A mão grande cobria a minha. Eu caminhava, olhando para meus sapatos rigorosamente engraxados. E lá em cima, o rosto duro de bronze, os bigodes cobrindo a boca num sulco de seriedade constante. Ele tinha uma voz firme e grave, sem nenhum acento de insegurança nem hesitação. Era uma voz ao mesmo tempo bondosa e carregada de seriedade. “Você ainda é muito novo”, ele dizia me levando pelo corredor “um mundo todo te espera, sinto inveja só de pensar…” – na verdade não lembro de nenhuma de suas palavras, mas eu sabia que eram carregadas de sabedoria, e assim eu as imagino – “…já que perdi a minha. Por mais que possamos reconstituir o passado, ou mesmo revivê-lo como o fizera um escritor francês do XIX, a vida vivemos apenas uma vez e incompletamente”. “Quem sabe um dia, como eu, você acabe se metendo com o mundo da escrita; fará, como eu, a incursão previamente frustrada de reviver sombras, mas se dará conta de que as sombras são apenas sombras: não há nenhum mundo real por trás delas”. Ele parava diante da porta, soltava minha mão e pegava o molho de chaves do seu bolso. Enfiava a chave dourada no trinco e abria a porta que se arrastava. “Todo homem é um filho pródigo, um arrependido que, depois de ter fugido da casa paterna, volta com o rabo entre as patas. Mas diferente do que diz o livro santo, o homem não é recebido com dias de festa: é recebido apenas pela decrepitude, pela decadência, pelo passado que estagnou e ruiu. Temos que saber que a vida continua, nunca devemos voltar ao ponto de partida, porque já não somos os mesmos, já nos ensinavam os velhos livros”. E a porta se abria arrastadamente.
No meio da escuridão, um facho de luz vindo da janela.
– Temos que forçar, eu disse.
Peguei o pé de cabra e soltei as tábuas. Uma luz prateada iluminou o ambiente, revelando um cômodo abarrotado de livros, de teto desmoronando, e uma velha poltrona coberta de tralhas. Uma camada de poeira tomava conta de tudo, como uma neblina.
– Há anos não abríamos esse cômodo.
O casal caminha pelo quarto, tentando se desvencilhar dos pedaços de pau e telha caídos no solo.
– Esses livros valem alguma coisa? O senhor pergunta para a senhora, que responde:
– Acho que não, mas podemos vender para algum sebo.
– Muitos, muitos livros, ele diz, forçando os olhos por trás dos óculos.
– É uma biblioteca de Babel, eu disse.
– Como?
– Nada, nada. O que acham do quarto?
O velho se aproximou de uma das estantes, dizendo “Latim”, “História”, “Filosofia”. “Quanta porcaria, hein, nada de Economia, nem de Ciências, nem de contabilidade: nada de prático”.
– Vocês liam tudo isso? Perguntou a senhora, mais amável do que o homem.
– Não, na verdade, só meu pai vinha até aqui. Acho que ele não permitia que os demais membros da casa entrassem. Era o seu espaço, digamos assim. Mas não me lembro muito.
– E porque você está se desfazendo da casa? Há muitas lembranças, não?
– Meu pai sempre me ensinou a não se apegar ao passado.
O velho riu, disse “Está certo seu pai”, enquanto abria os livros, tirava as teias de aranha, assoprava nuvens de pó. “Há muito pó nesse passado”. Tirou um Proust caindo aos pedaços.
– E esse? Ele perguntou.
Era um daqueles livrinhos da Galimard, mas sem capa, parecia de brochura. Estavam faltando algumas páginas, as quais talvez estivessem debaixo de alguns desses escombros
“Esse é um dos maiores livros já escritos. Sabe o que ele faz? Ele tenta reviver o passado. Veja, eu não disse que ele tenta reconstituir, como nosso personagem Bentinho em Mata Cavalos. Eu disse reviver. Ou seria melhor viver? Uma utopia de que somente a literatura é capaz”. Ele sorria por trás do bigode, um sorriso que ele pensava disfarçar. Eu, cheio de medo, quase nunca lhe falava, mas resolvi perguntar a pergunta mais tola que se pode fazer a um homem quando diante de sua biblioteca: “E você já leu tudo, pai?”. Sim, um sorriso por trás daqueles bigodes cor de ferrugem, um sorriso sob uma voz dura e certeira como um dardo “Você se refere ao Proust? Bom, não o li todo, confesso. Parei no quinto volume de sete. Não sei qual é o final, ignoro e evito ler sobre. Mas um dia o lerei, saberei se é possível reviver o passado”.
O velho já ia recolhendo a mão com o livro, quase me virando as costas, mas minha voz cortou a camada de pó do cômodo:
– Esse é o último volume de uma obra que tenta reviver o passado. Um homem doente que através da literatura consegue fazer com que o passado se torne novamente real, e ele vive sua vida novamente.
O senhor ficou boquiaberto, olhou para a prateleira como que dizendo “O que vocês estão fazendo da vida de vocês?”. E eu aproveitei para tomar coragem:
– Aliás, agradeço que o senhor tenha encontrado o livro, eu o procurava. Este não venderei, gostaria que o senhor o deixasse comigo.
– Ora, mas porque logo esse? A mulher perguntava enquanto o velho me entregava um livro deteriorado.
– Por que este livro, de toda essa biblioteca, é o único que meu pai não leu.
Por ora, sem comentários!
Cara… vou ser sincero… eu não consegui terminar sequer o primeiro volume do Em Busca do Tempo Perdido. Isso já faz um tempo, e pode ser que minha imaturidade na época tenha ajudado a deixa-lo de lado para devorar Stephen King (não me julgue kkk).
Lendo seu conto, fiquei curioso. Quem sabe agora eu tenha um pouco mais de maturidade para ele.
Bem, minhas impressões:
No começo do conto, quando o narrador fala do pai, é interessante como ele enaltece e idealiza as características do homem dentro do seu ponto de vista infantil, “sem nenhum acento de insegurança nem hesitação”. Ilusão comprovada pelas palavras talvez nunca ditas por ele, mas que ficaram gravadas de alguma forma em sua mente.
Pareceu que o pai nutria uma relação de amor e rancor pela literatura, como se ela, de certa forma, tivesse lhe relevado um segredo do qual ele não gostaria de ter conhecimento.
Ao final, o próprio pai confessa não ter terminado o livro justificando-se pelo receio em descobrir a possibilidade de se reviver o passado e o filho, ao que parece, diante de toda a reminiscência que o envolve desde o início da história, parece, ao contrário, nutrir esse desejo.
Fico feliz pelo comentário, Miquéias, porque essa tensão que vc descreveu era o que queria passar. Tentei fazer uns paralelismos, um deles foi justamente a relação do pai com o tempo em comparação com filho e sua relação com o tempo. Vc viu bem essa tensão.
Inspirador.
Que bom, Cilas!