“Ao lermos a nova obra-prima de um homem brilhante, ficamos felizes em descobrir reflexões nossas que havíamos menosprezado, alegrias e tristezas que havíamos reprimido, todo um mundo de sentimentos que havíamos desdenhado e cujo valor nos é repentinamente ensinado por aquele livro”.
Esqueça o título da obra. A julgar por ele, você pensará que se trata de autoajuda ou algo do gênero, daquele tipo de narrativa que traz conselhos óbvios e que nos faz “perceber o que realmente importa” (soam trombetas).
Imagine agora uma porta fechada e que uma pequena fresta se abre repentinamente. Mesmo de longe, mesmo num momento fugaz, você consegue um vislumbre do que existe lá, do que o aguarda, um universo de conhecimento da natureza humana que poucos ousaram explorar. Os pecados, os segredos, as vergonhas, os desejos secretos, as confissões, tudo está ali, e mesmo de fora você percebe o chamado para o mergulho nesse turbilhão de filosófico e psicológico.
É Alain de Botton que abre a porta. A fenda que permite a você enxergar esse outro mundo tem meras 260 páginas. Se quiser passar para o outro lado, porém, se quiser realmente conhecer a fundo o que existe, será necessário ultrapassar os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, que Marcel Proust publicou entre 1913 e 1927.
É disso que trata o livro de Alain de Botton, de uma introdução, ou melhor de uma apresentação da obra máxima de Proust. Um trabalho que demonstra como o raciocínio do autor francês se reflete mesmo no cotidiano atual, como as pessoas evoluíram (ou pouco evoluíram) em cem anos.
De Botton é um ótimo escritor. Na medida em que resgata alguns dos aspectos mais interessantes de “Em Busca do Tempo Perdido”, traz a lume a vida do próprio Proust, conferindo humanidade à análise, permitindo que o leitor enxergar a si próprio, citando-o:
“Na verdade, todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade.”
O livro é dividido em nove capítulos, cada qual capturando aspectos que caracterizam as relações humanas à luz do que Proust observou. Fala-se de livros, de amizade, de amigos, de amor, da felicidade, tudo acompanhado de uma abordagem inteligente e de citações pinçadas de forma cirúrgica da obra do escritor francês: “Nunca devemos perder uma oportunidade de fazer citações alheias, que são sempre mais interessantes que as nossas próprias”.
No que tange à felicidade, por exemplo, De Botton indaga sobre a busca utópica que nos entorpece, esse desejo irracional pelo estado de fortuna plena, algo que na verdade deveria ser colocado em segundo plano porque é a infelicidade que nos impele adiante, revelando-se um sentimento muito mais valioso. Proust confirma: “a arte de viver consiste em sabermos nos servir de quem nos atormenta”.
De particular interesse é o capítulo dedicado à literatura. Um dos pontos que mais chama a atenção trata de um fantasma que assombra todo aquele que escreve: o uso de clichês. Nesse ponto, De Botton analisa a relação de Proust com amigos escritores, reproduzindo trechos de cartas trocadas em que se denotam tanto o desejo do autor francês em manter os bons termos de suas relações como também a necessidade de dizer que a obra que havia examinado era ruim, um antagonismo que parecia atormentar Proust que, exatamente por isso, colocava em polos opostos o afeto e a verdade.
O próprio fazer literário precisa dar azo às diversas personalidades de quem escreve: “Um livro é o produto de um outro eu, que não é o que mostramos em nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios”.
A certo ponto, De Botton avança da literatura à amizade, sem que saibamos exatamente onde termina uma abordagem e começa outra. Talvez porque Proust tenha comparado ambas, por entender que envolviam comunhão com outros, todavia acrescentando que a leitura possuiria uma vantagem enorme: “Na leitura, a amizade é repentinamente levada de volta à sua pureza original. Não há amabilidade falsa com livros. Se passamos a noite com esses amigos, é porque realmente queremos”.
Ao falar do amor, De Botton aborda o enfado que se abate sobre todos nós quando algo deixa de ser novidade. Para Proust, “apenas conhecemos de verdade o que é novo, o que repentinamente apresenta à nossa sensibilidade uma mudança de tom que nos abala, o que o hábito ainda não substituiu por pálidos fac-símiles”. De Botton complementa, com um tom inconvenientemente preciso, dizendo que a presença (de alguém) nos estimula a ignorá-la ou a negligenciá-la, pois achamos que já fizemos todo o necessário para garantir esse contato visual e até certo ponto irrevogável.
No mesmo sentido, debate o vazio que nos acomete quando somos capazes de satisfazer nossos desejos rapidamente, por mais que se trate de um anseio profundo. Para que haja valorização desse desejo, é necessário que exista uma antecipação, um intervalo entre aquilo que ansiamos e sua completa realização. É o que torna, segundo Proust, os ricos menos felizes do que os pobres: “como todo obstáculo posto a uma posse (…) a pobreza é mais generosa do que a opulência, dá às mulheres, muito mais do que o vestido que não podem comprar, o desejo desse vestido, que é o conhecimento verdadeiro, minucioso, aprofundado dele”.
É preciso compreender que a pequena obra de De Botton não tem a intenção de esgotar o que há de mais interessante em “Em Busca do Tempo Perdido”, mas de servir como vetor de condução à obra de Proust. Serve, talvez, como resenha, um texto de apresentação que no mais arranha a superfície de questões incômodas e que, afinal, fizeram a fama do autor francês por ter sido ele o precursor. Nada há de mal em celebrar uma obra tão profunda. Como o próprio Proust ensinou:
“O medíocre geralmente imagina que, ao nos deixarmos guiar pelos livros que admiramos, somos privados de nossa capacidade de julgamento ou de parte de nossa independência. (…) Não há maneira melhor de nos conscientizarmos a respeito do que nós mesmos sentimos do que tentando recriar em nós mesmos o que um mestre sentiu. Nesse esforço profundo, é nosso próprio pensamento, junto com o do nosso mestre, que trazemos à luz”.
Encarado dessa forma, como uma antessala ou como um portão, a obra de Alain de Botton pode ser muito bem aproveitada, pois mesmo de fôlego curto será capaz de provocar discussões, algo que, por si, se traduz em uma qualidade invejável. Segue à risca a máxima de Proust: “Para o autor, os livros podem ser chamados ‘Conclusões’, mas para o leitor, são ‘Provocações’”.
A reação de Virginia Woolf ao se deparar com “Em Busca do Tempo Perdido” pela primeira vez demonstra bem essa ideia e serve como fecho deste breve texto. Segundo relata De Botton, a autora americana, já consagrada por romances como “A Viagem”, “Noite e Dia” e “O Quarto de Jacob”, viu-se silenciada por ter adorado a obra do francês. Até demais. “Proust atiça tanto meu desejo de expressão que mal posso iniciar uma frase. ‘Ah, se eu pudesse escrever assim!’, me lamento. E, no momento, essa é a surpreendente vibração e saturação que ele proporciona — há algo sexual nisso —, sinto que posso escrever daquela maneira, pego a caneta e, depois, não consigo escrever daquela maneira”. Num arroubo profético, confidenciou ao próprio diário: “Começo a ler Proust depois do jantar e, em seguida, paro. Esse é o pior momento de todos. Fico com vontade de me suicidar. Parece não restar mais nada a fazer. Tudo parece insípido e sem valor.”
Esse é um fantasma com o qual todo escritor precisa lidar. Escrevemos porque, como diria Walter Benjamin, não somos capazes de encontrar um livro que nos satisfaça plenamente. Para muitos, “Em Busca do Tempo Perdido” é, exatamente esse livro. O perigo, então, é tomá-lo por completo e perceber que nada resta a ser dito ao mundo. O que serve como alento é que Virginia Woolf só escreveu “Mrs. Dolloway” depois de ler Proust. Talvez o risco seja válido. Mais do que coragem, é preciso tempo. A obra de Alain de Botton serve como excelente amostra.
Por ora… sem comentários!
Muito boa a resenha! Gratidão!
Interessante. Por aqui sempre encontramos resenhas e dicas de livros que jamais teria contato em outras esferas, e como criatividade vem da diversidade, esse é um prato cheio para quem gosta de reflexões em suas histórias e camadas mais profundas.
Inicialmente pensei que a obra resenhada fosse crítica literária, uma de minhas paixões no mundo da produção textual, mas logo percebi que se trata de uma introdução ao “Em busca do tempo perdido”, mas não a partir de aspectos da construção literária (personagem, estilo, ambientação etc.). O que, diga-se de passagem, não diminui a obra resenhada.
Chamou-me a atenção a seguinte afirmativa de Prost: “e o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade”, em que o autor concede ao leitor a “verdade” do texto literário. Ora, a verdade é fluida de sujeito para sujeito e mesmo para um mesmo ela pode variar, a depender do tempo histórico (uma verdade adolescente pode não se manter na vida adulta). Assim, um suposto fato apresentado num livro pode se coadunar com os valores de um sujeito, mas não em relação a outro. Nesse caso, mas mãos de quem fica a “veracidade” do texto? Ele é “verdadeiro” para um, mas não para outro? Ademais, há leitores que não sabem o que eles são, do ponto de vista psicológico; há os que sabem, mas se negam a si próprios.
Aliás, o que e a “veracidade” de um texto literário?
Claro, a resenha não está aqui para responder a isso, mas ficam a questões a quem se interessar por elas, pertinentes à recepção textual e à produção literária.