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Detox Literário.

O Morto Ao Lado (Amanda Leonardi)

Eu estava quase morrendo naquela noite, não conseguia me mover normalmente. Sentia meus braços e minhas pernas começarem a ficar paralisados, e cada movimento que eu fazia, sentia que era como se me movesse em câmera lenta e fazia um esforço enorme para mover as mãos, que pareciam enrijecer como mãos de estátua.

Meus reflexos também se tornavam mais lentos a cada segundo, assim como minha visão cada vez mais obscura e minha capacidade de me comunicar quase nula. Era madrugada quando acordei me sentindo assim, e acho que desmaiei enquanto tentava me arrastar até a porta do quarto. Depois disso alguém na minha deve ter chamado uma ambulância.

Acordei quando cheguei ao hospital. O choque da luz branca naqueles corredores quase me cegou por completo e meus olhos doíam muito, assim como minha cabeça. Eu estava em uma maca, e o fantasmagórico teto branco corria sobre meus olhos enquanto a maca era arrastada pelo corredor. Os médicos corriam de um lado para o outro, em desespero ao meu redor, sem saber onde me colocar. Maioria dos leitos estavam já ocupados, e fui colocado em um quarto pequeno no final do corredor, onde havia dois leitos, um vazio perto da porta, onde os médicos me deitaram, e outro perto da parede ao lado, meio coberto por uma cortina branca. A cortina escondia o paciente ao lado até os joelhos, deixando apenas suas canelas visíveis. Mas à primeira vista não prestei muito atenção, pois minha visão estava turva e meus olhos doíam, então os fechei e tentei dormir. Mas não consegui.

Não tenho ideia de quantas horas fiquei imóvel naquele leito. Depois de um bom tempo, quando meus olhos deixaram e doer tanto e minha visão tornou-se mais clara outra vez, abri os olhos, pisquei algumas vezes para acostumá-los à claridade do hospital, e consegui mantê-los abertos. Olhei ao redor e a primeira coisa que vi foi a coloração estranha da pele do paciente ao lado: suas canelas tinham um tom pálido e esverdeado em algumas áreas, e de um laranja forte em outras, com uma textura extremamente singular, como se estivesse em decomposição. Porém, como poderia estar em decomposição se eu não sentia nenhum odor? E se estivesse morto, não deveria já ter sido removido do hospital? Aquilo não fazia sentido. Devem ter sido os remédios, só podia ser, estavam me dando alucinações.

Mas o corpo ao lado realmente não se movia, até que ouvi um dos médicos comentando com o outro o que confirmava as minhas suspeitas: “Aquele ali já morreu.” Ele se referia ao meu ilustre colega de quarto. Mas por que me deixavam em um quarto com um cadáver? Eu não conseguia me mover para tentar sair de lá, não conseguir sequer pronunciar palavra alguma. Só meus olhos que abriam e fechavam, de resto eu era uma estátua. E uma estátua terrivelmente intrigada com o seu colega de quarto. E digo intrigada para não admitir que na verdade eu estava apavorado. Nunca antes em toda a minha vida eu tinha visto um cadáver, não pessoalmente pelo menos. E agora me forçavam a dormir em um quarto ao lado de um. O odor de decomposição aos poucos começava a tomar conta do quarto, até o ar se tornar irrespirável. Porém, depois de certo tempo, notei que isso não era um grande problema para mim, como se eu não precisasse respirar. Como se eu não precisasse mais respirar. Estaria eu morto também? Seria aquele quarto uma espécie de necrotério? Por isso que eu estava no quarto com um morto, por que eu também estava morto?

Enquanto eu me desesperava em divagações sobre estar morto também ou não, os médicos voltaram ao quarto. Um deles disse que precisavam esvaziar o leito, pois mais pacientes chegavam. O outro respondeu que ia pegar uma maca para levar o corpo para o necrotério.  O corpo? Isso quer dizer que eu não estava morto então, somente o meu colega de quarto cadáver estava. Ouvir isso foi um alívio imenso, tive vontade de saltar da cama e agradecer ao médico pela boa notícia! Mas eu ainda não conseguia me mover. Nessa hora, nem meus olhos pareciam mais ser capazes de se mover, mas eu ainda enxergava, apesar de minha visão voltar a tornar-se um pouco obscura. Eu olhava para cima, fixamente, para aquele teto inundado de luz branca, pálida. O resto do quarto eu via com minha visão periférica, sem muita clareza, mas conseguia ver. Foi assim que vi um dos médicos abrir a cortina que cobria o leito do morto ao lado. Eles iam tirá-lo dali, finalmente! Eu não aguentava mais o odor de decomposição e o fato de dividir o quarto com um morto me perturbava mais a cada milésimo de segundo. Mas tudo ia acabar logo. O médico já afastava a cortina para tirá-lo dali. Mas com que lentidão ele afasta a cortina, mais vagarosamente do que uma tartaruga! O barulho da cortina sendo arrastada, assim tão lentamente, me acalma, mas, não entendo porque, também me aflige, como se eu temesse o que a cortina afastada me revelaria.

Quando a cortina é afastada por completo, vejo então a figura do morto ao lado: sua imagem era idêntica à minha, suas roupas eram iguais às minhas, se eu pudesse ver minhas mãos e minhas canelas, estariam elas em estado de decomposição também? Até que vejo seu rosto – o meu rosto: com olhos embaçados, sem o brilho da vida, olhos mortos. Movo meus olhos na direção do que eu pensava ser outra pessoa, mas que era um espelho, e lá vejo meus olhos, porém, no espelho eles estão fixos, congelados a olhar para o teto. Meu rosto completamente pálido e já esverdeado tem um aspecto enrijecido, como uma estátua de carne morta. Afinal, era exatamente nisso que eu havia me transformado. O médico que descortinara o espelho abriu as portas do que era, na verdade, um grande armário espelhado, e de dentro tirou uma maca, na qual fui colocado. Eu estava a caminho do necrotério, logo seria levado ao cemitério e enterrado, e ainda tinha consciência de tudo. E continuo tendo, aqui nessa escuridão onde me enterraram não sei há quanto tempo.

19 comentários em “O Morto Ao Lado (Amanda Leonardi)

  1. Diogo Bernadelli
    29 de setembro de 2013
    Avatar de Diogo Bernadelli

    “(…) logo seria levado ao cemitério e enterrado, e ainda tinha consciência de tudo. E continuo tendo, aqui nessa escuridão onde me enterraram não sei há quanto tempo.”

    Se este trecho fosse descartado, o conto sobreviveria. O que se observa é uma manobra quase jurídica para inserir a figura do cemitério em uma história claramente autônoma e melhor acomodada a outra temática.

    • amandaleonardi23
      6 de outubro de 2014
      Avatar de amandaleonardi23

      Na verdade, o conto já estava pronto e com esse trecho incluído antes de eu ver esse desafio, Diogo! xD

  2. Felipe Holloway
    29 de setembro de 2013
    Avatar de Felipe Holloway

    “Da mesma forma, ela detestava a narração pretérita em primeira pessoa quando o intuito era fazer o leitor temer pela sorte do personagem-narrador, pois também lhe parecia de uma obviedade aviltante que, se ele estava narrando os fatos passados, é porque sobrevivera a eles, a menos que fosse um defunto autor ao estilo machadiano, ocasião em que qualquer pretensão realista seria abandonada e portanto não faria sentido torturar o leitor com o receio pela iminente e eventual finitude corpórea do herói.”

    Esse é um trecho do romance que estou terminando, e que acaba expressando o meu real ponto de vista sobre narrativas como a deste conto. Pode ser falta de tino literário, desrespeito à licença poética, enfim, mas o caso é que realmente não consigo me afeiçoar a tramas assim sem me sentir um pouco logicamente ultrajado. A boa notícia é que se trata de uma idiossincrasia minha, e que mesmo ela seria obliterada alterando-se para o formato do narrador onisciente.

    De resto, um conto com poucas falhas e um plot relativamente impactante.

  3. Claudia Roberta Angst
    29 de setembro de 2013
    Avatar de Claudia Roberta Angst

    Os erros de digitação não comprometeram o interesse pela leitura do conto. A narrativa bem desenvolvida prende a atenção até chegar ao final angustiante.

  4. Sandra
    28 de setembro de 2013
    Avatar de Sandra

    Mesmo antevendo o final, a gente se percebe vivendo a angústia desse ambiente mórbido palavra a palavra… Só achei o personagem meio abnegado com relação ao momento presente (no último parágrafo…). Poria um bocadim mais de dor nesse ser que arrasta sua consciência na escuridão.
    Gostei!

  5. rubemcabral
    27 de setembro de 2013
    Avatar de rubemcabral

    A sacada do espelho foi bem inteligente, mas a ideia de um corpo em decomposição num hospital foi bem estranha. O tema “cemitério” tbm foi só arranhado de leve…

  6. vitorts
    26 de setembro de 2013
    Avatar de vitorts

    Tem um quê da tafofobia de Poe aí. Como é evidenciável na obra do mestre, a possibilidade de ser enterrado vivo é coisa de arrancar o sono. O uso do artifício no conto foi uma ótima ideia. Quanto ao ritmo, está bem adequado para a atmosfera que se tenciona alcançar. Agora, daria para deixar ele um pouco mais redondinho usando mais sinônimos para evitar repetições de palavras. Alguma coisinha também na coerência: em um momento diz-se que o cheiro da decomposição não era algo tão ruim, em outro, que o sujeito não podia mais suportá-lo. Detalhezinhos de nada, mas que dão mais brilho para o texto.

    No mais, bom conto!

  7. feliper.
    24 de setembro de 2013
    Avatar de Rodrigues

    Eu diria que é um texto bem pensado, construído e com uma conclusão esperta. Porém, como a história não me agrada, o bom desenvolvimento do conto de nada adianta, nem mesmo a surpresa no final.

  8. Martha Angelo
    22 de setembro de 2013
    Avatar de Martha Angelo

    Interessante…o final dá um certo arrepio. rs

  9. Bia Machado
    22 de setembro de 2013
    Avatar de Amana

    Muito bom conto, prendeu-me a atenção, porque queria saber se eu tinha adivinhado o que estava acontecendo… E eu adivinhei a metade, digamos, rs… E o final foi uma boa surpresa, mas me incomodou foi que o “cemitério” surgiu ali… Bem no finalzinho, então não sei se posso afirmar com certeza que ele se encaixa no tema… Ainda assim, como eu disse, muito bom!

  10. José Geraldo Gouvêa
    22 de setembro de 2013
    Avatar de José Geraldo Gouvêa

    Não costumo me importar com erros de digitação. Eles acontecem. Devem ser corrigidos, quando apontados, mas não lamentados, a menos que sejam tão excessivos que influam na leitura.

    No caso deste texto o pormenor que não se encaixa é o tema. Nada tem a ver com cemitério. Mesmo assim o texto é bom, e se não for desclassificado pela moderação, acabará tendo muitos votos.

  11. Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)

    Que angústia!! Adorei a ousadia, a tensão. É diferente. Parabéns!

  12. Reury Bacurau
    13 de setembro de 2013
    Avatar de Reury Bacurau

    Conforme alguém comentou acima tem uns erros de digitação e fiquei um pouco confuso numa ou outra passagem, mas sem dúvida o final é diferente; eu sabia que ele estava morto, mas não que estava ao lado…rs. Parabéns.

  13. Fernando Abreu
    13 de setembro de 2013
    Avatar de Fernando Abreu

    Não gostei do mote e nem da construção do texto. Há uma surpresa no final, é verdade, mas que parece deixar tudo muito limpo, queria mais vísceras. Achei que está meio fora da temática do mês.

  14. Emerson Braga
    12 de setembro de 2013
    Avatar de Emerson Braga

    Pecou um pouco pela escrita, mas é inquestionável sua capacidade de prender o leitor, por meio do clima de tensão e suspenses crescentes, que aqui você desenvolveu muito bem. Um pouco mais de cuidado na hora de digitar e de atenção com as regras da língua iriam dar um senhor up em seu texto!

  15. selma
    11 de setembro de 2013
    Avatar de selma

    achei interessante; percebi logo que ele estava morto, mas não que estava ao lado; um visão diferente e que acontece assim mesmo do lado espiritual; algumas colocações estranhas, repetições de termos, mas achei bom! a ideia é boa! parabens!

  16. Piscies
    11 de setembro de 2013
    Avatar de Piscies

    Concordo com o Gustavo acima: li do início ao fim. O texto me manteve preso. Isso é bom demais.

    Concordo também que existem alguns erros de digitação e até de concordância, que podem confundir o leitor, mas isso geralmente é acertado com uma boa revisão.

    No meio do conto dava realmente para prever que o personagem estava morto, mas eu achei que ele ia retornar como um zumbi ou coisa parecida, então o final me pegou de surpresa, sendo mais angustiante do que eu esperava.

    Belo texto e ótima ideia!

  17. Marcelo Porto
    11 de setembro de 2013
    Avatar de Marcelo Porto

    Grande conto. Gera tensão, mesmo se desconfiando do final. O ritmo é bom e prende o leitor até o desfecho, que termina de forma angustiante. O que é muito bom.

  18. Gustavo Araujo
    10 de setembro de 2013
    Avatar de Gustavo Araujo

    Excelente narrativa, apesar de alguns errinhos de digitação. O texto é bem desenvolvido e embora eu tenha adivinhado o final lá pela metade, posso dizer que a maneira como a narrativa foi conduzida conseguiu me prender até o fim. Li sem divagar, o que é um sinal indubitável da qualidade do conto. Parabéns.

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Publicado às 10 de setembro de 2013 por em Cemitérios e marcado .