O russo Leon Tolstói é conhecido por ter escrito um dos épicos mais famosos da história da literatura, Guerra e Paz, sobre a campanha de Napoleão na Rússia. Também escreveu Anna Karenina, como crítica à sociedade da época em que viveu. Romances de fôlego, contrastam com outra obra de Tolstói, um conto chamado “A Morte de Ivan Ilitch”, todavia igualmente instigante e, talvez, mais perturbador que qualquer outro texto do escritor russo.
O título já dá o spoiler, o que é confirmado no segundo parágrafo: Ivan Ilitch morreu. Não se trata de estragar a surpresa, porque, afinal, embora se saiba desde o início que o protagonista é morto, quer-se saber como e por quê.
Já no início, Tolstoi enreda o leitor. Numa espécie de prólogo, vê-se que Ivan Ilitch exercia os misteres de juiz, embora estivesse afastado há algum tempo para cuidar da saúde. Nesse capítulo, são percebidos os reflexos de sua partida definitiva pelos olhos de seus companheiros, outros juízes, promotores, e funcionários do Ministério da Justiça. Ninguém parece muito consternado. Ainda que pensem no morto e em sua família, relembrando as últimas ocasiões em que os encontraam, veem-se mais atraídos pelas consequências que a morte de Ivan Ilitch irá provocar: a abertura de vagas, a possibilidade de promoções e vantagens pessoais.
A partir do segundo capítulo, o leitor é apresentado à vida de Ivan Ilitch. Vagarosamente, acompanha-se sua história, sua ascensão social, seus pecados, sua inveja, sua luta pelo reconhecimento, sua ambição por uma existência confortável e calcada nos mais arraigados valores sociais vigentes, com direito a uma esposa a quem não necessariamente despreza mas tampouco nutre amor, e a filhos cujas vidas lhe parecem adequadamente distantes.
Entre amigos e inimigos, brigas com a mulher, alianças e traições, eis que as circunstâncias o levam a obter um posto invejável na burocracia judiciária.
O sucesso, enfim, fora conquistado: uma casa grande, ricamente decorada, seguindo o exemplo de pessoas sem substância. Ivan Ilitch está em paz o mais próximo possível do que considera felicidade.
Um dia, porém, sofre uma queda. De início, nada ocorre, mas algum tempo depois uma dor na região baixa do corpo surge para incomodá-lo. O desconforto se agrava e, aos poucos, corrói aquela sensação de vitória. Lentamente, deixa de sentir fome, vítima de enjoos e desconforto. As brigas com a esposa ressurgem, a dor se torna perene. Médicos são chamados, mas Ivan Ilitch os encara como mentirosos, charlatães, atores de uma peça teatral destinada a enganar os desesperados – exatamente como ele próprio na magistratura.
Os dias se tornam mais sombrios. A cura, antes provável, parece cada vez mais distante. As dores e os enjoos, em vez de se dissiparem, tornam-se presença constante. Agravam-se, assim como o humor de Ivan Ilitch. Passa a nutrir ódio pela esposa, por sua saúde, por sua vivacidade, pela perspectiva de futuro que possui, algo que a ele parece ser negado. Irresignado, busca em seus próprios pensamentos alguma explicação para aquele infortúnio. Por que ele? Por quê? Os únicos momentos de alento são aqueles que passa junto a um criado e, às vezes, junto ao filho mais novo.
Assistindo à própria demolição, já não tem mais dúvidas. A morte o espreita de maneira muito próxima. Sente pena de si mesmo, tenta descobrir onde errou, agarra-se à esperança de que talvez, sim, talvez, melhore, apenas para descobrir-se pior a cada dia. Prostrado em seu divã, encara a vida que protagonizara. Seus devaneios passam a conduzi-lo à infância, à única fase de sua existência em que fora – agora o sabe – realmente feliz. Quando surgiram os primeiros erros? Em vão, tenta justificar suas escolhas, convencer-se de que seu passado foi glorioso, que sua vida foi boa, que valeu a pena. No entanto, não quer morrer, não quer ser engolido pelo saco negro que o agarra. Chora ao receber a extrema unção. Nada há de salvá-lo. Ao fim de três dias de agonia, sucumbe, enfim.
Incomodamente, o leitor pode se reconhecer nessa pequena epopeia. Ivan Ilitch carrega um pouco de nossos próprios anseios de riqueza e aconchego, por vezes extrapolando aspectos de ética e moralidade – pequenas perversidades que consideramos justificáveis em nome de objetivos maiores. Ante à iminência da morte, encara sua própria história, descobrindo-se uma fraude sem tempo para redenção.
“E quanto mais longe da infância e mais perto do presente, tanto mais as alegrias que vivera lhe pareciam insignificantes e vazias. A começar pela faculdade de direito. Nela conhecera alguns momentos realmente bons: o contentamento, a amizade, as esperanças. Nos últimos anos, porém, tais momentos já se tornavam raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, gozara alguns belos momentos: amara uma mulher. Em seguida tudo se embrulhou e bem poucas eram as coisas boas. Para adiante, ainda menos. E, quanto mais avançava, mais escassas se faziam elas. Seu casamento… tão gratuito quanto o desencanto que se seguiu. E o mau hálito de sua esposa e os momentos de sensualidade e a hipocrisia! E aquela odiosa vida oficial e a preocupação com dinheiro, e assim um ano, dois, dez, vinte, perfeitamente idênticos. E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. ‘É como se eu estivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isso. Perante a opinião pública, eu subia, mas, na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera.’”
O conto de Tolstói incomoda justamente porque nos vemos refletidos na agonia de seu protagonista. A indignação, a descrença, o medo e o desamparo de Ivan Ilitch são representações fiéis de nós mesmos ante a uma situação dramática e sem saída. É como se morrêssemos com ele, arrependidos por termos levado uma existência vazia, uma vida de aparências muito mais voltada para contrapor o sucesso dos outros do que para satisfazer nossos anseios verdadeiros.
“A Morte de Ivan Ilitch” é como o famoso “Conto de Natal” de Dickens, no entanto sem a possibilidade de corrigir os rumos da vida que se leva. Muito mais amargo, e por isso muito mais verdadeiro, o texto do escritor russo serve como laboratório de um fato que irá se abater sobre todos nós, cedo ou tarde. E deixa a inevitável lição – que apesar de se constituir num clichê da literatura de auto ajuda, raramente é posta em prática – de que a vida precisa ser vivida com intensidade, com franqueza, honestidade consigo mesmo e coragem.
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Para quem quiser ler a obra completa, em pdf, basta seguir este link.
Ótima resenha.
O livro A morte de Ivan Ilich foi publicado em 1886, mas sua mensagem chega até os dias de hoje. Ivan sentia uma necessidade profunda de atenção e viveu sua vida em busca de superficialidades como forma de preencher de alguma forma o vazio que preenchia o seu coração. Viveu segundo o que fosse ditado pela sociedade, e se vangloriava quando era aceito pelos seus pares. Era cínico e desapaixonado. Escolheu sua faculdade e seu casamento como formas de agradar seus companheiros e ganhar destaque social.
Mas, de que adiantou a Ivan juntar tudo aquilo se não pôde levar nada quando lhe veio a morte?
Fiz um texto sobre o assunto: https://www.narnianoexistencialista.com/2019/10/resenha-de-morte-de-ivan-ilich-1886-por.html
O livro é sensacional!
Bom. Gostei.
É um conto excelente, não só pelas reflexões que deixa, mostrando uma vida de máscaras que se quedam diante do inexorável, sem nenhuma esperança posterior, além, claro, da literatura de grande estilo.
Para contrapor a mensagem sombria de Tolstói, sugiro a leitura do livro de Santa Teresa D’Avila: Castelo Interior .
(http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1515-1582,_Teresa_d'Avila,_Moradas_Ou_Castelo_Interior,_PT.pdf)
Alguns poderão torcer o nariz, pois, obviamente, o livro é de caráter religioso, entretanto, assevero que sua leitura é muito agradável, de uma qualidade literária surpreendente.
Se a mensagem espiritual não nos tocar, ao menos teremos aprendido algo.