João era um rapazinho curioso. Suas feições eram magníficas. Bem, preste atenção no que disse; ele não era belo, mas sim magnífico, como uma obra de arte, onde até mesmo as imperfeições a tornam grandiosa.
O pequeno possuía cabelos de índio, e seu corte lembrava-me aquele desenho animado… Como era mesmo o nome? Ah sim, é claro… “Mogli”. O corte era o mesmo. Aqueles olhos pareciam os de um tigre. Sim, o danadinho era dono de um olhar de fato desafiador. Já aquele rosto, bom, ele era um pouco quadrado, mas nada que diminuísse a beleza do rapazote.
A vida do pequeno não começou da melhor maneira, ainda assim Deus havia reservado um pouco de sorte para o guri.
Quando ainda era um bebê foi abandonado em uma lixeira, onde ficou por horas. Lá, sozinho, misturado ao lixo daquela caçamba ele chorou até que o som irritante e inocente despertou a atenção de Dona Chica, uma velhinha meio biruta, mas de um coração grandioso.
A mulher era catadora de lixos, daí entende-se por que ela o achou na lixeira daquele bairro famoso, chamado “Dom Pedro”.
Aos cuidados de dela o bebê cresceu. Sim, o tempo passou e ele se tornou um garoto sem maldade, cheio de vida, simples e humilde. Já tinha quatorze anos e nunca havia frequentado uma escola. Quando dava hora, ficava lá, todos os dias observando a garotada indo e voltando com suas mochilas e livros. Felizes e uniformizados, enquanto ele sempre estava ali, sujo, com seu carrinho de compras. Acompanhado de sua mamãe que já estava tão velhinha que andava toda encurvadinha pela rua, cansada e avoada como sempre. Lembro-me bem de vê-los caminhando por diversas vezes pelas ruas calçadas daquela urbe, guiando aquele velho carrinho.
Assim que terminava seus afazeres, após revender todo seu lixo para o Sr. Morais, da reciclagem, ele seguia para sua casa que ficava lá perto do viaduto da rua treze, num aglomerado de casas do governo, que abrigava várias famílias.
A casa tinha apenas três cômodos e um banheiro, mas ele cuidava tão bem dela que parecia um pequeno palácio, de tão limpa que ficava. Depois do banho saia correndo, de cabelo penteado, perfumado, e pegava sua bicicleta velha, a mesma que seus colegas apelidaram carinhosamente de “transplante ambulante”; isto porque havia sido montada com peças que ele encontrava no lixo, e cada peça tinha uma cor diferente; rosa, amarelo, azul, preto, branco, parecia uma bicicleta fantasiada para um desfile de carnaval. João não se importava, pois ele sempre a mantinha limpinha. E lá ia ele, pedalando pela rua seguindo para sua fábrica de sonhos. Passava em frente à padaria e o padeiro dizia:
“Lá vai o Joãozinho faz de conta!”
E assim se seguia… O açougueiro, o pedreiro, todos que o conheciam assim o chamavam.
Ele percorria cerca de 6 km para chegar ao seu destino; “a biblioteca municipal”. Lá ele entrava e escolhia livros, se sentava sozinho em sua cadeira próxima a janela, e folheava como se soubesse realmente ler. Até que conhecia algumas letras, tentava aprender sempre outras novas, mas tinha vergonha de que a doce bibliotecária e os outros leitores soubessem que ele não sabia ler. O garoto adorava as histórias, as conhecia pelas gravuras. “Pinóquio”, “Cinderela”, “Branca de neve e os sete anões”, “Os três porquinhos”, “O pequeno polegar”… Eram tantas, e ele ali se deliciando com aqueles desenhos. Ficava horas lá dentro. A Dona Dalva, bibliotecária, sempre comentava com todos que ali chegavam:
“Aquele é meu leitor preferido, o Joãozinho. Assíduo, vem todos os dias e adora ler contos infantis, é um menino educado e responsável, não faz sequer um barulho na biblioteca”.
E ele continuava, entrava e saia todos os dias.
Certa vez um de seus vizinhos, que não era lá uma pessoa muito amiga o viu na biblioteca.
– Ué menino, tá aí fazendo o que com este monte de livros, se você nem sabe ler? – De certo ele fez aquilo justamente com a intenção de constrangê-lo. Sempre tem aquelas pessoas, aquelas que chegam a ser insuportáveis.
Todos olharam para ele, surpresos. Havia uma pilha de livros ao seu lado. Dona Dalva permaneceu sentada, o observando, e o pobre coitadinho todo sem graça, agarrado ao livro, quase se escondendo atrás dele. Percebeu que todos o olhavam, alguns surpresos, outros até segurando para não rir, e como sempre tiveram aqueles, é, aqueles que infelizmente riram.
Joãozinho deixou a biblioteca, correndo e chorando, montou em sua bicicleta transplante e saiu voando. Pedalava tão rápido que no meio do caminho, ao passar por um buraco caiu e quebrou o braço esquerdo. Foi parar no hospital onde o ortopedista lhe colocou um gesso.
Estava deitado na cama, olhando para o ventilador que girava no teto, com medo que aquela coisa se soltasse dali, quando recebeu uma visita por demais inesperada. Era Dona Dalva, a bibliotecária, que em seus braços carregava o sonho do garoto.
– Oi menino, como está seu braço? –A voz soou ainda mais doce que o normal.
Ele a olhou ressabiado, e ainda sem graça.
– Tá quebrado – Ela sorriu, mas um riso doce.
– Bem, trouxe-lhe um livro – disse estendendo as mãos para ele.
– Pra quê se eu num sei lê? – Retrucou de cara amarrada.
– Fiquei sabendo de seu apelido. Procurei saber onde você mora e descobri o que lhe aconteceu. ”Joãozinho faz de conta” – ela deu um leve suspiro – Gostei. Fazia de conta que sabia ler, e fazia isso tão bem que me enganava não é? Você é bem espertinho, sabia? Pois bem, vou deixar esse livro aqui com você, e amanhã voltarei pra te visitar novamente – Ela olhou para ele mais uma vez, lançou um sorriso e foi embora.
O falso orgulho do garoto durou pouco. Foi só ela sair e Joãozinho abriu o livro com a mão que ainda estava boa, logo descobriu a primeira página. E lá estava aquele bicho lindo, a arara, e debaixo dela uma letrinha. Aquela ele conhecia, era o “A”. Ele então logo soube o que a Dona Dalva queria.
Continuou ali imaginando, fazendo de conta, e cada animal, cada letra tomava vida em sua mente. As que ele desconhecia, que conhecia, e até aquelas outras que sua mente fantasiava. O garoto criava asas…
No outro dia lá estavam eles. Ela mostrava a letra e dizia:
– Está vendo! Esse é o “E” de elefante – E ele repetia:
– E!
– E esta qual é? – perguntava animado. Ela respondia:
– Veja o animal ao lado.
– Parece uma galinha. Não, não… É um urubu – Joãozinho deduzia.
– Pois é; este é o “U”.
E logo ele saiu do hospital. Foi para casa, e como não podia ajudar a sua mamãe Chica devido a mão quebrada, todos os dias Dona Dalva ia visitá-lo. O tempo passou e uma forte amizade ali cresceu. Dalva se tornou sua professora até que ele pudesse ser matriculado, o que aconteceria somente no ano seguinte. E assim se passaram os meses e ele entrou para escola, mas não deixou de ter lições com aquela senhora gentil.
O tempo foi passando e o menino se tornou um belo homem. Sua mamãe caduquinha com o passar do tempo veio a falecer. Ele seguiu estudando. Formou o ensino médio e arrumou um bom emprego, graças à indicação de Dona Dalva. Decidiu fazer faculdade, trabalhava de dia, estudava á noite, e seguiu até se formar mais uma vez. Joãozinho decidiu nunca parar de estudar.
Queria ser professor, e professor um dia se tornou. Dona Dalva se encheu de orgulho, um laço forte se formou entre eles. O menino Joãozinho cresceu. Seu único aluno, sua única companhia.
No dia de sua formatura na faculdade ele fez uma linda dedicatória para as duas mães que cuidaram dele tão bem. E foi lá que Dona Dalva resolveu lhe contar uma história.
– João, vou te contar algo que nunca contei pra ninguém. Sabe… Eu te tenho como um filho e não me vejo merecedora dessa dedicatória. Você entrou na minha vida de um modo mágico, mas eu não sou uma pessoa tão boa como você pensa – Os olhos dela começaram a lacrimejar – Quando ainda era uma jovem, tive um filho, mas não o queria, era uma tola, tinha medo e o coloquei em uma lixeira – suas lágrimas escorriam pelos olhos, percorrendo a face já enrugada pelo tempo – o deixei em um bairro rico para que pelo menos fosse educado bem, se tornasse um homem melhor do que eu pudesse o tornar e nunca mais o vi – João a encarava, e Dona Dalva vislumbrou aqueles pequenos olhos de índio, aquele olhar do menino Joãozinho que ainda vivia dentro do homem à sua frente – me arrependo tanto disso, eu era uma tola – ela desabafou.
Joãozinho continuava a olhar para ela, incrédulo, inquieto. Não dava para saber se ele a entendia, se a perdoava. Aquilo deixou Dona Dalva ainda mais insegura. E então a perguntou:
– Onde a senhora o deixou? – Dona Dalva se assustou com a pergunta, pois fazia tanto tempo. Mas ela se lembrava de cada passo, de cada gesto, do choro do bebê quando deixado no lixo, daqueles olhinhos apertadinhos. Lembrava-se de ter corrido com todas suas forças, e de ter voltado para buscá-lo depois de algumas horas, e nunca mais tê-lo achado. Afinal, por que o havia atirado no lixo e não deixara a porta de uma daquelas casas chiques. Os erros acontecem de maneira misteriosa, e o destino, ah, aquela pouca sorte que sobrara para a criança seria a sorte necessária.
– O deixei no bairro Dom Pedro – Respondeu.
Uma forte sensação tomou o homem, que chorava feito uma criança. Soluços incontidos, lágrimas guardadas em um submarino naufragado arrebentaram escotilhas e jorraram para fora de seu ser. Ele não se conteve, não importava o tempo, os erros, não. Aquele foi um momento de redenção. João, o Joãozinho abraçou-a com toda força em meio a um turbilhão de emoções. Ela retribuía o abraço sem saber o porquê de toda aquela emoção.
– Estou aqui mamãe – ele disse entre riso e choro – Sou eu, aquele bebê que minha mãe Chica encontrou na lixeira – lágrimas molhavam seu rosto – Sou eu, seu filho perdido – Ele revelou em prantos – Aquele mesmo que você ajudou a educar. Sempre estive do seu lado, sentado naquela cadeira fazendo de conta que você lia histórias pra mim – o choro do garoto crescido, chegou junto aos soluços rasos – Enquanto eu admirava as figuras. Sou eu. Seu filho, mamãe! O menino que você ajudou a se tornar um homem – Mais lágrimas – O seu Joãozinho!
Todos que estavam ali assistindo a cerimônia, todos que conheciam o garoto e o admiravam fizeram questão de participar daquela festa. Nunca vi um salão tão cheio em minha vida, nunca vi uma cena tão marcante.
Dona Dalva caiu de joelhos em meio as pessoas naquela cerimônia, não sabia se agradecia a Deus ou se pedia perdão ao filho. Filho esse que a segurou pelos ombros e a levantou. Disse inclusive que nunca sentiu mágoa dela, pois sua mãe biruta dizia que sua verdadeira mãe não era má, era apenas uma pessoa com problemas. Ela o havia ensinado a não ter este tipo de sentimentos. Ele abraçou-a e todos aplaudimos aquele momento mágico.
E daquele dia em diante não era mais Dona Dalva, era mamãe, e o laço que os unia ficou ainda mais forte. O Joãozinho continua estudando até hoje, com uma diferença; ele não faz mais de conta. É muito feliz com sua querida mãe Dalva.
Ainda vejo Joãozinho, não consigo chamá-lo de João, simplesmente não caiu a ficha que ele cresceu.
O tempo passa rápido demais, a idade chega de maneira quase que inconveniente, entretanto tenho boas recordações. Lembro-me dele e sua bicicleta, e me lembro daquele garoto empurrando aquele carrinho de lixo… Recordo-me do Joãozinho fazendo de conta que a vida poderia ser bem melhor. Só aí percebo o poder de um pensamento positivo. A fé é um dom grandioso.
Gostei e concordo com o que a Anorkinda comentou.
Fala, Sidão!
Esse aqui eu já havia lido e comentado. Mas percebi que você deu uma boa revisada, certo? Ainda sobraram umas bobeirinhas, tipo “á noite” e a parte da biblioteca onde fala “aqueles que riram” ficou meio confusa essa frase.
Não tenho certeza se você alterou o começo, mas acho que sim… na minha memória, a história original já entregava a identidade da mãe logo de cara. Não tenho certeza se era isso, mesmo, mas em todo caso, aqui não ocorreu isso.
Algumas passagens achei que ficaram meio carregadas na “doçura” e nas lágrimas, foi meio uma pesada de mão pra fazer o leitor se emocionar. Não funcionou muito bem comigo.
O final, como comentado pelos colegas, ficou bem novela mexicana.
Abraço!
kkk..
Cara, obrigado mesmo pela releitura.
Não, o inicio não entregava não.
Mas continuo aceitando as suas dicas., sempre muito coerentes, Fábio!
Li na madrugada, Sidney.
Gostei de saber que é texto antigo..hihihi
Realmente os personagens são ótimos… tente reescrever com mais leveza e dê mais destaque à mãe destrambelhadinha.. me identifiquei com ela.. 🙂
A cena da descoberta da mãe biológica do menino realmente tá muito mexicana… acho que ele poderia descobrir q Dalva era sua mãe (mas não com a fala dela tão longa, de uma forma mais sutil…) e o texto terminar ae..com um final aberto, só para o leitor saborear a descoberta sozinho.. pense nisso.
Abração
Respondi ao Rubem com meu log do DTRL, foi mal! Risos…
Obrigado pelo comentário Anorkinda!
Uai sô… Tem itálico aí é? Nem vi isso não, Rubem….haha, Só agora que percebi.
Mas assim, esse conto é mais antigo e justamente o coloquei aqui com o intuito de sentir um pouco do que vocês, autores e leitores do EC, acham da estória, pois é um conto realmente que gosto muito, porém pensou eu que carece de uma reestruturação.
Nada melhor que a opinião dos amigos.
Brigadão!
Olá, Sidney. Olha, eu gostei do início do conto. Contudo, pensei que o Joãozinho Faz-de-conta seria um menino mais imaginativo. Por exemplo, a bicicleta feita de mil pedaços de ferro-velho é algo bacana e um menino capaz de superar sua penúria material com imaginação e otimismo seria algo doce de se ler, é o tipo de coisa que me encanta.
Não gostei muito do arco final. Aprender a ler com o auxílio da bibliotecária não foi ruim, mas que ela fosse a sua mãe que o abandonou, humm, junto com deixar o bebê numa caçamba de lixo, ficou meio novelesco pra mim.
Quanto à escrita, faltou revisar um tanto mais e não entendi o motivo do itálico a partir de certo ponto do conto.