São Paulo – Brasil
Dentro do envelope havia uma folha batida a maquina e uma mensagem intrigante em inglês.
“Saudações aos convidados de todo o mundo. Alguns de vocês serão conhecidos íntimos, meus ou de alguns dos outros organizadores, os demais estarão presentes pelos trabalhos sociais, culturais, científicos prestados e notados nos canais de comunicação. Partimos do micro ao mega, nesta que é das mais incríveis descobertas da humanidade. Um experimento que mudará vidas, políticas, percepções. Nós, diante do fim do mundo. Vocês acreditam? É uma proposta séria. Um estudo que vem já de uma década. O local foi montado, o dinheiro investido, os interesses criados. É hora da mídia, é hora da parte professoral dar um guia aos comuns. Não queremos por em sigilo tal evento. Queremos abrir o mecanismo para todos, mas aos poucos. Tudo está pago, passagens, hotel, comida. O que queremos é que vocês gastem seu tempo humano conosco. Sejam bem vindos, testemunhas. Mãos preparadas para relatar. O que será? Não cabe nesta carta para lhes passar. Venham. Espero estar com credencial suficiente para convencer a todos. O destino é a Bolívia. Foram as melhores leituras geográficas para o fenômeno. Desejo boa jornada. Até breve”.
Com os nossos melhores cumprimentos
Howard Young Bell & Horology’s Time Center
Poucos dados, convite obscuro. No inicio isso me irritou. Parti para longos telefonemas entre colegas jornalistas que viviam na Inglaterra. Na internet havia muita coisa, principalmente sobre o “Centro dos Horologistas do Tempo”. O termo “horologista” foi algo de curioso, a definição mais apropriada para ele foi esta:
Horologia – É a ciência da medição do tempo, a palavra tem origem no grego, hora (instante no tempo) e logos (raciocínio). O Horologista é um pesquisador abstrato, não um construtor de relógios. No entanto esses dois aspectos acabaram se sobrepondo em uma única pessoa.
Descobri que o senhor Howard Young Bell havia sido, por vinte anos, o relojoeiro dos mais de mil relógios instalados no Palácio de Buckingham e era figura conhecida no meio acadêmico, autor de livros técnicos sobre engrenagens de relógios. Mas o quê faz um “horologista” nos domínios da rainha? Acredito que teorizar sobre vasta coleção e ao mesmo tempo lustrar e botar em ordem os ponteiros.
Na carta-convite, a data para o suposto evento estava logo após a mensagem e de acordo com ela, em uma semana eu teria que tomar a decisão final, se valeria a pena a viagem.
La Paz – Bolívia
– ¿Una moneda, señor?
– No.
– ¿Qué tal una mano con el equipaje?
– No, no tienes que.
– Teu espanhol, colega, tem dificuldades, hã?
Olhei para o lado e lá estava de prontidão meu guia, com um sorriso erguendo o bigode ralo.
– Hugo?
– Nuno Marega?
– Si.
– Puede hablar português, señor Nuno. Meu pai é Recifense.
– Ah, que bom. Vamos, então. Gostaria de dar o “check-in” o quanto antes. Este hotel que me foi reservado, Oro Y Oro, é razoável ao menos?
– Es un tres estrellas en el centro de La Paz. Muy atentos.
Após acertar a documentação, arrumei a mochila no quarto. Trouxe poucas coisas para uma viagem de três dias. La Paz me impressionou de forma dúbia. Uma parte do visual encheu-me de empolgação, as ruas lotadas de Mini Vans e barracas de tudo que se poderia imaginar. O que me pôs mais curioso foram as vendedoras de remédio. Vendiam cartelas de comprimidos diversos, dor de cabeça, azia, dor muscular, osteoporose, diarreia, tudo espalhado na mesa. Hugo esperava-me na recepção. Havia acabado de receber uma ligação de um outro guia de expedição e então apressou-me a entrar no carro. Após vinte minutos de trajeto saímos do asfalto e entramos numa estrada de terra que nos levou até um descampado do qual ainda víamos a cidade de La Paz. Disse a ele que achara que seria uma viagem mais longa e ele apenas fez um estalo com a boca. Chegamos a um galpão com pintura descascada, uma antiga fabrica de farinha de milho.
– Nos vemos na volta, senhor Marega. Lhe pego aqui conforme fui instruído.
– Quando?
– Amanhã de manhã.
Uma nada boa surpresa saber que passaria a noite em um lugar estranho. Um rapaz que se apresentou como Jorge Zi, jornalista boliviano encarregado de receber os convidados, saltou de dentro do galpão e, após um entusiasmado cumprimento, retirou a relação de nomes do bolso e riscou o meu. Estava ligeiramente envergonhado da inabilidade com o idioma local. Felizmente todo o restante transcorreu dentro do idioma inglês.
– Senhor Nuno, também vou cobrir o evento. Cresci na região, escalaram-me para dar boas vindas e ajeitar todos os estrangeiros. Fala bem inglês? Estou pensando em priorizar a linguagem durante toda a viagem. O que acha?
– Acho melhor. Se estiverem esperando pessoas de diversas partes do mundo, o inglês cairá bem. Hã, para que região nós iremos?
Ele arqueou a sobrancelha e apontou para o oeste.
– Vamos para uma área pantanosa no meio de duas serras que ficam entre La Paz e Santa Cruz. O trajeto é por uma estrada improvisada pelo exército, numa passagem de transição entre a floresta e as pastagens do Chaco.
Jorge Zi estava empolgado e começou a detalhar a topografia da região, mas o cortei para sondar algo relevante sobre meu convite.
– Eu não conheço esse relojoeiro inglês. Não me passaram mais do que a localização da tenda e é o que sei.
Tudo bem, então era uma tenda. Mas que espécie de tenda? Imaginei que iríamos para algo construído de modo improvisado, mas muito maior que uma tenda. De resto, nada fazia sentido. Aos poucos, mais pessoas chegavam e mais impressionado eu ficava ao reconhecer uma parte delas. Jornalistas e escritores, dos quais apenas lera sobre, alguns entrevistei em outra época e outros, como no caso de Erik Von Daniken, eu gargalhei alto durante leituras. Assim que o vi cruzar o galpão apenas com uma pochete e um cantil, sabia que a coisa estava tomando proporções de pastiche. Ao invés de me deprimir, invadiu-me súbita euforia.
Cerca de dez bolivianos com roupas de garçom (Meu Deus, o que eram aquelas roupas?) chegaram através de um comboio de carros, com mais outras diversas pessoas. Notei de longe o grupo norte americano, em cinco homens. Tão manjados que enjoavam a paisagem, em calças cor de areia, bota militar, camisas azul claro e chapéu panamá. Todos condecorados com óculos polarizados e feições amarradas. Entre eles havia um cara mirrado, o único com um crachá. Sem perder tempo andei em paralelo com eles até o jovem jornalista boliviano. No crachá do cara mirrado estava batido a maquina: “D. B. International Organization – R. Langdon Team – Dr. Spencer Tray”. Eu ri por dentro, pois aquilo era ridículo. Todos tão sérios no meio da suposta equipe em nome do autor mundialmente famoso, Dan Brown, com um time chamado R. Langdon. Estava pronto meu Pulitzer, só que ao contrário. Apertei a mão de todos, intrometidamente e com a melhor das faces receptivas que velhos como eu sabiam posicionar. Não fiz questão de me apresentar e tudo ficou no ar.
De mão em mão, acabei por abraçar J.J. Benitez, pois vinha logo atrás dos norte-americanos e ele sim era a cereja do bolo boliviano. O apito da marcha ré de um ônibus soou e o trambolho manobrou para dentro do galpão. Um outro ônibus idêntico estacionou de frente. Rapidamente a equipe uniformizada de bolivianos se pôs a abrir as comportas do bagageiro e a organizar uma fila indiana. Fui ao ônibus que havia estacionado de ré, com o nome prateado “Aurora 1968”, esperando não ser aquele o ano de fabricação. Apesar dos dois estarem combalidos, por dentro, ao menos o meu, havia um aspecto confortável. Um rapaz entrou apressado e sentou ao meu lado, usava camiseta do Greenpeace e dreads que pareciam falsos.
– Eu sei quem você é.
– Bom, já que falou isso em português, eu quero saber agora quem você é. Mas antes, quem sou eu?
O jovem ajeitou uma bolsa de tricô no colo e retirou de dentro dela um livro, por acaso, um livro meu.
– Aqui, “Jovens da Natureza Noturna”. Não é coincidência. Uma das células brasileiras do Greenpeace acabou por me deslocar para cá, depois de feito o convite. Tiveram o informe do único jornalista brasileiro que também estaria aqui e… Bem… Sou seu fã.
– Certo. Obrigado. Muito gentil. Só me diga como souberam que eu estaria aqui?
– Twitter.
– Ah! Quem escreveu sobre mim?
– Cara, isso vai se espalhar. Saiu uma listagem anteontem através de um perfil falso.
– Ninguém sabe o que é. Você sabe?
– Talvez algo extraterrestre. Alias, me chamo Denis.
No meu ônibus foram também os norte-americanos, J. J. Benitez, Erik Von Daniken, um grupo de orientais e a tal equipe R. Langdon. Pomo-nos em silêncio durante o trajeto. Estava calor naquela salmoura grudenta sem ar condicionado. Encostei a cabeça na janela e vi ao longe o inicio da subida. Luzes de sirene giravam por de trás das palmeiras. Os dois ônibus pararam. Três policiais com uniformes verdes entraram para uma inspeção. Denis disse-me num sussurro que aquilo seria uma busca por drogas, coisa padrão. Eles passaram por nós todos, seguidos pelo motorista e por um dos guias. Não pediram documentos a ninguém e pararam diante da porta do banheiro, que nenhum de nós havia utilizado até então. A porta estava emperrada. Perdemos vinte minutos na insistência dos policiais em averiguar o interior do banheiro, impedidos de arrombar a madeira pelo afobado motorista. Dois norte-americanos se levantaram e apresentaram suas credenciais. “Como se fosse grande bosta”, pensei. Os policias bolivianos, por fim, nos deixaram em paz. Seguimos viagem, com um desconforto a mais, a certeza de não podermos ir ao banheiro. Imaginava um titulo para a grande reportagem, talvez um livro: “Horologistas, extraterrestres, florestas abafadas e autores medíocres”. Ridículo e portentoso titulo, com certeza.
Após uma hora e meia de subida, passamos a contornar a serra em descida, por entre uma estrada lamacenta e esburacada. Trovões e chuva nos recepcionaram naquela parte intrincada da viagem. Fiquei apreensivo e todos a bordo estavam acordados, agitados nos assentos. Eu olhava a encosta de cima a baixo, como se pudesse calcular o quão seguro era aquele caminho. Não pareceu nada seguro, ainda mais com as correntes de barro que jorravam cada vez mais fortes. As curvas eram lentas e, numa delas, fui o primeiro a avistar a tragédia iminente do segundo ônibus. Podia vê-lo uma curva acima, travando batalha contra duas rodas prestes a sair da pista de terra. Uma trovoada ensurdecedora acompanhou o desabamento da encosta. Gritamos em coro para o motorista frear. Todos colaram os rostos no vidro embaçado para ver a lataria rolar e soltar grandes pedaços por entre a vegetação. Meu estomago embrulhou naquela hora. O ônibus bateu como um prego a poucos metros de onde havíamos parado. O impacto final fora tão forte que pedaços de carne foram catapultados em direção ao painel do Aurora 1968. Então a gravidade puxou mais uma vez aquela massa de ferro e corpos e assim continuou o restante da descida, cortando caminho pela mata.
Imediatamente os norte-americanos foram até a porta do banheiro, passando a chutá-la com violência. Removeram as lascas e, no interior do fétido espaço, lá estavam empilhadas varias malas. Jogaram todas no corredor. Uma a uma foram abertas, mas o conteúdo era igual. Dezenas de pequenos relógios de azeite embrulhados em plástico-bolha. São parecidos com candelabros só que com um reservatório de vidro marcado em horas e preenchido por azeite, que aos poucos, quando aceso, queima na saída de um bico fino de porcelana. Um relógio obsoleto, por fim. Descemos do ônibus, todos pálidos, o motorista ainda ao volante, balbuciando nomes de santos católicos. Atolamos os pés no barro e um estrondo se sobrepôs aos trovões. Um ruído ímpar que pôs quase todos de joelhos. Parecia vir do sopé da montanha e infringiu dor aos nossos ouvidos. Como se duas vigas de ferro batessem em velocidade uma contra a outra, ligadas a amplificadores gigantes. Isso durou cerca de quinze segundos, como um castigo divino diante do trágico acidente. Estávamos apavorados.
O time de Dan Brown fazia inúmeras anotações e cada um deles buscava por um fio de sinal em seus celulares. Os orientais estavam em choque. Eu e meu compatriota estávamos encharcados, cada um com sua imaginação longínqua, filtrando a estranheza de tudo.
Brasil – Mato Grosso
Traçando uma linha reta do último ponto em que estive na Bolívia, estava a cerca de mil e novecentos quilômetros de distância. Três meses após o incidente, longe do calor úmido e abafado da serra boliviana, em meio ao calor seco do Mato Grosso e enxugando o suor da testa a cada dois minutos. O escopo dos momentos finais na Bolívia estava vivo na memória e em minhas anotações. Um comboio do exército boliviano nos resgatou após seis amargas horas. Jorge Zi havia morrido dentro do ônibus que rolou para o inferno verde. Nenhum dos corpos foi resgatado. Ninguém pediu desculpas, não fomos interrogados, nada, absolutamente nada. Recebi no hotel Oro y Oro uma mensagem do meu guia inicial, Hugo, dizendo que tudo seria manejado para o Brasil, em algum lugar do Mato Grosso e novas instruções seriam passadas. Fui sem delongas para o Mato Grosso, disposto a dar um final para essa história que dera uma reviravolta tremenda.
Denis acompanhou-me desde então. Estávamos ligados pelos eventos passados. Percorremos de Jeep quatro horas de estrada, em melhores condições que a anterior, mas ainda chacoalhando por terra vermelha e cruzando dois riachos. Num entroncamento, cruzamos com mais três Jeeps. Estavam lá os sobreviventes do “Aurora 1968”. Mais alguns metros de percurso, então uma sombra deitou sobre todos nós, vinda de uma estrutura híbrida em forma de concha. No interior dela emanava grande escuridão e antes, na entrada, cerca de vinte homens e mulheres conversavam entre si.
Um jovem senhor, bigodes alourados deitados até o final do queixo e uma vasta cabeleira ruiva arranjada como uma onda viciada pelo vento para ficar sempre a extrema esquerda, trajava um terno muito fino, mas de um azul claro que dava pane em minha percepção. Este exótico homem pôs-se a frente do nosso grupo e apertou com firmeza a mão de cada um de nós. Apresentou-se como Howard Young Bell e introduziu o restante de seu grupo, que mal olhou para nós, chamando-os como “Homens-Relógio, Mulheres-Relógio e Horologistas desbravadores do humano atemporal”.
Um adolescente franzino, com dois tampos grossos de vidro perfazendo seus óculos, corria atarefado por entre todos os pontos daquele circo. Ele trazia relógios de azeite, inúmeros, e os disponibilizava ao lado de cada um de nós, soltos ao chão com desmazelo. Isso trouxe à minha memória visual toda a tragédia do qual fora testemunha. Por conta disso dei dois passos discretos para trás enquanto olhava para Erik Von Daniken que olhava em retorno bem nos meus olhos com um meio sorriso sacana. Ele, na verdade, deve ter sentido minha corrente amarga de mal estar. Acho que todos devem ter sentido isso, menos os orientais, que no caso eram japoneses e tailandeses. Inacreditáveis sujeitos focados que não davam um pio sequer. Aquilo sim era imprensa séria no evento. E meu “time-dupla” do Brasil poderia resumir como eu fora de forma e Denis como “acabo de acender um baseado, porque foda-se” (o amigo caricato).
O inglês pediu atenção a cada um dos presentes e iniciou seu discurso de forma desconexa:
“Nós seguramos o relógio de azeite deste modo, veem? Dedinho no arco, mão esquerda a frente do corpo. Nós batemos no pedal do mecanismo, as rodas da engrenagem dentada estralam, o assistente pessoal nos banha com azeite, quatorze mil lâmpadas acendem ao fundo da concha, como programadas para tal. Acendemos o bico de porcelana cada qual com seu meio de produzir a chama e assim explodimos em fogo com a roda a girar. O som! Escutem o som que reverberará. Olhem de relance a luzes, gritem, gritem o futuro. Boa sorte, boa viagem, bom retorno”.
Uma vez mais as vigas de metal pareciam se encontrar naquele local
e assim caí ao chão com uma dor aguda nos tímpanos. Senti o filete de sangue escorrer de dentro da orelha. A desorientação do estrondo não foi pior que a luz branca com a força de um pequeno sol que somou-se as pessoas que pegavam fogo voluntariamente. E eis um detalhe, um detalhe como um iceberg que parte o crânio de milhões de pessoas encavaladas, cabeça contra cabeça, num meio fio de água polar, tudo se desfazia em segundos. As pessoas pegando fogo sumiam. Eu estava embaralhado, em duvida se havia fumado ou comido de uma vez o baseado de Denis, mas ele mesmo andou na direção de um relógio de azeite e então, um instante depois de também se perder no fogo, desapareceu. Tudo ficou em silêncio. Gritei como havia dito para que gritássemos aquele inglês de cabelos de ressaca marítima, e agora estava em sua frente quase a estrangula-lo. Um zunido circulava dentro de mim, risadas escarradas do autor alemão ressoavam e eu cambaleei na direção de J.J. Benitez. Ele pôs a mão em meu peito como se me afastando com desprezo, dizendo que agora era a vez do isolamento, a contemplação para o inicio de um novo “Cavalo de Tróia”.
Howard iniciou novo discurso:
“Prefiro sempre ficar. Acho muito mais curioso. Aqueles que vão são curiosos demais, são “early adopters”, oh, com certeza o são. Eu aguardo o retorno incrível e anoto cada arremedo de frase desses velhos moribundos. Apenas cinco minutos”.
E assim recomeçaram a acender as lâmpadas e em seguida aquele trovão metálico e naquele momento acreditei de verdade que minhas sequelas auriculares seriam irreversíveis. Homens e mulheres pipocavam do vazio como se carimbados numa tela vazia. Eram todos idosos, eles estavam acabados. Rostos sugados, varados de manchas da idade. Uma senhora de olhos lacrimosos surgiu caindo em meus braços, balbuciando coisas surreais como, transcreverei como chegou ao meu ouvido dolorido, pois creio não ter escutado bem:
“A traseira de caminhões enormes, com fogo e chaminés. Levávamos pertences para queimar e em troca uma válvula recarregava a bateria individual de vida social. Usávamos pra tudo, pro liquidificador, para a cognição maquínica, telas subcutâneas.”
Recebi um comando urgente de Howard Young Bell, ele pedia datas.
“Inquira pelas datas, rapaz. Oras, não perca o foco!”
Pousei a senhora em meu colo e perguntei a data daquela visão. Infelizmente, não havia mais como falar com um cadáver.
“ Eles morrem rápido. Às vezes, já vêm mortos, oh, sim. ”
Era de viagem no tempo que estávamos falando? Eu era um privilegiado e a emoção tomou conta de mim. Era algo além de todo o resto. Um a um, apareciam em corpos deteriorados. E assim entrevistei quem pude, aos trancos com os autores ao meu lado e o próprio anfitrião.
“Animais. África, sobretudo. Evoluíram para a forma de carros. Carros, como os antigos Ford, mas são de carne. Listras de zebras, carne e rodas e traseiras de porta-malas. Tribos domam os carros e estapeiam com esporas as traseiras para debandar, todos loucos no por do sol. Cabeças de motor, guinchos ardidos, óleo e sangue, o horror. Amassam e desamassam e emplacam e os comem.”
Nenhuma dessas pessoas velhas e a beira da morte falou o ano em que viajaram e viveram. Aparentemente, eles viviam todo restante de vida no futuro e quando no limiar do fim, eram sugados de volta. Não havia mais explicação. Eu, apesar da magnitude que me impelia a ser testemunha, queria ir embora de lá. Dormir por mil dias e esquecer que aquilo de fato acontecia. Voltaram duas caveiras, uma delas com o crânio despedaçado e a outra ainda com resquícios de carne e vermes. Voltou Denis, com uma corda no pescoço, ainda era tão jovem como cinco minutos atrás. Corri até ele, os dreads raspados.
“Diga logo de uma vez qual ano viajou”
“Mil… setecentos…como…somos…feios…”
“Este homem veio do passado!” – Gritou, Howard Young Bell.
Tal afirmação encerrou nossa jornada, dado que, com o inglês assustado e pálido como uma vela, soou um alarme antibombardeio que fez surgirem de volta os Jeeps, assim nos cercando.
“Nunca antes aconteceu o passado. Nosso desbravo tornou-se perigoso. Vamos encerrar, vamos sumir por um tempo. Vamos escrever, vamos fazer ficção, até entender o que vimos e então relatar a realidade. Adeus. Não perguntem, não se calem, arquitetem.”
Corri até um relógio de azeite, banhei-me com o que restava e acionei o pedal. Queria ter pelo menos uma fração daquela sensação, ser um viajante do tempo. As luzes se acenderam, as rodas giraram. Pus-me em fogo e desapareci.
Peço desculpas pela interrupção.
Só não gostei dos diálogos em espanhol. Porém isso é coisa minha (trauma). Nada que desmerece o conto ou ao autor. Abraços e boa sorte.
Hum, sei não, tô desconfiada do autor desse texto… Ainda bem que falta pouco pra descobrir se estou certa. Adorei o final! Aliás, o conto todo. No começo, confesso que estava meio “patinando”, mas ao final, queria que ele tivesse continuado. Sou do time dos que acham que ele deveria ser maior, no mínimo uma noveleta. Ainda assim, um pouco sofrido pela falta de espaço, foi uma leitura muito boa!
Toda a cena da Bolívia poderia ser transposta direta para o Mato Grosso, sem precisar de descrever dois movimentos. Dava para economizar uns quatro ou cinco parágrafos nisso, sobrando espaço para elaborar melhor o clímax. O conto está muito bom, mas funcionaria melhor como uma noveleta, ou como um conto maior. Infelizmente, em um desafio que tem por tema as viagens no tempo, justamente os melhores contos são penalizados por atingirem o limite de palavras!
Achei o personagem narrador meio caricato: ele seria mais engraçado se fosse narrador o Dênis, de preferência chapado de alguma coisa. Já que mencionou a Bolívia, poderia ter começado a história em São Tomé das Letras e seguido pelos “peabirus” (ótima referência esotérica tupiniquim). Enfim, ideias que ficam para a segunda versão, que vai certamente arrebentar a boca do balão de tão boa.
Cara, eu desconfio que você tem livro publicado. Se tiver, me passa número de banco, agência e conta que eu PRECISO ter um exemplar.
Demorei a engrenar. Li todo o conto e algumas partes me fizeram ficar perdida, mas o final ganhou minha atenção. Com isso, acredito que algumas partes poderiam ser descartadas, com o intuito de explorar melhor o ápice do conto. Bem, mas isso vai de você autor (a). 😉
Excelente história. Certamente merece uma versão estendida, e se autor tiver mais lenha para queimar, até um bom romance. Muito criativa e original a ideia de viagem no tempo. E a presença de escritores famosos aqui é meramente ilustrativa, ao contrário de outros contos que tenho visto por aqui, que tentam fazer um novo “Meia-noite em Paris”, tendo como foco de suas narrativas o encontro com figuras épicas através da viagem no tempo. Mas felizmente este não é o caso. O texto é muito bem estruturado, apesar da clara dificuldade imposta pelo limite de palavras do desafio. Acima de tudo, um bom final, que sabemos ser algo muito difícil de se fazer. Por tudo isso, meus sinceros parabéns pelo ótimo trabalho!
Muito, muito bem escrito! Como já dito, é uma história tão bem elaborada que dificilmente cabe num conto de 3500 palavras. Isso fica perceptível quando algumas seções com pouco desenvolvimento são bem detalhadas (o início principalmente), enquanto outras mais intensas são mais breves do que deveriam (como o acidente e até mesmo o ritual). Mas tenho certeza que isso se deve às limitações do concurso.
Eu realmente gostei do final. Não sei se recomendaria investir nessa história como um romance completo (particularmente porque não vejo um verdadeiro “conflito” ou “objetivo” suficientemente robusto para carregar nas costas um arco narrativo muito longo), mas definitivamente merece pelo menos uma versão um pouco mais longa, ainda como conto.
No mais, parabenizo em especial pelo ritmo narrativo, que é de grande competência. Não é qualquer escritor que consegue dar essa fluidez ao texto.
Gostei do final. Muito bom mesmo. Não gostei tanto do desenvolvimento. Acho que a primeira parte pode ser cortada (ou melhorada, porque soa dispensável). Não entendi grande parte da cena do ônibus (porque ele explodiu? Porque esconderam os relógios dos militares?). E mais tarde, era uma grande máquina ou cada reloginho era uma?
Olá. Vou dizer: O onibus não explodiu. Ele caiu do alto de um barranco por conta da chuva (erosão, deslize, barranco) então capotou para o sopé da montanha (serra). Ou seja: o porque é por conta do deslizamento, chuva + más condições da estrada. Não esconderam os relógios…estavam simplesmente armazenados no banheiro do onibus. Os militares buscavam por drogas, pois é muito comum na Bolivia o trafico de entorpecentes! 😉 Na verdade, o dispositivo não era uma grande máquina e nem os pequenos relógios de azeite, mas sim todo o conjunto (ritual) a ser feito. Uma combinação intrincada d eluzes, reverberação de som, engrenagens gigantes, o azeite dos relógios e principalmente o fogo. Enfim….somatória de passes. 😀 Espero ter ajudado na compreensão!
Sabe, eu nunca li Cavalo de Troia. mas trata de viagem no tempo tbm né? hahaha boa sacada, se for isso mesmo. Acho que tem um livro que chegam até a ir na época de Jesus. Enfim, curti o conto, o final é galopante, quase uma balburdia da Queima do Alho. Eita! E de repente: CORTADO. Deu o limite, foi? rsrsrs Titulo estranho. Mas…quando o li novamente dito pelo narrador como um pensamento do próprio…desmerecendo-o….oras…então quem sou eu pra contrariar o cara né? rsrs salvo pelo gongo! Viajar no tempo ateando fogo ao próprio corpo. (O^0) !!!!!
Gostei do toque de humor e da referência aos escritores. A forma de viagem no tempo me lembrou Harry Porter (que podiam viajar de um lugar para outro via chaminés). As intenções dos financiadores do experimento também foi bacana (cruel). Um pouco longo, mas sem dúvida, um conto muito bom!
Mais um texto com citações, mas ao contrário do que cita os escritores, neste achei-as melhor colocadas e contextualizadas. A escrita flui, há personagens interessantes, mas não gostei muito do desfecho. Eita partezinha ruim de agradar a todos. Mas é um bom conto.
Não tive capacidade de entender esse conto.
Reli algumas vezes, captei referências e até me diverti com elas, mas final abrupto complicou o meu entendimento.
Acho que foi proposital. Os longos parágrafos e escrita lapidada me leva a crer que eu é que não estou preparado para este tipo de abordagem.
Apesar da ideia comum, gostei do enredo, do estilo, da escrita sem necessidade de retoques e do final. O texto só demora a entrar na história, acho que usou tempo (palavras) narrando/descrevendo situações não tão importantes para a história que pretendia contar. Mas, no todo – e até agora, pelo que já li – um bom conto.
Olá, sou Nuno Hera. Obrigado por ler o conto. De modo a melhorar ele posteriormente, levando em conta as impressões de todos, eu gostaria muito de saber qual o ponto da “ideia comum” que você processou do conto apresentado. Pois gosto de inovação e seria importante saber minuciosamente e então talvez talhar ela ou elevar o rumo. Agradeço desde já. 😉
Olá Nuno. “Ideia comum” é a viagem no tempo através de instrumento – máquina, relógio, portal, enfim, equipamento qualquer – o que 99,99% das pessoas pensam quando se fala em deslocamento nessa dimensão. Há contos por aqui que não utilizaram a estratégia. Espero ter esclarecido.
Ah sim. rsrs Um dispositivo de viagem no tempo! Agora entendi. Então tranquilo. 🙂 Ok. Thanks.
Sobre a técnica, não há o que falar. O autor não começou a escrever ontem. É evidente, sob todo o seu esmerado trabalho narrativo, uma vida de leitura, de lapidações, de escritas e reescritas, até que se atingisse esse nível de fluidez. Uma fluidez que sobrevive, inclusive, ao fato de se tratar de um texto eivado de referências por vezes obscuras, e cuja necessidade de exposição do mote poderia facilmente descambar em didatismo. Mas não o faz. Ou o faz de maneira tão sutil que nem se percebe.
A facilidade do autor em levar o leitor do ponto A ao B impressiona. É quase natural, em sua prosa. As referências pop (creio que não tenha sido coincidência minha associação do excêntrico Young Bell com o Willy Wonka da primeira Fantástica Fábrica) temperam o que já era irreverente.
Tudo isso para dizer que, quando se lida com um autor profissional, só nos cabe apreciar ou não o resultado de seu trabalho. E mesmo essa decisão se baseará quase que somente na adequação a uma pilha de idiossincrasias que formamos, como leitores, ao longo da vida.
Esse foi um conto que não ganhou a luta com a minha afeição de leitor por nocaute, mas por pontos. O todo da viagem foi mais importante que o destino.
Realmente, o problema aqui foi o limite de palavras que fez o autor se conter na narrativa ao chegar ao final. Com uma revisão mais criteriosa, poderia cortar o não essencial e se ater ao que dá dinamismo ao texto, despertando maior interesse no leitor.
Nossa, não consegui passar da metade do conto. Pedante, fica dando voltas, se perdendo em detalhes sem importância.
Como vc sabe que dei voltas e os detalhes são sem importância se vc não passou da metade do conto? Fiquei curioso. 😀 Percebe que ficou meio incoerente o raciocínio?
Quero encontrar o autor deste texto e esganá-lo. A história é MUITO boa. Só que é boa demais para caber num conto, num limite como o que temos aqui. Quando se começa a ler, já se sabe (pelo tema do Desafio) que o jornalista está se dirigindo para um local ermo onde uma máquina do tempo vai ser testada. Então, o leitor passa a narrativa toda já sabendo o que o espera. Quando finalmente o sujeito chega lá e vê o que acontece – vale dizer, quando a cereja do bolo é mostrada – o conto acaba. Acaba, assim, sem mais nem menos. Cara, a melhor parte é a que menos dura e isso é foda… Você podia ter limado do texto aquele trecho longo e inútil sobre a viagem de ônibus – isso não representa nada para o que se pretende contar. De que interessa, afinal, se o ônibus da frente bateu e todo mundo morreu? Nada. A parte mais incrível – no sentido fantástico da palavra – que é a viagem no tempo em si, é muito criativa e poderia ser bem melhor explorada. Por que, afinal, as pessoas voltam do futuro (ou do passado) velhas ou mortas? Por que elas são cuspidas de volta para o presente? São essas as questões que poderiam ser melhor abordada se algumas das partes dispensáveis fossem de fato suprimidas do texto. Bem, se a intenção é manter o tamanho do conto, então creio que a sugestão de apagar o que não serve soa apropriada; porém, se for para dar mais corpo à história, pode-se mantê-las. Nesse caso, sugiro alguma espécie de gancho, para que o acidente no meio da estrada não fique isolado e sem função alguma na história.
Um bom conto, mas que peca ao demorar a engrenar a história. O limite de palavras parece ter abreviado o texto antes da previsão do autor. Talvez essa seja a base para um livro ou conto mais extenso?
Sobre a história… Uma idéia MUITO boa, tão boa que não cabe num conto de limite de palavras. Por conta disso, a história demora a ganhar vida, tornando o texto enfadonho e cansativo, coisa que talvez não aconteceria num relato maior. E não é culpa do narrador, que faz um belo trabalho. É que, para uma história assim curta, houve personagem demais, relato demais, de coisas que, tão brevemente, deixarão de ser importantes.
Sobre a técnica… Texto bem montado, ortografia correta, narrativa sem falhas.
Sobre o título… Péssimo. É quase um aviso de como o texto será: informação demais para espaço de menos. Arranje um gancho que amarre o texto com poucas palavras. Ou melhor: pegue esse texto e refaça sem limite de letra, e certamente teremos algo mais longo, bem montado e envolvente.
É , Elton, concordo plenamente com o titulo. Portanto, ao término do concurso, o nome do conto passará a ser “Imolados pelo tempo” e todos os complementos, etc 🙂
cansativo, muitos nomes, citações, parecia um livro que não chegava ao fim. pulei. uma boa historia, uma boa ideia. se eu fosse citar todos os autores que já li, teria que escrever um livro…
O conto tem um quê de Michael Crichton que me agradou. A citação de autores de best sellers tbm foi bem bacana. No entanto, achei que o conto demorou para engrenar e que, talvez por já ter esgotado sua cota de palavras, teve o final abreviado…
Todavía así, me gustó la short story.
Inteligente e atrevido.
… Pero no mucho.
😉