O japonês era cego. Há um tempo, contratara alguém para auxiliá-lo: um enfermeiro paraplégico e bem baixinho. Passavam os dias na inércia vespertina do condomínio. Era muito tempo de sol na cabeça, sentados no banquinho, mais banhos de sol. A calmaria acabou quando a senhora do 13 passou. A mulher vestia-se de preto, usava botas alongadas, um casaco escuro que lhe cobria até as coxas, ressaltando seus joelhos claros e saltados. Era alta, loira, parecia ter uns 40 anos. No momento em que ela cumprimentou o porteiro, um pouco antes de sair do prédio, tudo começou.
– É muito estranho o jeito como ela cumprimenta o porteiro – o enfermeiro falou.
– E como é isso? Estou curioso.
– Chega a ser nojento! Ela ergue o braço reto, com os dedos bem esticados, depois para um tempo no ar, na altura dos seios.
– Será que ela é nazista?
– Sim, mas ela tenta não parecer! Faz a saudação bem disfarçadamente, pequenininha, assim, pra ninguém notar.
– Que nojo!
– Sem dúvida!
Os dias passaram. O enfermeiro, sempre na mesma hora, no mesmo jardim, observava a nazista passar e saudar o homem da portaria.
– Lá vai ela! – ele falava.
– Ela fez de novo? – disse o japonês.
– Sim, levantou aquela mãozinha nojenta.
– Brrrrr… Fiquei intrigado, ontem escutei uma áudio aula sobre o nazismo, e agora muitas coisas fazem sentido.
– Não entendo.
– Explico. Para os nazistas, a gente é o resto do resto, consideram-nos imprestáveis, inferiores. Naquela época, eles matavam os deficientes logo depois do nascimento. Hitler costumava fazer isso pessoalmente.
– Mas é claro! Por isso ela nunca nos cumprimenta! Passa aqui todos os dias batendo aquelas botas e finge que a gente não existe. Se ela pudesse, já tinha queimado nós dois!
– Sem sombra de dúvida! No Nazismo era assim.
– Você sabe o nome dela?
– Não.
– Perguntamos pro porteiro?
– Claro que não, vai dar muito na cara!
– Acho que tive uma ideia.
*****
De manhã, o plano já estava mancomunado entre os dois cabeças. O japonês fez o enfermeiro e sua cadeira deslizarem, deixando-o próximo da portaria. Assim que o porteiro se distraiu, o baixinho jogou um envelope bege em cima do armário de correspondências. Então passaram o dia escondendo a ansiedade com um jogo de cartas. “Aí vem ela!”, disse o japonês ao fim da tarde, indicando o barulho das botas que surgiam portão adentro. O porteiro chamou a mulher.
– Ê, dona! Dona! Tem correspondência, dona!
O japonês ficou furioso.
– Puta que o pariu!
– O que foi? Escutou algo?
– Esse porteiro não sabe o nome dela!
– Mas que diabo! O que foi que ele disse?
– Dona! Ele a chamou de dona, ora!
Tum, Tum, Tum, Tum! Vinha a loira nazista pelo corredor. E vinham também as botas, o casaco alongado, o cabelo milimetricamente ajeitado (ah, os joelhos!) e, dessa vez, ostentava um broche na lapela. O japonês e o baixinho disfarçaram com grandes espreguiçadas. Desta vez, ela não foi diretamente para o elevador. Parou, entrou no jardim sagrado do homem da cadeira de rodas e do oriental. O segundo tremeu, esperou pelo pior. “Ai! Vamos para a câmara de gás!”, pensou. Mas o cuidador emburrou a cara, cruzou os braços, ficou encarando a mulher. Ela sentou, ficou alisando o envelope. Nada dentro, nada fora, remetente invisível, só havia aquele solitário 13. Mordida de raiva, esbagaçou aquilo e jogou longe. Caminhou rápido para casa.
– Ela descobriu! Estamos ferrados! – disse o japonês.
– Que nada. Além de nazista, é maleducada! – disse o enfermeiro.
– Ela vai nos torturar e vai nos matar. E depois… Depois vai mandar os restos pra uma matilha só de pastores alemães.
– Que exagero. Você está ouvindo muita bobeira.
– Ah, vá!
– Você viu o broche dela?
– Claro! Com estes impávidos olhos azuis de águia que a terra ainda não comeu!
– Ops, às vezes me esqueço. Pois eu também não vi direito. Broche é coisa de nazista!
– Sério?
– Não tinha isso na sua enriquecedora áudio aula?
– Não…
– Pois bem, já vi falar disso na TV.
– Deve ser um símbolo do Nazismo.
– Jura? Vamos embora. Tive outra ideia para amanhã.
– Você e suas ideias…
*****
Tomaram café e arrumaram-se, então desceram. Depois de atravessarem longo corredor, o oriental deixou o baixinho em frente às escadas da saída. O pequeno homem, na cadeira de rodas, ficou ali, fingia-se confuso, desorientado, rumava com a cadeira para lá e para cá. O porteiro logo foi fisgado, saiu da guarita para ajudar. Ao mesmo tempo em que era carregado, o enfermeiro acenou para o japonês, era aquele o sinal combinado. Receoso, o ceguinho guiou-se através das batidas da muleta. Então entrou na portaria, apanhou a caderneta, fotografando-a com um celular. Depois de disfarçarem um pouco, encontraram-se novamente no jardim.
– Deu certo?
– Acho que sim!
– Me passa o celular.
– O que foi?
– Opa…
– Desembucha! O que foi?!
– Descobri uma coisa.
– O quê?!
– Você é muito mau fotógrafo.
– Não dá pra ver nada, nadinha?
– Dá, mas muito mal.
– Poxa! É só olhar o nome que aquela nazista assinou aí!
– É, é! Mas isso não faz sentido.
– Por quê?
– Está aqui, ó, meio tremido. Zi… Zileide.
– Ué! Mas Zileide não é alemão nem aqui nem na China.
– Não sei! Mas aqui está: Zileide, do 13.
– Que porcaria.
– Nossa, que letrinha ruim.
– Essas pessoas usam nomes falsos, pseudônimos.
– Você é especialista, agora?
– Eu ouvi. Isso tem na minha espetacular áudio aula.
– Vamos embora!
*****
Eles chamaram o elevador social e nada. Parado no vigésimo sétimo andar. O de serviço, como sempre, na placa de “EM MANUTENÇÃO”. Ligaram na portaria, mas apenas tocava. Foi quando o enfermeiro começou a dar murros na porta. O japonês disse que parasse e, desconsolado, sentou-se no sofá do hall. As rodinhas da cadeira deslizaram em sua direção. Juntos começaram a resmungar.
– E a culpa é dessa nazista aí! – falou o japonês.
– Raça superior é uma ova! – disse o enfermeiro.
– Tá, mas o que vamos fazer?
– Temos quantos lances de escada?
– Daqui pra cima, uns 10.
– É realmente muita coisa pra nós.
– Sem chance.
– E vai ficar aí paradão?!
– Epa! O funcionário aqui é você! Pra que te pago? Pra essas coisas!
– Ora! E por acaso aguenta o meu peso?
– Deixe-me ver – disse o japa, testando o peso do baixinho.
– E aí?
– Ah, você é bem leve. Vamos!
– Me pega aqui pelos braços. Lembre-se: você é minhas pernas.
– E você é meus olhos!
– Deixe de besteira. Estou apertado!
O japonês puxou o pequeno enfermeiro, deixou-o pendurado em suas costas, bem na altura do pescoço. Os esforçados subiram o primeiro lance de escadas, mas tiveram que parar, se ajeitar para o segundo. Uma música alta começou a ecoar pelas escadarias. Assustado com as batidas, o japonês tropeçou. Os dois caíram. Uma luz acendeu. Agachado ao lado do lixo, o oriental tentava limpar o sangue da testa. O enfermeiro tinha caído como bola de basquete em chuá na lixeira.
– Me tira daqui! Ai!
– Cadê você?!
– Aqui! Caí no cesto de lixo!
– Vou puxar você daí.
– Onde estamos?
– Primeiro andar!
– Primeiro andar?
– Primeiro andar!
– Ah, meu deus!
– É aqui que mora a…
– Calado! Não queremos que aquela… Matadora escute a gente!
– Vem!
A porta foi aberta por uma mão enluvada. Seguiu-se a cena: um japonês com óculos escuros e testa lavada de sangue puxando um pequeno afobado e cheio de lixo. A dona das luvas que adentraram o recinto era Zileide, a notável carrasca alemã. Em seu punho esquerdo via-se uma faca enorme e, no direito, um saco preto. Os cabelos estavam soltos, a botas duras trocadas por pantufas; ela parecia tão à vontade. Encarou-os de forma intrigante e começou a alisar a pele do casaco.
– O que é que está acontecendo aqui?
– Não! Não nos mate! Por favor, por favor! – disse o japonês, escondendo-se debilmente atrás do latão de lixo.
– Matar? Quem é que vai matar?
– Olha aqui, dona Zileide! Ou sei lá qual é que é o teu nome… – disse o baixinho. – Eu sei que o povo da senhora não gosta dos pernetas, odeia os ceguinhos… Mas, por favor, vamos deixar isso pra lá, né? Desce essa faquinha pro chão, desce?
– Eu é que nunca ouvi tanta baboseira!
– Vamos lá! Sabemos que você sabe muito bem! Heil! Heil Hitler! – disse o baixinho, saudando-a com ironia.
Encantada com as peripécias, sem reação, a loirona começou a gargalhar. Colocou o baixinho no colo, deu ordem para que o japonês saísse de trás da lixeira. O kamikaze da testa ferida estava choroso de medo. Arrastou a dupla adentro do apartamento e empurrou-os no sofá. Em seguida deu um pano com água para cada um, ordenando que se limpassem logo.
– Você sabe, não é mesmo, senhora? Nós estamos muito envergonhados – disse o baixinho.
– Sim, sim, e eu assino embaixo! – concordou o oriental.
A dama deixou-os a falar com as paredes e entrou no quarto. O que se ouviu foi o som aumentando e a mulher cantando ao fundo, como uma segunda voz destreinada. Logo ela retornou, parando no meio da sala e esfregando as mãos como se bolasse um plano.
– Eu era uma nazista, então?
– Não, não! Cremos piamente que não!
– Absolutamente, exatamente! Nem um pouco, senhora!
– E o que é que eu sou então?!
– A dona do 13!
– Dona?! Rã! Disso eu gostei!
– Uma dona! Claro, uma dona!
– E agora sou a dona de vocês!
– Claro, sim! Terá sempre nossa gratidão por essa ajuda.
– Sabem que já reparei em vocês faz tempo?
– Não parecia, dona. Não parecia mesmo!
– E vocês ainda querem saber quem eu sou?!
– Você é a dona Zileide, do 13, não é mesmo?
– Sim, exatamente! – disse o japonês.
– Pois bem! Vou matar a curiosidade dos fofoqueiros!
Zileide vestiu uma máscara roxa, arreganhando os buracos dos olhos para ver melhor. Alongou-se inteira e em seguida meteu a sola no centro do sofá. Tinha colocado novamente as tão faladas botas pretas e brilhantes. Dançou com a perna enquanto subia as unhas pontudas e desabotoava por partes o casaco. O tecido caiu no chão, e ela abriu os braços revelando as tiras pretas que trançavam em X o ventre os seios grandes. As coxas, enfiadas ainda nas botas, eram fartas como os joelhos. Foi quando o baixinho urinou-se que ela deu um grito.
– Ah! Querem saber, seus pentelhos? Vocês caem muito bem num tipo de brincadeira que eu queria fazer há tempos.
A dupla de atônitos variava entre controlar a saliva que escorria do canto boca, e o terremoto escala Richter 10,0 que atingia as pernas. Ela foi desamarrando as botas com carinho e, de uma delas, arrancou um cabinho cheio de laços. Imitando uma ninja, rodou o artefato como se costurasse o ar. A correia extensa fazia curvas seguindo os movimentos. Zileide levantou o braço e fechou o punho. O chicote estalou no teto.
– Você é minhas pernas! – disse o baixinho.
– E você é meus olhos! – disse o japonês.
O couro comeu.
Divertido. Gostei.
Obrigado, Luciene!
Muito bom. Divertido. Só achei que tem duas cenas que não convém a um cego. “Então passaram o dia escondendo a ansiedade com um jogo de cartas” = poderia ser jogo de palavras. “o enfermeiro acenou para o japonês, era aquele o sinal combinado” = poderia ser o enfermeiro tossiu.
mas eu gostei do conto mesmo.
Tem razão, Neusa! Obrigado pelas observações e pela leitura! Grande abraço!
Hehehe muito bom de ler.. divertido.
Talvez um pouquinho confuso, precisei reler alguns dialogos pra construir as cenas.
Abração, Rodrigues