador que se esquece de algum detalhe, imitando a narrativa oral (“[…] por diversas razões, parece que deu para se sentir ainda mais só. Esqueci de contar que ele era solteiro”).

    Se o indivíduo ateu descrê em Deus, ele também é insensível à percepção do simbólico que envolve o divino, é o que muitos acham. Seria por isso, então, que para o protagonista o Menino Jesus do presépio não passa de “um bonequinho de louça”. Seria uma espécie de insuficiência cognitiva, os mais devotos supõem. No entanto, no conto, a situação é outra: ele enxerga bem o simbolismo presente na imagem, mas o rejeita. Nesse sentido “bonequinho de louça” é a saída retórica encontrada pelo personagem para negar a relação metafórica entre a escultura e a divindade.

    O personagem não só não é um insensível como se comporta como um esteta, ou seja, o indivíduo que empresta à estética artística vieses sublimes, e mesmo divinos. Por isso ele ao sentir “o cheiro bom do incenso queimando nos turíbulos” sentia vontade de adentrar a igreja, para “ver o dourado nas vestes dos santos, e escutar o belo latim do padre”. Não se trata da erupção de uma religiosidade reprimida, ou o chamado de Deus: é o gosto pelo belo.

    O conto é uma celebração à tolerância, atributo cada vez mais raro hoje em dia. Ou melhor: à aceitação do outro tal como ele é, o que é diferente de tolerância, pois o termo pressupõe uma convivência forçada pelas normas sociais. O protagonista, que não é identificado por um nome próprio, e sim por um adjetivo, é tratado como “o nosso ateu”. E não é ironia ou menosprezo, pois em dias de Natal ele é sinceramente convidado para alguma ceia, às quais recusa. É um carinho pelo diferente, ao invés da tentativa de enxotá-lo da convivência social. É o oposto do que nos sopra aos ouvidos certos fantasmas do contemporâneo.

    No conto, o ateísmo acende o amor carnal (a atração entre os personagens) , que leva ao teísmo (crença em Deus), que resulta em abandono do amor carnal. Se encararmos esses elementos como pertencentes a uma ciranda, o próximo item, se o conto não tivesse se encerrado, seria o retorno ao ateísmo.

    Ainda mantendo essa ideia de ciranda, ateísmo e amor carnal pertencem a um mesmo campo discursivo, ao passo que o teísmo e o abandono do amor carnal formam outro campo, distinto. Pois bem. Qual e divisa entre eles? O amor carnal leva ao teísmo (a crença em Deus). Não parece anacrônico?

    Só parece. Quando o protagonista beija os pés da imagem e sente “o calor da carne, o movimento, a pulsação da carne” é a demonstração de que o físico e o metafísico caminham juntos, de mãos dadas, como numa ciranda.

    Agora, uma pequena provocação a quem supõe uma literatura purista: trata-se de um conto que trabalha a iconografia e a simbologia católicas, isso é evidente. Representa, portanto, e na medida em que o ateu se converte e exerce a função de frade, certa maneira de ver o mundo. Não poderíamos chamar a isso de literatura panfletária, porquanto não deixa de ser uma defesa ideológica?

  3. Givago Domingues Thimoti
    15 de janeiro de 2019

    Achei a escrita da Rachel gostosa demais! Baita exemplo de conto!

E Então? O que achou?

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Publicado às 15 de janeiro de 2019 por em Clássicos e marcado .
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