Da primeira vez que deram Ravi, foi para uma família ali, da periferia mesmo. A casa grande, o quintal nem tanto, mas com casinha de cachorro, vazia. Queimaram suas roupas, rasparam-lhe os cabelos. Os piolhos andavam circulando no cais, não em sua cabeça, argumentou, as duas mãos grudadas à cabeleira que Deus lhe deu. Não houve negociação. Os cachos caíram, as lágrimas não, que não ia chorar na frente daquela mulher de risinho de lado.
À noite, a sopa de peixe, o que não era de todo mau, e o dedo em riste, apontando o local onde deveria dormir, com um cobertor de campanha. A casinha de cachorro já não estava vazia.
No dia seguinte, fugiu. Assim como escapou em todas as outras cinco vezes em que foi parar nas casas das pessoas que podiam oferecer um futuro melhor a uma criança, como dizia a mãe.
Não queria nada disso de futuro melhor. Sim, queria. Desde que fosse ao lado da mãe e das irmãs, todas elas: a Japonesa, a Negra, a Loira, a Ruiva. Todas filhas de pais diferentes, mas da mesma mãe. Meia-irmãs, como corrigira uma daquelas madames adotantes de periferia. Queria estar com a família. Isso é o que queria. Queria isso. E queria mais.
Queria ser menino.
Sempre foi assim, desde pequena, Ravi sonhava com coisas de menino. Não que gostasse de meninas daquele jeito que os rapazes gostam. Não. Jamais teria interesse em beijá-las, ou em colocar as mãos lá embaixo, do jeito que os marinheiros faziam. Não era isso. É que intuíra, desde sempre, que ser homem, naquele seu mundo de suor e luta, tinha lá suas vantagens. E não eram poucas.
Homens podiam ficar até tarde vadiando em mesas de barril, bebendo, e rindo, e jogando truco a dinheiro. Não precisavam abrir as pernas para ganhar alguns trocados. Não. Se queriam trocados extras, carregavam uma carga aqui, lavavam um convés de Navio estrangeiro ali, iam para o alto-mar e pronto, negócio feito. De mais a mais, as mães não costumavam dar um filho homem para outras famílias. Filhos homens eram mais úteis, e não se prestavam a ser filhas de criação, que, no fim das contas, era o nome que se dava às empregadas sem salário das madames de meia-pataca.
Então, Ravi, desde muito cedo, aprendeu a cuspir de lado, e a mascar fumo, sonhando em ter aqueles braços gordos dos homens, com tatuagens azuis de âncoras e caveiras. Depois de perder as madeixas, manteve os cabelos curtos, e negava-se a vestir saia, e, bem mais tarde, sutiã.
Era livre. E, para seu alívio, quase não tinha os peitos, não era como a Ruiva, que arrebatava filas, guardando dinheiro entre sua fartura. Jamais seria uma escrava como as irmãs que, poupadas da adoção benevolente das senhoras da burguesia, ganhavam a vida de fazer favores aos marujos, como aprenderam observando a mãe desde sempre.
Odiava ser mulher. Naquele mundo, ninguém prestava atenção nelas. Prestava, mas só para as coisas do sexo e da cozinha. No mais, não participavam das decisões, das lutas, das coisas sérias de políticas e sabe-se lá mais o que, que cabia só aos homens. Só a eles as horas de lazer, a autoridade para escolher o que sim e o que não em suas vidas. O prazer do mar aberto jamais seria para mulheres, com seus enjoos, e frescuras e ideias de mulheres. Homens não engravidavam. E, ainda tinha aquilo. Aquilo que teria facilitado em muito a vida da mãe e das irmãs. Aquilo que fazia um homem, um de verdade, se impor perante tudo e todos. As armas.
Por ali, todos tinham uma. Os homens do mar traziam pistolas, garruchas, automáticas, grandes, pequenas, velhas, até de chumbinho havia. Um deles, o Alemão, exibia o que dizia ser uma Luger-P08, da Marinha de seu país, uma raridade.
Ser homem, por ali, significava portar uma arma. Só por segurança, diziam. Ninguém quer usar sua pistola, é o que repetiam. Mas queriam. E seus dedos coçavam a cada vez que o adversário de jogo gritava e batia na mesa. Truco. E suas pólvoras cantavam a cada vez que um lhes olhasse atravessado. Truco, papudo.
Ravi assistia a tudo, prestando pequenos serviços: carregava barris de chope, servia pinga sem dar chorinho. As armas em cima da mesa eram só para mostrar quem é que mandava no cais do porto de São Luiz, E ela ria junto aos tentos dos marujos, a língua dançando para fazer sinais do falseio, e, nessas horas, quase se esquecia de quem era. Mulher. E eles também. Não fosse os mais antigos, os que a conheciam dos velhos tempos de menina cabeluda, todos veriam o que os demais enxergavam nela, um rapaz franzino, imberbe e meio efeminado, para quem deixavam uns trocados que mal dava para o pão.
Assim era. As irmãs passavam faceiras, o olho cumprido sondando as mesas, sentavam no colo de um, passavam as mãos no rosto de Ravi. Com esse eu me casava, brincavam sem desfazer a farsa, enquanto a Ruiva, barriga de menino em tempo de estourar, sonhava com o príncipe que um dia a tiraria daquela vida, e ela, a caçula, com o dia em que, com sua arma em punho, finalmente seria, mesmo se de saia, respeitada como os homens.
Naquela noite, porém, algo estava diferente. A tempestade balançava os barcos ancorados, o bar vazio só tinha uma mesa ocupada. Nela, já bem alto, o Alemão, com uns olhos de mar que eram os únicos capazes de mexer com ela de um jeito estranho.
Senta? Fez que não. Joga? Não dizia nada. Ravi estava desconcertada. Não. Estava em serviço. E arriscou um sorriso, pegando o copo vazio sobre a mesa. E, foi nesse instante que a viu. Fração de minuto que, se pudesse, apagaria de sua vida, que, se pudesse, faria voltar no tempo só para fazer tudo de novo, só que diferente, mas não dava. Isso de voltar no tempo era fantasia de menina. E agora, naquele minuto, a P08 a encarava, chamando-a para o combate.
E jogou.
Uma rodada. Uma só, apostando a pistola, ou, um segredo que o gringo contaria depois, caso ele ganhasse. Desconfiada, levantou-se a fim de dar meia volta. Mas a mão do moço a segurou, e, com ela, uma coisa quente e desconhecida, amoleceu suas pernas, fazendo-a sentar constrangida.
Apostaram. E jogaram. Não uma como combinado, mas a nega, e, depois, a melhor de três. A revanche. Agora, ela também entornava martelinhos de cachaça, a vista embaralhando e a camisa com um botão aberto.
Perdeu todas. A primeira, a segunda, a desforra, a de quatro. E caminhou com o vencedor até o bequinho, já desconfiando do pedido do Alemão. Passou a mão na faquinha de serra sobre a mesa. E, ele, com um gesto automático, guardou a pistola na calça, bem ali, avolumando o local onde os homens exibiam os seus orgulhos.
Já no beco, o campeão, por algum motivo, já não mexia com sua natureza. E foi ali, que descobriu que não só às mulheres se pede para que se abram as pernas. Passou a mão na faca, e a faca, no braço do homem, embora percebesse que já não precisava. Ele desvendara o seu segredo. E ela, o dele.
E correu.
Sem olhar para trás, disparou abraçando forte a coisa, o símbolo de sua coragem.
A arma do Alemão agora era sua.
Amanhecia quando caiu exausta e de joelhos, sacudida pelo tremor da adrenalina. Ali estava segura. Ali, sempre fora quem quisera ser, mocinho, bandido, herói, e, naquele instante, criança, heroína defendendo as irmãs dos temores da vida.
Subiu na bobina de madeira que funcionava como mesa. Era a dona do mundo, a dona de São Luiz. Mirou no balde, as roupas de molho, podia transformar a lata em peneira. Queria dar um tiro, um só.
Recuou. Não queria chamar atenção. Apontou para cima, agora vamos ver quem é que manda, ensaiava. Mãos para o alto, falava grosso, e guardava a pistola no coldre, sua calça, como via os demais fazerem. Queria ver, agora, marujo embriagado cantar de galo em seu portão, exigindo a presença das irmãs. Queria ver homem levantar a mão e encostar o dedo em uma delas. Enfiaria o cano em seus narizes até tocar o osso da testa. Não queria confusão, eles que dessem meia volta. Queria ver eles se borrarem.
Mirou o grampo de roupa no varal. Precisava aprender a manejar, treinar a mira. Um tiro só. Só um e esconderia a Luger em um local só dela. A mão tremia, segurou o braço como via em filmes de policial, o olho mirando na mola do grampo. Um tiro só. O gatilho na ponta do dedo. Gelado.
Disparou.
O estampido surdo ecoou na madrugada e por pouco não caiu da mesa. Não esperava o coice, o cheiro de pólvora, a fumaça. O calor fez com que derrubasse a arma e, o segundo tiro, saiu sozinho, disparado em direção a um bando de pombas que ciscava por ali. Partiram em revoada. Por sorte não ferira nenhum daqueles ratos com asas destinados a viver à margem, tão ratos quanto ela, só que com asas.
De dentro de casa, de repente, pôde ouvir o choro. O bebê da Ruiva, menino, o primeiro da família, já chegou com os modos dos homens, sem se fazer anunciar.
Abaixou-se para apanhar a pistola. Quem sabe a sorte mudava. Pena a mãe não estar mais por ali para ver.
Já com o menino no colo, a arma agora era brinquedo de engrenagens e maravilhas para montar e desmontar. Juntos, eram mocinho e bandido. Ela cavalinho, ele, vaqueiro. E Ravi encantava-se com aquelas meiguices de coisas da mãe que jamais seria. Mas tia, sim. E assumiu a responsabilidade de cuidar do menino enquanto a Ruiva, já longe do cais, pilotava o fogão em tempo integral no restaurante popular da prefeitura.
Com o menino a seu lado, o revólver, agora, tomava outros ares. Entendia os homens e sua necessidade fremente de se impor diante dos outros, em uma pirâmide de poder na qual eram a base, também eles eram ratos, e pombos famintos a caça da sobrevivência. Entendia as irmãs, a mãe, o motivo de, ela mesma, ter ido parar tantas vezes nos lares daquelas gentes desconhecidas. O mundo era guerra, ouvira de um bêbado que se dizia desertor do exército americano. E era. Guerra.
Não mais.
Não para o seu menino.
Esquecida no fundo da lata de arroz, a munição adormecia na garantia da hora que, por infelicidade, pudesse ser requisitada como defesa. E como esse dia não chegasse, para tia e sobrinho, a cozinha era escola, local para contar histórias do tempo em que Ravi fora doada pela avó para essa ou aquela madame. Como a de quando uma dessas mães de mentirinha, vestindo a criança com sainhas, meteu-lhe uma peruca nos cabelos que se insistiam curtos, e levou-a para um passeio em barco de turismo. Nesse dia, a peruca virou chapéu de capitão, inventava, e lá vira sereias e navios fantasmas com piratas que abatiam tubarões. Tudo era desculpa para o brinquedo. E o pequeno, agora caçador de tesouros, empunhava sua garrucha sem balas em direção à prisioneira.
O que é aquilo? Perguntara ao ver os projéteis no fundo da lata de arroz catado. Sujeiras, respondera, fechando a tampa em um pulo.
E, assim como o acaso também influi no efeito de caos, após o leve bater de asas no outro lado do planeta, naquele instante, no portão de casa, a campainha soou. E, correndo para atender, Ravi não estava lá no momento em que o menino, trepando no banquinho, alcançou a lata. Assim como jamais soube que ele a imitava, no momento em que ela, já na porta da cozinha, escutou o estampido seco que fazia recordar o dia da revoada de pombos. Naquele instante, porém, Ravi teve apenas uma certeza, a de que o sobrinho não era um rato de asas.
E não pôde ver o momento em que ele voou.
Olá!
Tudo bem?
Esse é um daqueles contos que dão um nó na garganta. É denso, com parágrafos longos, porém, muito bem trabalhados, com ótimas construções frasais. O desfecho da narrativa é trágico e um tanto surpreendente.
Achei bastante interessante a construção da personagem Ravi num espaço tipicamente masculino. Para mim, a moça é uma das melhores personagens desta Copa Entrecontos.
Enfim, é um bom conto com alguns entraves na leitura, porém, tais problemas na fluidez do conto não prejudica tanto o resultado final!
Parabéns!
Comentário-Rodada5-(“O que fica”x”Ratos sem asas”)
“Ratos sem asas”
Ravi é uma menina que não queria viver como menina, e cresceu buscando acesso as coisas de homens, principalmente uma arma. Quando cresce cuida de um sobrinho seu que tem um acidente fatal com a munição de sua antiga arma.
Ravi é uma personagem interessante e bem construída. Tem um desejo de entrar no “mundo dos homens” e ter uma arma para ter poder. Confesso que o desfecho me soou, não apenas trágico, mas misterioso demais. Não acho que entendi exatamente o que você queria passar com o conto, mas gostei mais da história do que a do seu adversário nesse confronto. Então meu voto vai para você.
RESUMO: Ravi é uma menina que vem de uma família desestruturada e já passou por muitos lares, jogada aqui e ali. Questiona as diferenças entre homens e mulheres e conclui que grande parte do poder masculino reside na posse,de armas. O destino quis que,Ravi conquistasse seu objeto de desejo, mas a inocência do sobrinho transformou brinquedo em fatalidade.
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O conto vale por um romance inteiro tal a riqueza de camadas na sua narrativa. Temos aqui uma protagonista de peso, carismática, que carrega doçura, tristeza e drama. Quando tudo parece melhorar e se encaixar, Ravi encontra a morte. ( aqui fiquei na dúvida se foi Ravi atingida,pela bala ou se foi a crianca)
Texto muito bem escrito com boa ambientação e ritmo preciso que nos faz querer avançar na leitura. O autor, talvez leitora, revela grande habilidade com as palavras e com a construção de imagens significativas. Parabéns!
Olá, Ítalo Calvino, você me traz a história de Ravi, a menina que sonhava em ser um garoto. Não para fazer como os homens costumam fazer com as mulheres, mas, muito além disto, para ser respeitada. E ela, a pobre Ravi, após adoções, abandonos e novas adoções, sobrevivia com as irmãs pelo cais de um tal porto de São Luiz. E nele em uma noite de bar, ela é vencida em um desafio pelo Alemão. O terrível da história é que, como prenda, ele a quer como mulher. Ela, aproveitando-se das bebidas tomadas por ele, toma-lhe a arma, a pistola Luger famosa, e aí se sente então a poderosa. Ravi, a dona do mundo. Agora, forte assim, ela poderia defender as irmãs. Nesse ínterim, o filho da Ruiva, uma das suas irmãs nasce e é “ele” quem cuida da criança. Ela cresce até que um dia descobre o brinquedo arrancado do Alemão e nesse momento o acidente acontece…
Uma história contada com competência, Ítalo. Você sabe narrar bem. Agora, preciso lhe contar que fiquei com a impressão de que você precisou cortar na sua história e aí, tal a faca de serra que Ravi havia apanhado sobre a mesa naquele momento do final do desafio, pode ter cortado alguma carne. Sim, em alguns momentos senti que a história estava pedindo maior desenvolvimento. Como se ela fora maior do que o formato permitido pelo desafio. Bem, mas isto é um mero achismo meu. De repente, nada disto aconteceu e o conto é este mesmo. Resumindo, meu amigo Ítalo Calvino, um conto bem contado com um tema que sempre dá boas histórias: o abandono de crianças e a sua criação e desenvolvimento em meio a ambientes sórdidos. Você demonstrou-me competência nisto. Valeu bastante.
A história tem como personagem principal Ravi, que constrói toda a narrativa, o desenrolar, momentos de tensão, clímax e desfecho. Ravi é uma menina que cresce revoltada com sua condição e com o meio em que vive e, descobrindo uma maneira de se sentir, de certa forma, “vingada”, ela acaba por dar condições para que uma tragédia ocorra.
A história, escritor, é linda. Sua escrita é surpreendente em quaisquer sentidos que o adjetivo se aplique. Mesmo com a aproximação do desfecho, o desenrolar da relação entre Ravi e o sobrinho é tão puro, de uma maneira muito característica, que é até imaginável acontecer algo que envolva a arma (já que do meio para o final, ela vira um elemento de peso na narrativa), mas me chocou, talvez até fisicamente, o final da história.
A inconformidade dela com o seu papel naquele meio é palpável, real e dolorosa. O final é excepcionalmente triste. O uso da metáfora do voo dói.
E eu acredito que um bom texto atinge o físico, as emoções. Seu texto está muito acima disso. Definitivamente meu favorito.
Parabéns!
Ravi é uma menina que passa por diversas famílias, doada pela mãe solteira com mais quatro filhas, mas sempre foge e volta para casa. Ela quer ser menino, no sentido de ter poder e liberdade. Mais mocinha, ao ser agredida sexualmente por um marinheiro, que a julgava um rapaz, ela se defende e acaba por levar-lhe a arma — aquela dos seus sonhos.
Nasce o bebê de uma das irmãs, a mãe morrera e Ravi cuida do menino, ama-o e diverte-se com ele. Nas brincadeiras, usa o revólver, sem a munição; tudo guardado na lata de arroz. Ravi vai atender a porta, o garoto pega o revólver, atira e morre.
Uma pesquisa científica mostrou “que quando os humanos modificam habitats, espécies únicas são consistentemente perdidas e substituídas por outras encontradas em todos os lugares, como pombos em cidades e ratos em áreas agrícolas“. Em 1980, Woody Allen consolidou a má fama dos pombos no filme Memórias. Nele, os pombos são chamados depreciativamente de “ratos com asas”. O termo, na verdade, apareceu pela primeira vez em 1966, no New York Times. Os pombos seriam mesmo “ratos” que voam? E, ao inverso, os ratos seriam pombos sem asas. Ambos são vistos como uma peste, fonte de doenças, mas também como fortes, adaptáveis e bastante úteis à sociedade.
A palavra rato está diretamente relacionado a palavra “roubo”. De outro lado é símbolo da organização e do escrutínio: a análise das lições da vida, a timidez, o silêncio, a compreensão dos detalhes, a percepção de significados duplos nas coisas, o sigilo, a descoberta e a capacidade de ser invisível, seguindo seu objetivo e realizando seu propósito com muita atenção. Isso fará com que se aproximem das tarefas mais mundanas e simples, com dificuldade. Em uma casa de rato, tudo deve estar em ordem. Ravi e o sobrinho eram ratos? Ravi ia sempre sobrevivendo aos contratempos, o menino bateu asas. O menino e Ravi são marginalizados, não têm muita imaginação.
Penso que, nesse texto, o discurso se serviu de metáforas, palavras ramificadas que adentram por labirintos e inserem o leitor num quebra-cabeça e realmente lembra o procedimento de escritura de Calvino como sendo uma “estratégia do olhar”. E é essa estratégia que propicia ao leitor descortinar cada nó proposto, cada mundo microscópico oculto, necessário aos que buscam a percepção desse mundo que se forma nos interstícios, fora do alcance dos olhos comuns que só conseguem enxergar a aparência, o que está na superfície das coisas em uma alusão insistente à contradição, à dualidade do espírito humano.
Intuitivamente somos destinados à ordem e ao caos simultaneamente, e “Ratos Sem Asas“ refletem o paradoxo do poder X armas, uma narrativa que aparece entrelaçada entre o real e o imaginário, resultado de uma visão irônica sobre o momento político atual, talvez, até em tom de elegante campanha #não-armamento da população: ter uma arma em casa aumenta o risco de acidentes fatais, traz morte.
Teceu-se uma inteligente rede de analogias decorrentes da capacidade de simbolização. As construções estrutural e frasal, em parágrafos e frases curtas e reiterativos trazem um ritmo ágil e agradável à leitura. Escrita competente, texto bem planejado, plurissignificativo, cheio de emoção, apesar de alguns exageros na dramaticidade, sobretudo no prólogo.
Parabéns pelo trabalho. Abraço.
Resumo: garota inconformada com seu destino por ser mulher faz de tudo para se igualar aos homens, inclusive no porte de uma arma. Ao final, tendo deixado o revólver ao alcance de seu sobrinho, ouve o estampido do tiro: o menino acabara sem querer com a própria vida.
Impressões: um conto bem montado, com uma personagem cativante. O início me enganou: achei que era um cachorro, rss Mas logo percebi o erro e me deixei envolver por Ravi e por seu mundo, um mundo em que seu destino já está inexoravelmente traçado. O conto ganha emoção no momento em que ela “ganha” a arma do marujo alemão. Com o revólver, sente-se segura, apta a fazer justiça, a proteger suas irmãs. Veio o bebê, logo um menino. E nesse ponto já dá para perceber como o conto irá terminar. Creio ser esse telegrafismo o maior defeito do conto. A frase final, por conta dessa antecipação, não surge tão forte e impactante como poderia ter sido. Uma pena porque o conto é ótimo. A leitura fluida e milimetricamente descompromissada me lembrou dos Capitães da Areia, do Jorge Amado. As semelhanças, aliás, não param por aí, porque assim como na obra do escritor baiano, também aqui nos apegamos à protagonista, nos afeiçoamos a ela, torcemos por ela, nos tornamos amigos dela e queremos, por toda lei, que ela vença essa espiral de desesperança e reinvente a si mesma. Por isso me decepcionei um tanto com o arremate do texto, já que não fez justiça ao desenvolvimento. Nas derradeiras linhas, o foco deixou de ser Ravi e passou para o menino. Claro que dá para imaginar Ravi desesperada com a morte do garoto, sentindo remorso, culpa e tudo mais, porém, não me parecia ser esse o mote da história, ao menos ao ler a primeira metade. De qualquer forma, o conto é bom e envolvente, estando o(a) autor(a) de parabéns. Boa sorte no desafio.
O conto narra a história da menina Ravi e de sua luta para se tornar independente num mundo dominado pelos homens.
Eu achei um ótimo conto, apesar de alguns clichês permearem a estória. Está muito bem escrito, e a narrativa envolve e me fez ler de um fôlego só. Achei a ambientação muito boa, o conto me passou um clima de pós-guerra, não sei o porquê. Tem os valores feministas, a crítica social, sobretudo em relação as armas, situação muito debatida nos dias de hoje. O final foi bom, sinceramente não previ como pudesse terminar. Boa sorte no desafio
Observações: excelente conto onde o papel da mulher e a forma como era olhada na sociedade, até há bem pouco tempo, se encontra retratado na perfeição. O final carregou na parte dramática.
Prémio “De olhos fechados, todos podemos ter asas”
A história de Ravi, uma menina que queria ser menino, mas não, isso não tem nada a ver com sexo, tem a ver com oportunidades, tem a ver com as dificuldades de ser mulher num ambiente onde os homens detêm todo o poder. Ravi é uma criança que foi separada da família e colocada em lares para que conseguisse achar em um desses o seu lar. Não queria, queria ficar com sua família, desajustada, sem futuro, mas seu sangue. Conseguiu, aos poucos sua transformação foi feita de forma natural, poucos sabiam que ali era uma menina, trabalhava junto aos marujos, aprendia com eles e tinha fascinação pela forma como viviam e se defendiam. Um dia conseguiu uma arma, pra ela algo que lhe traria poderes. Não foi o que aconteceu, o objeto não trouxe nada que sonhou, ao contrário, levou a inocência do seu lar.
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Olá, Um texto complexo, carregado de muitos sentimentos, muitas vidas e lutas, cheio de significados. Ravi é uma personagem muito interessante, você conseguiu trabalhar muito bem sua personalidade, sua vida, seu anseios o leitor sente suas necessidades, seus sonhos, torce por ela mesmo sabendo que algo vai dar muito errado. Pelo foco na personagem e diversos outros motivos não esperava por esse final. Ele pode ser muito bom ou muito ruim… pode ser aquele recurso do autor para chocar, emocionar arrebatar nas ultimas linhas caso todas as outras não tenham conseguido isso. Ou pode ser uma camada a mais da história a qual eu não tinha dado maior importância, uma mensagem, uma crítica sobre a falsa segurança que uma arma pode trazer. O que posso dizer é que apesar de um sentimento dúbio sobre o desfecho ele funcionou pra mim. Acho que coube bem, enfim. Um belo trabalho, parabéns!
ps: só agora notei o pássaro na fumaça na imagem rs.
Fala, Ítalo!
Storyline: A triste história de Ravi, uma sobrevivente amadurecendo em um mundo de homens, descobrindo aos poucos o que fazer e como ser. Tentando encontrar seu lugar no mundo, mas sendo duramente golpeada pelo maldito destino.
Gostei muito deste conto! Uma pegada de Capitães de Areia com os Miseráveis, com uma incrível personagem de pura fibra feminina, que se obriga a fazer o que é preciso nesse “mundo dos homens”. Uma Hilary Swank tupiniquim com o triplo de problemas.
O ritmo é frenético. Com pausas e reforços que geram agilidade para o texto, conversando bem com o leitor. Porém, apenas uma coisa me incomodou um pouco, o uso excessivo do “E”, que até poderia ser um recurso se fosse a narrativa da própria RAVi, num lance de mais oralidade juvenil.
O fim, belo e triste com tem que ser. Como há de ser.
Parabéns e boas sorte!
Bom dia! Uma garota, meio órfã e abandonada, cresce querendo fugir da figura feminina, querendo ser um homem, por entender que os homens são que comandam a cidade, enquanto as mulheres vivem à margem. Há uma confusão no bar, envolvendo o Alemão, em seguida o nascimento do seu sobrinho, que a faz ver o mundo de maneira diferente.
É um conto muito interessante, com diversas camadas. Adoro o Italo Calvino, então já conseguiu fisgar minha atenção pelo título. E é interessante porque ele fala muita coisa, mas sem dizer, há muito nas entrelinhas, em que o leitor precisa deduzir ou interpretar à sua maneira. Como o final: a criança voando, seria uma metáfora para a sua morte acidental ou que não era mais criança? Outro ponto legal é trazer a discussão entre os privilégios masculinos, da protagonista se comportar como homem, se vestir e querer ser um homem, uma questão de gênero. Mas sem entrar na questão de orientação sexual, porque não é lésbica, que são duas coisas diferentes. Também gostei por trazer a arma como símbolo de masculinidade e poder, ainda mais no Brasil de hoje, em que se discute a liberação do porte. Por isso o final, caso represente a morte, seja mais impactante, mostrando também o lado negativo de toda essa coisa com arma. Um ótimo conto!
Resumo do Conto: RATOS SEM ASAS (Ítalo Calvino)
Ravi era uma menina pobre da periferia de São Luiz (Luís). Menina com espírito de menino. Queria ser menino. Para ela, homem sofria menos, era mais livre.
A mãe, prostituta no cais, tinha seis filhas, uma de cada pai. Por diversas vezes, Ravi foi dada para famílias adotivas, mas sempre fugia. Queria uma vida melhor, mas queria que a família estivesse com ela: a mãe e as meias irmãs.
Ravi observava que os homens que vinham do mar sempre portavam armas. E ficava fascinada pelo poder que o porte dava a cada um deles, a arma mostrava força, exigia respeito.
De cabelo curto, vestia-se como menino, passou a fazer pequenos serviços num bar, no cais. Servia bebida, carregava barril de chope, enfrentava serviço pesado. E observava tudo que os marujos falavam e faziam. Mesmo nos jogos de cartas.
Um dia chegou o alemão, trazia uma Luger-P08, pistola famosa. A certa altura, o homem (o) a convidou para jogar, e enquanto jogava Ravi foi bebendo cachaça. O alemão não se intimidou ao chamá-(lo)la para o beco. Um descobriu o segredo do outro. Ravi pegou a arma do alemão e fugiu. Correu muito, chegou ao barraco e com a arma nas mãos encenou, vitoriosa, vários trejeitos com as mãos e, por fim, disparou um tiro, alvoroçando as pombas que descansavam. O impacto foi tamanho que quase caiu. Neste mesmo instante, ouviu o choro do sobrinho que nascia. A irmã ruiva acabara de parir.
Retirou a munição da arma, guardando as balas no fundo da lata de arroz.
Apegou-se à criança com a responsabilidade de quem iria criá-la enquanto a irmã trabalhava em um restaurante do cais. E a criança foi crescendo e enternecendo o coração da tia. Eles brincavam o tempo todo. A tia contava histórias, criava heróis, inventava mundos. A arma era usada como brinquedo, sem munição. Certa vez, a criança viu os projéteis no fundo da lata e perguntou o que era aquilo. Ravi respondeu que era sujeira.
Fatidicamente, um dia, estavam brincando, Ravi foi atender alguém que acionava a campainha, o pequeno pegou a lata de arroz, carregou a arma e disparou um único tiro.
Comentário/Avaliação do Conto: RATOS SEM ASAS (Ítalo Calvino)
Entendi o título como sendo a batalha que o homem enfrenta pela sobrevivência. Título pertinente com a narrativa. Vestiu como uma luva.
“Com o menino a seu lado, o revólver, agora, tomava outros ares. Entendia os homens e sua necessidade fremente de se impor diante dos outros, em uma pirâmide de poder na qual eram a base, também eles eram ratos, e pombos famintos a caça da sobrevivência.”
………………
“Naquele instante, porém, Ravi teve apenas uma certeza, a de que o sobrinho não era um rato de asas.“
Um texto bem escrito, teor dramático, denso e real.
Achei estranho o tempo verbal de chegar na frase abaixo:
“E como esse dia não chegasse, para tia e sobrinho, a cozinha era escola, local para contar histórias…” (e enquanto???)
A estrutura do conto aparece de maneira evidenciada, a escrita flui, há um desenvolvimento consistente, há um clímax e o desfecho trágico. Há tensão, unidade, conflito. É um bom texto.
Diante da decisão que me cabe, tendo no páreo: RATOS SEM ASAS (Ítalo Calvino) e SAÍDA TEMPORÁRIA (Manu Braun), o meu voto vai para RATOS SEM ASAS.
Boa sorte!
Abraços…
RESUMO
Jovem que vive nas margens da sociedade, após ser derrotada em uma partida de truco, rouba uma arma para se proteger, mas esquece o objeto e as balas nas mãos no sobrinho, que acaba com a própria vida acidentalmente.
MINHA OPINIÃO
O que eu mais gostei nesse conto foi o estilo do autor. É um estilo bastante claro, sem deixar entraves na leitura. Isso facilitou bastante o progresso da história, tanto que cheguei ao final e fiquei com vontade de mais, de tão rápido que eu li, rs.
A trama é bem triste, não há como negar. Ravi é uma jovem que sofre na miséria e pela pobreza. Ela até tinha a oportunidade de viver uma vida social e economicamente melhor, sendo adotada por outra família, mas o sangue fala mais alto (sempre fala) e ela permaneceu.
Além disso, me parece que o mundo caótico onde ela vive não permite que haja outra coisa a não ser o alerta constante pela sobrevivência e a chegada do sobrinho veio para (a meu ver) amolecer esse aspecto da sua vida. Talvez por isso ela tenha baixado a guarda e julgado que nada de ruim pudesse acontecer naquele universo que ela criara junto do sobrinho.
Parabéns!
Resumo:
A história em questão fala de Ravi, que foi dada pela mãe a outras famílias por diversas vezes, mas sempre voltava pra casa, era uma menina que desde cedo, queria ser menino, pois achava que a vida de mulher era sofrida demais, e de fato era. A história segue com Ravi por uma fatalidade arranjando uma arma e no fim temos uma reviravolta na história…
Estou dando nota para o conto sem o pedido prévio de análise, caso venha a ser solicitado haverá o confronto das notas finais dos dois contos para escolha do vencedor do embate.
Critério nota de “1” a 5″
Título: 5 – Um título excelente!
Construção dos Personagens: 3 – Deu para imaginar direitinho os personagens principais e as cenas que nos narrou. Mas a virada do enredo após o beco desconstruiu Ravi em minha mente.
Narrativa: 5 – Um ótima narrativa!
Gramática: 5 – Não vi nada de errado!
Originalidade: 4 – Um conto bastante original em meio a tantos romances, nada contra, pois adoro romance, mas aqui estou procurando formas diferentes de se contar uma história. Gostei!
História: 3 – Estava tão bom, mas aí, após o beco, sinceramente perdeu o rumo e nesse ponto em diante acho que o foco do conto se expandiu demais e isso ficou para mim vago… Queria que o foco tivesse continuado em Ravi ter sua independência, ser alguém mais que uma mulher que fica em casa cuidando do sobrinho… justamente o que não se encaixaria no perfil dela pra mim e isso tirou pontos na construção dos personagens.
Ainda assim é um conto muito bom!
Total de pontos: 25 pts de 30
Boa sorte no desafio!
Bom, vamos lá.
O conto conta a história de Ravi, uma garota que decidiu ser menino, pois nos ambientes em que vivera, isso seria muito mais benéfico para a sua subsistência. Ocorre que certo dia, através de um jogo, conseguiu adquirir uma arma. Pensando que isso a tornaria mais “máscula”, tornou o objeto algo fundamental no seu cotidiano. O sobrinho, pequeno, certo dia conseguiu encontrar a arma e as munições. Atirou contra si próprio, enquanto a tia (Ravi) atendia a porta.
Dado o breve resumo, segue a crítica: O conto não caminha até a sua metade, pois é apenas descritivo. Para um romance de inúmeras páginas, é aceitável. Mas para um conto, é desestimulador. Quando Ravi foi jogar com o Alemão, passei a me interessar mais. Todavia, apesar de caminhar, o autor tornou a história clichê, e explico o porquê:
Desde o início isto nunca foi um conto, mas uma crítica pessoal ao sistema que vivemos. Então, claramente, o criador da narrativa se pontuou com ideias pregoadas por políticas de esquerda: mulher subjugada, armas são perigosas, ideologia de gênero, etc… Entenda que não estou aqui dizendo o que é certo e o que é errado, mas informando que ao deixar claro o posicionamento político e ideológico, se tornou evidente que alguém morreria com a arma no desfecho. Restou ao leitor apenas descobrir se a vítima seria Ravi, ou a criança.
Gostei do estilo de escrita. Há colocações bem particulares. Para alguns, pode ser visto como erro de pontuação. Mas para mim, é mais um estilo próprio, não vi como dificuldade em acompanhar.
Não espero que o autor siga meu conselho, mas lançarei assim mesmo: Escreva contos, crônicas, e qualquer outra modalidade; mas situe cada uma no seu lugar. Quando se mistura, da forma como fora feito, perde-se o encanto da surpresa. Entendo que é muito complicado se esvaziar de valores empíricos para criar contos, mas deve-se tentar, o que não fora feito aqui.
Boa sorte no desafio.
🗒 Resumo: uma menina que queria ser menino rouba a arma de um marinheiro bêbado alemão. O revólver, porém, acaba tirando, acidentalmente, a vida de seu sobrinho bebê.
📜 Trama (⭐⭐⭐▫▫): a protagonista é uma ótima personagem, mesmo que acabe caindo em alguns estereótipos de “menina que queria ser menino”. Há uma boa crítica ao mundo patriarcal e à posse de arma de fogo como necessidade de se afirmar nesse mundo. Não sei se é culpa do lirismo ou se a crítica ficou muito evidente, mas já havia previsto o final trágico, que acabou não tendo a carga dramática necessária. Como o bebê surgiu no fim, também não deu tempo para me apegar a ele e sentir sua morte.
📝 Técnica (⭐⭐⭐⭐▫): um texto escrito de forma não convencional, com um quê de lirismo musical. Bem escrito, mas em alguns pontos precisei reler para entender melhor o que tinha ser passado, principalmente nas cenas de ação.
💡 Criatividade (⭐⭐▫): o texto usa alguns elementos comuns, como já citei, mas o faz com personalidade.
🎭 Impacto (⭐⭐⭐▫▫): o desenho final já estava claro pra mim quando a arma foi roubada e o bebê nasceu: ele morreria com um tiro acidental. Isso e não ter tido tempo de me apegar à criança diminuíram o impacto, que, apesar disso, é bom.
Ratos sem asas segue uma linha de narrativa linear mas bem construída, contando a história de uma mulher que se faz passar por homem para conseguir alguma vantagem num mundo dominado por homens e que é simbolizado pela utilização de armas. Um dia leva uma para casa e treina a sua utilização, sem se aperceber que o sobrinho está atento e que a vai tentar imitar assim que ela vira costas.
A linguagem e o ritmo são os correctos, na minha opinião. Consegui seguir o texto sem qualquer dificuldade. O autor consegue prender o leitor, o que é o objectivo máximo deste tipo de conto.