EntreContos

Detox Literário.

Uma roda dentro de outra roda (André Luiz)

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Acendendo o cigarro que costumava tragar após beber o primeiro gole de café do dia, apanhou o suéter avermelhado de cima do armarinho e a gravata que gostava de usar. Apoiou os cotovelos no parapeito da janela aberta e baforou a fumaça para fora do aparamento, observando que o sol já estava por brilhar alto no céu, se não fosse à chuva que caía. Assim que acabou com o cigarro, passou pelo banheiro e escovou os dentes, tentando em vão esconder a nicotina que grudava em sua boca, depois penteou os cabelos da melhor forma que pôde, apesar de os fios não estarem muito amigáveis naquele dia.

­—Hoje o dia promete! — Sussurrou para si mesmo, quatro palavras simples mas que o encorajavam diariamente como um mantra que repetia antes de começar os trabalhos.

Desceu as escadarias do prédio, reparando em como os cheiros se confundiam ao passar pelos andares, principalmente no saguão de cada um deles à entrada dos apartamentos. Poderia ter perdido um pouco do seu tempo ali, desbravando, mas preferiu prosseguir, ansioso para alcançar as calçadas movimentadas e abarrotadas de gente.

Iria à capela do bairro, como usualmente fazia. Pelo caminho, procuraria alguém para conversar, quem sabe. Sentia-se solitário, algo o incomodava. Um vazio que nunca sentira antes o invadiu subitamente.

O sol escondia-se atrás das nuvens de garoa, e os pingos da chuva que insistia em cair batiam no chão e formavam poças d’água repletas de lama. Logo dezenas de guarda-chuvas inundaram a avenida acinzentada e fizeram surgir uma profusão de cores que modificou a paisagem por alguns momentos.

De cabeça baixa, concentrado em sua própria solidão e nas pedras que estavam em seu caminho, Ezequiel acabou assustando-se quando algo esbarrou em seus braços, fazendo uma onda de calor subir por seu corpo e uma reação espontânea fazê-lo virar com apreensão.

Sentiu primeiro a onda doce de uma fragrância feminina invadir suas narinas.

Uma jovem de olhos escuros como a noite e cabelos castanhos cor de avelã o observava com um sorriso no rosto, e sardas nas bochechas. Seu guarda-chuvas amarelo contrastava com todo aqueles muitos tons de cinza que invadiam seu campo de visão.

—Quer ajuda? — A garota dirigiu-lhe as palavras, invocando nele uma aura que chamavam timidez. Ezequiel reparou em como seus cabelos eram sedosos e macios. Como não obteve resposta e percebeu que o rapaz a encarava com uma expressão abobada, não hesitou em responder. — Que foi? Gosta mesmo de andar ensopado?

Mesmo com a tentativa de romper a intempérie carregada que se formou entre eles, Ezequiel recuou, abraçado pelo manto da timidez, e soltou um gemido de profundo desapontamento. Sentia-se tolo, desacreditado.

A garota também se reteve. Virou-se abruptamente e encarou a avenida movimentada. Respirou fundo, tentando se esquecer daquele rapaz, e deu de costas.

Sentiu um leve toque nos ombros desnudos, que lentamente evoluíram a uma sensação inigualável. Ela virou-se de súbito, raivosa como um pitbull faminto.

—Isso são jeitos de tratar uma…

—Desculpe-me a ignorância. — Interrompeu-a em sua ira, fazendo seu rosto corar ao surpreendê-la com uma face gentil e uma conversa educada. — É que não me é comum, sabe… Conversar com as pessoas. Eu realmente queria ter alguém para ouvir os gritos presos na minha garganta, mas só tenho a televisão de companhia.

A garota abaixou a cabeça e colocou as mãos no rosto, desapontada consigo mesma.

—Nossa… — Escapou-lhe um sorriso desconcertado. — Vou confessar que eu não esperava isso… É… É… Desculpa aí então o jeito como te tratei. Não me leva a mal, mas é que eu não sou assim, tá? — Coçou a nuca, apreensiva. — Acho que foi o momento e tal…

Ezequiel soltou um sorriso de desculpas.

Acontece

 

Alguns segundos se passaram até que ela tomasse a iniciativa de reiniciar a conversa, depois do clima formado entre eles.

—Então… Eu já vi você lá no prédio mesmo, rapidamente… E foi num dia que eu tinha consulta às sete da manhã em ponto, então acabei acordando mais cedo. E você tava descendo as escadas do meu andar numa correria danada, que nem me reparou. Deve ser porque eu estava passando pela porta ainda, ?

Ele lembrou-se de ter sentido um aroma diferente naquele dia, como se estivesse perto demais da dona da fragrância; a mesma que ele degustava naquele momento.

—Eu ando corrido, às vezes, sabe? Ossos do ofício.

—Sabia que existe elevador? O décimo terceiro andar pode ser um pouco alto e cansativo se só usar as escadas, sabia? — Brincou.

—Não sou o maior fã dessas maravilhas tecnológicas. — Respondeu. — Prefiro as velhas e desgastadas escadarias. Menos suscetíveis ao erro.

—Então não sabe o que tá perdendo com os smartphones. Aposto que não tem um.

Ezequiel riu perante a aposta feita pela garota.

—Cuidado com o que você fala, garota. “O que você diz pode e será usado contra você no tribunal”.

—Cara, você parece até um daqueles personagens de filme americano. — Ela sorriu, mais descontraída. Ambos aproximaram-se de uma marquise e descansaram embaixo dela. A garota fechou o guarda-chuvas e ajeitou os cabelos. — Só me falta agora o cigarrinho de palha ou o chapéu de cowboy pro equipamento hollywoodiano ficar completo.

Ele não sabia sobre o que ela estava falando, e tentou buscar na memória como um chapéu e um cigarro poderiam estar relacionados à sua nova alcunha de hollywoodiano. Buscou disfarçar essa dúvida da melhor maneira de pôde.

—Você não me falou seu nome ainda, sabia? Pelo visto você sabe muito de mim e eu pouco de você… — Buscou nos confins de sua mente referências da cultura popular que havia guardado pela convivência, porém seus anos de reclusão não colaboraram com algo mais atual. Emendou: — Parece até o Bond investigando a minha vida!

Gargalharam.

—Não falei que você estava muito hollywoodiano? Bem, vou confessar que você está na minha mira há muito tempo, desde que eu vi você correndo apressado aquele dia nas escadas. A figura de um rapaz desengonçado e tímido que você deixava transparecer era e continua sendo muito intrigante. — Somente após ter falado esta última sentença, ela decidiu que era melhor ter ficado calada. — Eh… Eu posso até ser melhor que o zero-zero-sete, mas ainda não consegui descobrir o seu nome.

—Ezequiel, ao seu dispor. — Terminou a fala com um gesto cortês, simulando um chapéu fictício em um cavalheirismo exagerado, e completou o gesto com uma piscadela.

—Que nome cult! — Exclamou Camila, surpresa. — Nunca ouvi ninguém com esse nome de banda mexicana.

—Já me disseram que soa estranho, mas fazer o quê, né? Até que eu gosto assim…

—Claro! Olha o meu: Camila. Quantas não têm o mesmo nome que eu? — Divertiu-se com a colocação. — Minha mãe poderia ter sido mais criativa, quem sabe até eu não me chamasse Beyoncé ou então Shakira?!

Ezequiel sorriu, porém logo em seguida sua expressão tornou-se sólida e rígida como uma pedra, algo que ele logo tentou dissipar.

—Nunca conheci minha mãe… O único que mantenho contato é meu pai, mesmo assim só por telefone… Melhor assim, não? Aí não temos gente tentando nos acordar às sete da matina todos os dias!

Camila novamente corou, e sentiu suas bochechas se esquentarem e a pulsação acelerar.

—Bem, já que nos conhecemos… — Fez uma pausa na fala, ainda apreensiva em conversar com o rapaz que ela tanto admirava. Sentiu que os pés queriam levá-la o mais longe possível dali, porém seu coração insistia em ficar, e seus olhos focalizarem os olhos profundos do rapaz.  — Posso perguntar para onde você tá indo?

Os céus de tempestade no rosto de Ezequiel tornaram-se mais brandos, revelando raios de sol que antes não estavam ali.

—Tenho alguns assuntos a resolver perto da igreja do bairro.

—Então é aqui pertinho, só atravessar a São João. Tô indo pra lá também, sete horas começa a primeira aula.

Ezequiel não disse nada, apenas levantou-se e dirigiu um olhar para Camila. A jovem abriu o guarda-chuvas instintivamente, apesar de que a garoa tempestuosa estivesse mais próxima a uma calmaria. Saíram da marquise e dobraram a direita, entrando na movimentada Avenida São João. Carros iam e vinham, por vezes detidos por semáforos instalados nos quatro lados de um cruzamento. No canteiro central, dezenas de pessoas esperavam pela luz do semáforo de pedestres tornar-se verde.

—Então você estuda? — Ezequiel mostrou-se interessado na vida pessoal de Camila.

Camila ainda não havia pensado em uma resposta quando repentinamente um clarão invadiu seu campo de visão e percorreu toda a avenida, seguido por uma algazarra de buzinas e um estrondo cataclísmico. Milhares de partículas de vidro dançaram no ar, como se este fosse um oceano repleto de purpurina, brilhando na luz do por do sol, quando o astro rei voltava a dar as graças, e depois espalharam-se pelo asfalto negro e encharcado.

Diversos carros estacionados nas redondezas foram impactados por estilhaços, e seus respectivos alarmes soaram e aumentaram a tensão do momento. Logo, muitos dos pedestres que estavam no canteiro central da avenida corriam desesperados de braços ensanguentados e cortes na testa em decorrência dos cacos de vidro lançados com o impacto.

Ezequiel e Camila estacaram-se no lugar, embasbacados.

Três carros e um ônibus lotado fundiram-se em uma montanha de metal retorcido, onde não mais se conseguia discernir entre vida e morte. Aproximaram-se do local dando alguns passos, não estavam muito longe. Ezequiel percebeu uma forma difusa emergindo de onde antes era um automóvel de passeio, diretamente de onde surgia um braço repleto de sangue. A forma engatinhava pelo chão, vaporizando-se enquanto desgarrava do automóvel, e com certa dificuldade pôs-se de pé. De olhos fixos no vazio e expressão amedrontada, parecia ainda não conceber em sua percepção o que havia acontecido. Os cabelos eram chicotes de sombras, e o resto do corpo humanoide tremulava como em um filme antigo, desprendendo partículas tal qual poeira e cinzas.

Diversos curiosos saíam dos prédios, escritórios, apartamentos, centros comerciais, restaurantes e galerias, bem como dos carros que não haviam se envolvido no acidente, atraídos pelo cheiro do sangue e pelo barulho altíssimo como zumbis em uma manada, e aglomeraram-se em volta da massa metálica retorcida. De onde estavam, a poucos metros, Ezequiel e Camila podiam ouvir os gritos de socorro ecoando de um dos carros, aparentemente um táxi, e também de dentro do coletivo.

Alguns dos curiosos haviam escalado o coletivo pelas laterais e, alcançando o teto, abriram os alçapões de ventilação e quebraram as janelas de emergência, possibilitando a saída de alguns dos menos feridos e que ainda conseguiam se manter em pé. Os fundos do ônibus pareciam uma cena de guerra, como se tivessem sido bombardeados incessantemente.

Uma perna envolta em sangue aparecia por debaixo dos bancos.

Camila abriu a boca em desespero, prestes a desabar. Percebeu seus olhos encherem-se de lágrimas em razão do espanto, e a face congelar em um esgar de medo. Contudo, sentiu algo crescer dentro de si, um instinto peculiar e irracional que insistia em subir por sua garganta.

—Preciso ajudar. — Disse, com um tom de certeza.

—Não tem como você fazer nada agora, Camila. — Ezequiel interveio, reparando na sombra em forma de mulher que se erguia à sua frente. Ela cambaleou e deslizou os pés pelo chão, e o rapaz reparou que ninguém mais a havia percebido, inclusive Camila.

—Mas…mas é meu de-dever c-como estudante de medicina. E-eu tenho que salvar vi-vidas…

Ezequiel olhou para ela e segurou-a pelos ombros, virando seu rosto para si e fixando seu olhar nos dela.

—A vida é assim, injusta como sempre. — Seus olhos negros brilharam e tornaram-se púrpuras, contorcendo-se nas órbitas. — Não adianta interferir nos planos meticulosos do destino.

Neste momento, sons de sirenes e luzes piscantes vermelhas invadiram o cenário da tragédia, pintando o ar atmosférico de tons fortes e quentes. Duas viaturas dos bombeiros e do SAMU chegaram mais perto, pedindo passagem aos curiosos, entrando pela multidão sob a escolta policial e debaixo de dezenas de flashes. Dos céus, holofotes em helicópteros jogaram feixes de luz e facilitaram o trabalho dos profissionais da saúde.

Ezequiel e Camila afastaram-se um pouco quando as viaturas chegaram, apesar de terem se mantido à frente das outras pessoas que se aglomeravam próximas ao local.

—Anjos do asfalto… — Resmungou, observando a aura luminosa que tremulava por debaixo e ao redor das fardas dos socorristas, dotados de dons celestiais, outros simplesmente armados com desfibriladores. Alguns deles também eram alados, dotados de estruturas de penas douradas que balançavam com o vento e asas que balançavam conforme o ritmo de seus corações e espalhavam brilho por onde passavam. Na jaqueta de um deles, estampado o nome Miguel. Ezequiel aumentou o tom de voz assim que viu os querubins derramarem sobre algumas vítimas que socorriam uma torrente de brilhos e lágrimas milagrosas. — Camila. Precisamos agir. Agora!

Segurou-a pelos punhos, e percebeu que não mais resistia.

Algumas almas desgarradas continuaram a sair do meio das ferragens, todas engatinhando, rastejando ou tropeçando, ainda desacostumadas ao plano astral e à sua projeção espiritual. É o momento mais propício, pensou Ezequiel, retirando de seu corpo a gravata apertada e o suéter de lã.

Camila permaneceu inerte como uma marionete sem ventríloquo.

Abriu a boca e lentamente começou a soprar uma fumaça negra e quente, densa e pesada, que caiu por seu corpo e começou a se acumular próxima ao solo, e fez com que ela rapidamente subisse mais e mais, aproximando-se das almas desgarradas. Em suas costas, sentiu pontadas de dor que rasgaram sua carne e fizeram escorrer filetes de sangue. Minutos depois, estava envolto em uma aura negra de fumaça e em um manto sombrio de penas pretas como petróleo.

De olhos arroxeados, perdendo-se nas órbitas, observou as formas negras e confusas fixarem os olhares perdidos em sua figura espectral. Ótimo, estão indecisas. Arrancou uma das penas de suas grandes asas e puxou do bolso um pergaminho envelhecido pelo tempo.

Sorriu.

—Onde assino? — Sussurrou uma das desgarradas, de olhos brancos a fita-lo como se fosse à luz no fim do túnel. O papel flutuou magicamente, aproximando-se da alma, e ela estendeu o braço para agarrar a pena que também voou até seus dedos raquíticos. A escrita frágil e torta era comum às almas desgarradas, Ezequiel percebeu depois de certo tempo.

—Bem vindo, amigo. Você passará toda a eternidade sobre nosso cuidado. — Disse, com uma farta saudação e moveu-se para dar-lhe um abraço.

Nós? — A alma sussurrou, mas era chegada sua hora.

O manto negro nas costas de Ezequiel pairou alguns segundos no ar, e fez com que ele fosse levantado do chão cerca de dois centímetros. Abriu os braços e saudosamente deu na desgarrada um abraço apertado, curvando-se para frente e encarando-a nos olhos leitosos. Sua expressão era serena e convidativa, enquanto a alma parecia mais assustada e intrigada; sempre as apreensivas tolas e ingênuas… Vêm todas a meu abraço, pensou. Erguida no ar pelo abraço de Ezequiel e envolta no manto de penas negras que as contaminava com um óleo viscoso e pegajoso, a alma quis se debater e se libertar das garras do anjo negro.

Tarde demais.

Um buraco infinito surgiu no espaço onde antes era o asfalto da avenida, suficientemente grande para que a alma passasse, e até mesmo Ezequiel se quisesse. Desapertando o abraço, a desgarrada envolta no piche escorregadio deslizou por entre os braços e o corpo do anjo, incapaz de segurar-se em algum lugar, e entrou no buraco com velocidade, logo desaparecendo na escuridão.

A abertura fechou-se logo em seguida, Ezequiel levemente pousou e novamente abriu o sorriso convidativo.

—Por favor, assine aqui. — Esticou o dedo apodrecido para pegar a caneta cedida pelo porteiro do inferno.

E o espetáculo da morte seguiu por horas a fio.

 

 

***

 

Chegando à frente do prédio onde morava, acompanhado de uma Camila letárgica de olhos virados e uma péssima expressão no rosto, sentou-se num dos bancos de concreto fixados no jardim do condomínio.

—Não, eu não posso. Não fui feito para isso. — Conversava ao telefone com um homem de voz grossa e intimidativa.  — Você sabe disso mais do que eu.

—A colheita foi boa hoje, eu sei disto. Mas quem planta não sou eu, meu caro. Eu apenas mando colher às mudas apodrecidas, que acabam perdendo-se aí neste mundo.

—Vê?! Ela não merece o fim que você quer dar para ela. — Proferiu as palavras esperando uma resposta ríspida e mal-humorada como sempre.

Após alguns segundos de silêncio, a voz atrás da linha suspirou e lhe respondeu:

Faça o que achar que deve ser feito. Atente-se às consequências.

Ezequiel viu seu mundo desabar, certo de que não iria gostar do que deveria fazer. Pensativo, terminou a ligação sem responder ao homem, de cabeça quente e maquinando uma solução.

 

Lembrou-se do momento em que a encontrou pela primeira vez naquele dia, esbarrando-se debaixo da chuva. Ela de olhos brilhantes e apaixonados, e ele tentando adaptar-se àquele mundo repleto de mundos, cada um com sua singularidade.

Fez o que achou melhor.

—Não quero mais falar com você. — Dirigiu-se a ela, rompendo com a névoa que havia colocado em sua mente e visão. Deixou que as palavras saíssem por sua garganta, exorcizadas. — Finja que eu nunca existi, por favor. Não começou certo, não vai terminar certo.

Camila levantou-se, de olhos marejados, ainda com resquícios do olhar de Ezequiel transpassando-lhe o coração. Ele a atingira em cheio.

—Co-co-como a-ass-ss-sim? — Não conseguia terminar corretamente as palavras, seu cérebro tornou-se um turbilhão de perguntas sem sentido, que nunca encontrariam respostas. Subitamente, não conseguia se lembrar de como a conversa com o rapaz que ela tanto admirava e secretamente era apaixonada tornou-se um pesadelo levando-a diretamente para o fundo do poço.

Assustada, afastou-se do rapaz, e abriu caminho por entre o calçamento do jardim até chegar à portaria. Seu Romeu estranhou a atitude da garota, porém acabou distraído pela pequena televisão que carregava sempre consigo.

Mas… Mas… Camila subiu correndo as escadas e demorou em abrir a fechadura do seu apartamento. Estava inquieta e nervosa, passou rapidamente pelo corredor e afundou-se nos travesseiros.

Segundos depois, uma forma negra e obscura pousou no parapeito da janela da sala.

***

 

A meia-noite se aproximava enquanto a jovem preparava um banho quente e relaxante, despejando sais aromatizados na água morna e abrindo uma garrafa de vinho que encontrou na dispensa. À taça de cristal, adicionou o conteúdo da garrafa e vislumbrou também outra bebida de tonalidade âmbar.

Derramou um pouco no chão da primeira vez.

A sombra desceu do parapeito da janela após uma rápida espera, e pousou os pés no chão, mais leve como uma pluma. Atrás de si, as asas afiadas em formato de foice resguardavam sua retaguarda, e um punhal feito de osso estava bem guardado em sua cintura.

Entorpecida, Camila não o havia percebido ainda, e mergulhou na banheira, submergindo completamente.

 

No décimo terceiro andar do prédio, um acima do apartamento da jovem, Ezequiel abria uma lata de refrigerante e um pote de creme de avelãs. Ligou a televisão e viu notícias sobre o trágico acidente que lhe rendera uma excelente colheita aquele dia.

As autoridades contaram vinte e três mortos. Ele, dezoito abraços.

—Fazer o que quando ainda há almas puras no mundo? Nunca se pode ganhar todas as coisas…

 

O ceifador encostou-se ao metal gelado do revólver e deixou que seu calor o inundasse lentamente. De forma delicada abordou Camila, que já estava fora de si há muito tempo. Deu o conforto e o carinho que ela queria quando a envolveu em seus braços e abraçou-a fortemente.

Entregou-a arma e balançou o manto de penas pretas, fazendo-o cobri-la. Beijou-a e tomou-a por inteiro.

Um único disparo ecoou pela vizinhança, reverberando por todo o prédio. Com apenas um beijo do ceifador, tomou coragem para apertar o gatilho e acabar de vez com o amor que sentia pelo demônio fantasiado de gente.

O cheiro da morte pairou pelo ar e logo chegou aos pulmões de Ezequiel.

—Deixe com que se vá. Não há como parar a roda do destino.

Encheu a boca de pipoca doce e apertou o play no controle remoto, vendo o filme começar na tela da televisão.

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13 comentários em “Uma roda dentro de outra roda (André Luiz)

  1. Anorkinda Neide
    24 de março de 2016

    Olá… pena que eu senti o texto cansativo… demora muito em detalhes e pra que alguma coisa aconteça e quando acontece.. é rápido, fiquei meio no ar… algumas coisas nao fizeram sentido.. pq Camila viu tudo? e pq matou-se? na verdade, induzida pelo ceifador… sinto que algo fica no ar.. em todas as cenas.. rsrs
    e nao sao lacunas para se preencher, acho q é falta de ‘liga’.
    Preferiria o anjo negro mais malévolo e frio durante todo o texto para que a cena final ficasse mais encaixada.
    Mas é um bom texto, só o enredo mesmo, que eu sinto que ficou..no ar…
    por falta de entender até mesmo o que faltou :p
    .
    Abraço

  2. Bernardo Stamato
    18 de março de 2016

    Os únicos erros ortográficos que pude identificar foram várias vírgulas que faltaram no meio do texto.

    A história é boa, apesar dos sentimentos de Ezequiel serem clichês. As descrições são detalhadas e a narrativa é interativa. Ficaria melhor se Ezequiel tivesse demonstrado um sentimento diferente, talvez ter ficado na defensiva logo no começo por já ter passado por situação parecida antes.

    Nota 7.

  3. Daniel Martins
    18 de março de 2016

    Uma obra com boas ideias que foram mal executadas. Chama a atenção o uso de palavras mais difíceis
    estruturadas de forma tão desordenada. Faltam simples concordâncias de tempo e de grau que
    dificultam a leitura e deixam a experiência desconfortável.
    5,0

  4. Leonardo Jardim
    18 de março de 2016

    Minhas impressões de cada aspecto do conto:

    📜 História (⭐⭐⭐▫▫): tem um tom urbano e muito forte. Dá pra perceber desde o início que o Ezequiel era diferente, pensei que seria um anjo. À partir do acidente, a história começou a ficar um pouco confusa. Percebi que ele era um anjo caído conseguindo almas para o inferno, mas não entendi o que ocorreu com Camila. O fim, então, quando entra o ceifador, não fez nenhum sentido pra mim. Tampouco entendi com quem Ezequiel conversava no telefone, acho que ali estaria a peça que falta para a compreensão da história. Enfim, pode ter sido falha minha, mas saiba que li o texto duas vezes, então acredito que se o autor tornasse o fim menos nebuloso, o texto teria funcionado melhor.

    📝 Técnica (⭐⭐⭐▫▫): bem escrito, com algumas boas metáforas. A escrita me prendeu, pois trouxe bastante mistério, mas estava excessiva em alguns pontos como em: “Então você estuda? — Ezequiel mostrou-se interessado na vida pessoal de Camila”. A inserção do narrador após a fala de Ezequiel nesse exemplo acaba sendo um desacato à inteligência do leitor, pois está óbvio no diálogo. Nas cenas mais fantásticas, eu me desprendi da narrativa, pois não consegui imaginar tudo e o mesmo ocorreu com a cena final.

    💡 Criatividade (⭐⭐▫): anjos e demônios são comuns, mas esse texto traz uma história nova nesse meio.

    🎯 Tema (⭐⭐): mitologia judaica-cristã também está cheio de fantasias.

    🎭 Impacto (⭐⭐▫▫▫): gostei muito do texto até a “colheita”. Dali em diante, não consegui me conectar e entender a história o que tornou o final muito frustrante pra mim.

  5. ram9000
    18 de março de 2016

    A história é interessante e bem escrita em linguagem juvenil. Consegue trazer o elemento da fantasia para um ambiente atual e cotidiano. A descrição da cena do acidente foi bem convincente. Precisa de uma revisão.

  6. Carlucci Sampayo
    16 de março de 2016

    Excelente conto, onde o autor explora as mensagens subliminares presentes na personificação da morte como ‘o ceifador’,’o Anjo Negro’ e seu ‘abraço’, cuja significância transcende ao longo da narrativa, permitindo ao leitor a compreensão do enredo, de forma paulatina e suavizada. A relação de amizade\amor delineada de forma sutil torna mais forte o foco do personagens centrais e neste passo há o clímax do destino que impacta o encontro e o caminho da personagem – ainda que pareça haver brevidade nesta relação. Cria-se corpo e sustentação do enredo a cada linha do texto. As descrições são ótimas, o autor detém grande domínio da narrativa e utiliza as palavras com acerto e intensidade, a cada cena. A abordagem da chuva para iniciar o conto e a oportunidade de abrigo e ao mesmo tempo de consecução do intento do anjo é sutil e ao depois percebe-se a movimentação presente como forma do trabalho do anjo negro. Fantasia bem colocada, bem descrita, intensa e poetizada no cotidiano urbano, revelando os meandros do destino e da morte como sua idealizadora. Ótimo, muito envolvente. Nota 10

  7. vitormcleite
    16 de março de 2016

    História boa de seguir, muitos parabéns. Talvez o texto ganhasse se descrevesses mais os acontecimentos – sim eu sei do limite de palavras – mas tornavas a trama mais próxima do leitor. Parabéns pelo resultado, certamente vais passar à segunda fase.

  8. Eduardo Velázquez
    14 de março de 2016

    Texto legal. Nada a reclamar da gramática ou descrição. Universo interessante (principalmente os “abraços” do anjo). O maior problema foi o diálogo entre Ezequiel e Camila, ficou muito “romance adolescente”, poderia ser melhor. Nota: 7.

  9. Thomás Bertozzi
    13 de março de 2016

    Excelente! Envolvente e inesperado
    “Os cabelos eram chicotes de sombras, e o resto do corpo humanoide tremulava como em um filme antigo, desprendendo partículas tal qual poeira e cinzas.” Ótima descrição!

    Nota: 10

  10. Davenir Viganon
    11 de março de 2016

    Olá autor(a)
    A história começa bem, mitologia cristã (meio Anjos e Rebeldes) passada no Brasil, mas o final… não entendi direito, Ezequiel evitou que Camila fosse morar com o capiroto (OK), mas ele teve de se afastar Camila dando um fora nela para salvar a alma dela (ficou sem explicação ou eu não captei). Porque ela iria para o inferno? Camila parecia ter uma personalidade forte, mas se matou depois de levar um fora? Espero que seja outra coisa, caso seja isso mesmo, humm não gostei…. Caso seja outra coisa e eu não tenha entendido nada (o que saberei apenas depois de levantarem as cortinas), peço desculpas adiantado.
    No mais, os anjos, capirotos e o mundo espiritual se manifestando diretamente no conto (e não por relato), é Fantasia com certeza!
    Gostei da descontração no inicio e a evolução até a parte fantasiosa e o clima pesado que vem depois. Os personagens tem uma química boa, com um clima de cotidiano, apesar da minha compreensão possivelmente errada da história ter atrapalhado a apreciação geral. A escrita fluiu bem (no início) pelos diálogos fluidos e de acordo com os personagens.
    Um abraço, boa sorte no desafio e que eu seja o único burro que não entendeu 😀

  11. JULIANA CALAFANGE
    9 de março de 2016

    O mote é bom, ainda que batido. Eu cortaria uns 2/3 do texto, deixando apenas o q é relevante para o entendimento e para o envolvimento do leitor com os personagens. Me pareceu excessivamente descritivo e acaba não deixando que a gente enxergue os protagonistas de perto, sinta o q eles sentem, veja o que eles vêem. Nesse sentido, faltou corte, construção de personagem e tb uma boa revisão de texto…

  12. Evandro Furtado
    8 de março de 2016

    Uma revisão cairia bem, passou uma meia dúzia de problemas por aí. Confesso, que você deu um tom interessante à trama, a ponto da cena do acidente causar um efeito interessante. Normalmente, nesse tipo de texto, a morte perde um pouco do peso, não foi o seu caso. Você conseguiu trazer um incômodo nas imagens que representou. Gostei bastante das almas rastejando para fora dos veículos.

  13. Brian Oliveira Lancaster
    7 de março de 2016

    OGRO (Objetivo, Gosto, Realização, Ortografia)
    O: A tensão criada e atmosfera foram muito boas. Mas, sinceramente, tirando os “anjos”, não sei se o tema se encaixaria na fantasia. Está mais para fantástico, um suspense de terror leve. – 7
    G: Gostei da condução do “relaxamento” até o plot-twist explosivo (mesmo não sendo explicado). A quebra é brusca, mas aqui funcionou, em minha opinião. Só achei a parte das assinaturas do contrato um pouco confusas. Não consegui entender o que se passava ao redor naquele momento (ou o tempo parou?). Traduzir o cotidiano de uma quase criatura nem sempre é fácil, mas no geral foi bem conduzido. – 8
    R: O texto cria uma boa tensão inicial, para depois “jogar na cara” as reais intenções. O final foi bem blasé para o que estava sendo proposto no desenvolvimento. E isso não me agradou tanto, pois tem a escalada, depois o pico, e desce muito rápido a expectativa. – 7,5
    O: Texto leve, fluente e bem escrito. – 9
    [7,8]

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Publicado às 5 de março de 2016 por em Fantasia - Grupo 2 e marcado .
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