Benedita…
Ao longe não lhe parecia uma visão tão sufocante. Era um vulto, uma figura – um espantalho. Poderia fingir que não era ele. Era outro, algum outro, mas não ele. Um ladrão, um assassino, um traidor… Um dos muitos pecadores que ao passar dos anos haviam acabado erguidos naquele local em que ele agora se encontrava. O pescoço enlaçado por uma corda, as suas ripas enterrando-se-lhe na carne, antes de os corvos acabarem com ela.
Teria os olhos revirados em agonia? A boca escancara em terror? Duvidava que ainda tivesse, sequer, pálpebras ou lábios. O seu rosto, o belo rostomque ela amara, não deveria ser mais do que um horror em decomposição, acompanhando o balançar agonizante do corpo morto. Pesado, inútil. Putrefacto.
Benedita…
O suor descia-lhe pelo corpo, fazendo-a sentir-se pegajosa e humedecendo-lhe os lençóis. Revirou-se. A respiração martelava-lhe o peito, magoando-a. Sonhara? Ainda sentia a delicadeza dos seus lábios contra os dela, a ferocidade com que se exigiam um ao outro, conhecendo os perigos de o fazerem e de o arriscarem.
Mas ele já respondera pela afronta. “O pai certificou-se.” Podia vê-lo pela janela do quarto, vigiando-a do morro dos enforcados, até o cadáver pútrido acabar por ceder às vicissitudes da corrosão e das aves que dele se alimentavam.
Levantou-se.
Benedita…
A vela bruxuleou na sua mão, enquanto apertava o xaile de encontro aos ombros. Tinhas as mãos rígidas, brancas, algures entre o medo e o frio. Os pés descalços seguiam, um passo atrás do outro, abraçando o chamamento que lhe ressoava no peito. Quantos dias haviam decorrido desde a promessa que lhe havia feito? Não sabia. Recordava-se de lha fazer pouco antes do início do pesadelo. “Seguir-te-ei” dissera-lhe, enlevada no momento de eterna ventura que sentia. “Onde tu fores, eu estarei lá.”
Ainda não o fizera. Ele fora e ela ficara, deixando que a agonia lhe domasse as acções, cegando-lhe os sentidos e restringido os pensamentos. Enlutara-se pela sua morte e chorara a sua sorte – mas o tempo de velório havia chegado ao fim. Ouvia-o, chamando-a, suplicando pela promessa ainda por cumprir. Como lho poderia negar? Desejava-o. Desejava-o como desde a sua ida não havia desejado por nenhum outro.
Benedita…
O ar frio parecia cortar-lhe a pele mal coberta. Por uns momentos, hesitou, um instinto vago para se manter quente e viva sussurrando-lhe que regressasse ao interior da casa. Não era seguro, não era aceitável.
Ignorou-o, avançando pelo caminho de terra, tropeçando na escuridão da noite, para a qual a luz da vela era pouco alento, e avançando, avançando sempre, na direcção do amado que por ela clamava. “Benedita, Benedita” murmurava, guiando-a, exigindo-a…
De perto, fazia-lhe sangrar o coração. Não havia olhos, tão bicados quanto roubados. A pele quase que desaparecera, caindo em tiras do que restava da carne apodrecida, fracamente agarrada ao osso branco. O cheiro enojou-a, violando-lhe os sentidos, despertando-a do torpor que a conduzira até ali.
Estacou, o medo imiscuindo-se como uma dúvida. Era ele? Como poderia ser ele? Não o reconhecia, não o via naquela imagem. Tão diferente, tão…
Benedita…
O sussurro dançava na brisa nocturna, acompanhando o ligeiro virar do corpo. Ergueu o queixo, fixando as orbes vazias que lhe suplicavam, os braços esqueléticos movendo-se ligeiramente na sua direcção. Deixou cair a vela, que chamejou numa última vitória, antes de se apagar de encontro ao chão.
“Prometo” dissera-lhe. “Seguir-te-ei.”
Esticou os braços, recebendo o seu abraço. O seu nome desprendeu-se continuamente dos seus lábios, clamando pela sua presença, pela companhia que lhe fora roubada e agora recuperava.
Benedita…
O ar gelado escapava-se-lhe dos pulmões, sufocando-a. Sentia a vida fugir-lhe, abalando do aperto em que o amado a envolvia, convidando-a para o seu lado, suplicando-lhe a sua paixão, auxiliando-a no cumprir da promessa que lhe parecia já ter chegado tarde.
Abriu os olhos, deparando-se com as suas feições recuperados, belas como ela se lembrava. A carne enchia-se sobre os ossos, revestindo-se com a pele morena. A névoa que lhe toldava a visão dissipava-se conforme a existência terrena lhe fugia por entre os dedos, tornando-o mais nítido a cada golfada de ar perdido. Sorria-lhe. “Benedita” ronronava, com o encanto de quem lhe dava um beijo. “Benedita…”
Sorriu-lhe de volta, sentindo-se rodopiar nos seus braços. Deixara de sentir o frio ou o receio da noite, dançando por entre as árvores encurvadas, rindo e chorando, enquanto ele a acompanhava, ignorando os demais corpos que assombravam ainda o morro.
“Desejaste-me? Sentiste a minha falta?”
Ela emudeceu, acenando uma afirmação pesada com um inclinar da cabeça.
“Nunca me chamaste…”
“Tive medo. Tive tanto medo… Se te chamasse, partilhar-te-ia com os outros. Os mesmos que te afastaram e condenaram. O teu nome era tudo o que me restava, se também o tivessem, rasgá-lo-iam, tirar-mo-iam e deixarias de ser meu, inteiramente meu.”
As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces, sulcando-as, sem que ela se apercebesse. Os dedos dele tocaram-na com ternura, limpando-lhe o choro por um receio que já perecera.
“Chama-me agora…” pediu, as mãos segurando-lhe as faces, encostando a sua testa à dela.
Ela chamou-o. Tal como prometera que o faria quando se lhe juntasse, quando o seguisse para onde quer que ele fosse.
Dinis…
Fui lendo como um conto de terror e a cada parágrafo se desenvolvia uma história de amor muito interessante. Era essa a intenção? Do terror ao amor? Ou era tudo amor e minha cabeça que sempre busca o horror no sobrenatural?
De uma forma ou de outra, texto belo. Tive minha sensação e expectativa desconstruídas de forma muito prazerosa. Gostei bastante.
Nem vou gastar palavras pra comentar; conto suave, belíssimo!
Já tem meu voto. Parabéns!
Bastante romântico, repleto do lirismo do português de Portugal. Gostei especialmente do jogo com os nomes, a repetição de “Benedita” ao longo dos parágrafos e a comunhão final, quando ela finalmente pode pronunciar o nome dele. A indefinição da realidade exterior (pode-se dizer que temos indícios, mas na verdade não sabemos, e penso que não precisamos saber, em que lugar e tempo a história se passa) contribui para iluminar as emoções e conferir uma certa atemporalidade ao drama dos amantes. Por outro lado, não pude me sentir tocado pela leitura: no seu desenvolvimento o conto tem sim algo de monótono, e o amor que apresenta é muito austero.
Outro belíssimo conto, parabenizo à autora!
Gostei. O conto me pegou desde o início, com sua aura romântica gótica à lá Poe. Escrita nota 10. Uma narração muito bem conduzida. Personagem paulatinamente apresentada, tal como gosto. Esperava um final um pouco mais energético, mas a conclusão dada serviu para fechar o círculo. Sem mais, é isso. Parabéns!
A escrita Impecável, a formalidade deu um tão suave ao conto. Até as partes mais “pesadas” foram descritas em tão de leveza. Incrível.
Não sou apreciadora de escritas neste formato,mas sei admirar algo bom quando é bom.
Meus Parabéns!
Boa Sorte!
Após ler uma série de observações sobre os comentários por mim postados neste concurso e suas respectivas respostas (infelizmente) concluí que fui tomado de certa pobreza de espírito. Em certos momentos nem fui técnico, muito menos humilde. Peço perdão a este escritor pelo comentário até maldoso por mim desferido. Sendo assim, apenas me resta ser breve: apenas não gostei. Mas seu esforço é louvável, a coragem de expor seus sentimentos sobrepõe qualquer palavra maldosa e deposito esperança em seu próximo texto.
Não é o estilo clássico que eu costumo ler, porém é muito bem escrito e me levou a excursionar por todas as descrições e dilemas psicológicos.
Parabéns!
Uma leitura bem agradável e um conto muito bem escrito; parabéns. Por inclinação pessoal gosto de histórias mais intrincadas, o que não é o caso desse conto.
É o primeiro conto que leio e gosto 100%. Parabéns!
Achei a escrita impecável. A forma como foi narrado, o português formal e de palavras difíceis deram uma cara diferente ao texto. Apesar de eu não gostar de textos muito rebuscados, esse me agradou bastante.
Meus sinceros parabéns e boa sorte! 😀
O melhor que li até agora, o favorito até o momento. Amei o lirismo mórbido, cheguei a imaginar necrofilia com a riqueza de detalhes. Como um amor suspirado.
Não há o que falar da escrita, simplesmente perfeita!
Me lembrou Augusto dos Anjos. É o meu tipo de leitura… Se houver outros trabalhos assim, tens aqui uma fã. Parabéns! 🙂
Foi o primeiro conto que li da temática proposta… Uhhh, que delícia de linguagem… Nem as mesóclises conseguiram me arremessar para fora. ADOREI. Viajei na escrita poética: descrições delicadas e conteúdos mórbidos, na medida. Uma história de amor que rompe com o real e se alinhava com o fantástico.
Primoroso.
Leve em descrever um corpo podre… Mas, mais uma alma penada por amor?! E morreu do quê para ficar penando por aí?! Fala sério!!
Até agora, um dos melhores! Adorei as descrições. De uma delicadeza impressionante. E para impor sutileza na descrição de um corpo putrefato pendurado pelo pescoço é preciso habilidade!
Em momento algum me importei com o português. Logo deu para notar a questão de ser europeu, principalmente por uma diferença de vocábulos (putrefacto, acções).
Sinceramente, não tenho críticas a fazer. Deixo aqui meus sinceros parabéns.
Sobre o título… Básico, mas eficaz.
Sobre a técnica… Muito bem escrito. Gostei das doses bem colocadas de lirismo. O conteúdo classudo do texto também dá uma sensação de algo antigo, o que fica bom na estrutura da narrativa. Por outro lado, acho impraticável o uso de linguagem classuda nos diálogos. Nem mesmo em épocas antigas se falava assim, tão cheio de próclises e mesóclises… Senti falta de revisão, para corrigir falhas de digitação e ortografia (humido e “quantos dias haviam” naaaaaaao).
Sobre a história… Um amor muito bem criado, que consegue romper as travas da morte e se revela, mesmo que num ente apodrecido e irreconhecível. Sinto que Benedita só foi capaz de reviver seu amor porque morreu. Por isso Dinis lhe pergunta por que não antes. De qualquer forma, gostei. Um texto simples, direto e bem escrito. Não sei se bem escrito o bastante para vencer diante do que ainda vem por aí, mas foi o melhor até agora dos que li.
Sobre o final… Amarrado, belo e dentro do que compreendi dele: Benedita morreu para viver o amor eternamente ao lado de Dinis, que assim voltou a ter corpo. Gostei!
Eu pretendia responder aos comentários apenas no final, e farei isso com os restantes, mas não podia deixar de esclarecer as “gralhas”. Como alguns leitores repararam, o conto encontra-se em Português Europeu, e pelo menos os exemplos citados são diferenças que existem entre PE e PB, e não gralhas. Quanto ao “haviam”, a sua conjugação está aqui bem explicada: http://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI127068,41046-Haviamse+passado+varios+anos
Quanto ao restante do feedback, muito obrigada =) Deixo a interpretação para cada leitor (considero ser um direito dele… Desde que não veja racismo, homofobia, machismo, etc, onde não existe :P), pelo que não interfiro nisso.
Eu comento antes de ler os comentários, depois eu vi sobre o português original 🙂 Bobagem minha, que pensei em linguagem brasileira antiga, ao invés do europeu. Um abraço!
Além da escrita impecável, o conto chama a atenção por se tratar de uma história de amor. Um tanto mórbida, é verdade, mas nem por isso pouco cativante. No entanto, vou aqui fazer uma crítica: queria uma história mais abrangente, mais longa, algo que desse substância à relação entre Benedita e Dinis. Não que o amor entre eles esteja mal desenvolvido, mas é que poderíamos ter sido brindados com aspectos mais profundos de suas loucuras. No geral, entretanto, dúvidas não existem: o conto é ótimo.
Também gostei. Achei leve, bem narrado, sem erros; profundo na intensidade de amor que passa, na promessa cumprida. Parabéns!
Muito bem escrito, embora esse tipo de linguagem não faça muito o meu estilo. A história instiga e o autor demonstrou bastante criatividade ao elaborá-la.
Olá. Estranho que tem muita descrição que normalmente seria “nossa que horror”, “nojento eca”, mas que aqui de algum jeito passaram como se fossem partes normais, quer dizer, fosse isso um curta metragem, todo mundo ia comentar como a mocinha ficou abraçando um cadáver todo molestado por aves e decomposição. Mostra que você soube colocar a atenção onde queria sem fugir pro romantismo da morte bela e honrosa. A construção, colocando o nome entre cada sessão, também deixou a leitura mais fácil. Isso dito, e notada a habilidade envolvida, minha preferência em questão de estilo é outra, e esse texto não é bem pra mim. Mas bom trabalho mesmo, bastante benfeito. Abraços
É com alivio que termino a leitura deste conto.
A qualidade da narrativa é inegável, a autora nos conduz por uma história de amor que ultrapassa as barreiras da morte.
Sinto alivio por já ter lido quase todos até aqui e ainda não tinha visualizado sequer o décimo colocado, este merece estar entre os melhores, apesar de não ser bem o meu estilo.
Parabéns e também acho que já identifiquei a autora pela escrita peculiar.
Também senti esse alívio, Marcelo!!! Não estava vislumbrando sequer o décimo colocado, mas agora tem esse que com toda a certeza estará entre os meus 10 melhores, senão o melhor! Sim, eu amei, pois faz bem o meu estilo!
Adorei o conto!
Acho que é o primeiro – e sim, eu sou uma chata – que eu não tenho nada de mal para dizer!
Ele é suave, é fácil de ler e flui perfeitamente.
Além disso, fugiu do esteriótipo que fantasma tem que ser mal que todos os outros estavam demonstrando.
Parabéns!
LINDO, LINDO, LINDO, LINDO!
Eu não posso dizer mais nada sobre esse conto. Completamente encantada!
Perfeito, não é, amiga? Como música aos ouvidos!!!
Eu estava fazendo um conto nesse estilo, muito parecido, para o desafio, mas tive que fazer uma mudança de planos por conta dessa lindeza!
Lindo demais Ana *-*
Eu também estava com a ideia de ambientar meu conto em uma biblioteca, mas vi que já usaram… também mudei os planos.
Estou super curiosa para saber quem é o autor/a
Eu já sei amada, é o mais fácil de descobrir, por conta do linguajar típico de Portugal! Beijos!!!
Puxa, que bonito, que agradável leitura! Só tenho uma coisa a dizer: obrigada. =)
Achei muito bem escrito. Só não gostei muito porque fugiu da visão que tenho sobre o tema Fantasmas. Sei que é um tema muito abrangente e a criatividade pode render contos de diferentes tipos, mas eu tenho a minha visão e nela o conto não se encaixou. Mas, se liga, essa é minha opinião quanto ao enredo. O resto está muito bom. Gostei das palavras escolhidas e das descrições. Parabéns;)
Muito bom conto. Curioso que, pouco antes, estava a discutir sobre Romeo e Julieta… e eis que pude vê-los aqui, em Benedita e Dinis, como bem disse o Ricardo.
Parabéns!
Também logo percebi se tratar de um autor que não utilizou o português do Brasil. É um toque diferencial. Pode até ter sido proposital.
O nome Benedita repetido como um eco na memória gruda mesmo em nosso pensamento enquanto vamos lendo.
Sou suspeita para avaliar o conto porque tenho verdadeiro vício quanto à prosa poética. Ao mesmo tempo fiquei assustada ao imaginar um cadáver em estado de putrefação. Enfim, ainda estou dividida quanto às sensações que o conto despertou em mim. Impacto causou, com certeza.
Boa sorte!
Claudia, acredito que não foi proposital não… À propósito, já sei quem é a autora apenas por essa particularidade!
Eu também já descobri, Ana. 🙂
Um texto fantasmagórico e romântico. Sim, é possível. Um romantismo mórbido e frio. Amor e morte. Além da morte.
A sensação foi a de estar lendo um texto escrito por uma Julieta à lá “a noiva cadáver”, e que não houvesse surgido das linhas de Shakespeare, mas sim de Camões. 😉
Uma leitura bem diferente.
Boa sorte!
A leitura é bastante leve, agradável. Fiquei com a impressão que estava ouvindo algo como uma canção, ou vendo uma cena bonita em um quadro, presa em uma memória que sequer é minha! O nome “Benedita…” ficou ecoando bastante tempo na minha memória! Deu pra notar que se tratava de um português, não um brasileiro, pelo linguajar utilizado.
É um texto que destacou-se dos demais pela beleza nele expressa, e é o meu favorito até o presente momento!
Parabéns, gostei muito mesmo!
Um abraço!!!
Só uma observação “o belo rostomque ela amara”. Há um erro de digitação nessa parte, sendo que o correto seria “o belo rosto que ela amara”.