O céu está limpo. Uma menina de 4 anos brinca na varanda com o pai. Tem a t-shirt dele vestida. O pai faz-lhe cócegas. Riem-se. Entram em casa. Ele dá-lhe banho na banheira. O chuveiro é um telefone (— Está lá!). Veste-a (— Muito rápido, à americana! Saco de batatas! Saco de batatas!). Estão felizes.
É verão. A menina está com os avôs maternos no Algarve. A avó de toca, nada na piscina. A menina de vestido de folhos, sorridente, ao colo largo do avô, come um donut caseiro. Há música. A menina dança, alegremente.
Tem 5 anos. O pai diz-lhe que a mãe foi para o hospital para nascer a irmã. O pai faz uma mala com roupas e roupinhas. A menina está tão entusiasmada. Vai ter uma irmã pequenina para sempre.
Tem 7 anos. Encontra-se sentada no banco do jardim da escola primária da uma vila ribatejana. A arquitetura é a típica de Salazar. Um grupo de meninas da mesma idade perguntam-lhe, entre risinhos (— És menino ou menina? — Menina!). Pouco depois, brincam juntas. Fazem cambalhotas nos ferros do jardim. Conversam. Divertem-se.
A menina faz 9 anos. A casa está decorada de balões. A mesa está cheia de doces. As crianças brincam alegres. Os adultos conversam. O avô paterno passeia junto ao rio, em frente à casa. Ouve o relato do jogo do Sporting na rádio que tem na mão.
São as férias. A menina está na Ericeira com os pais, os avôs paternos, os dois irmãos mais velhos, e a irmã mais nova. São as festas da vila. As ruas estão enfeitadas. O avô vai com a menina comer uma fartura junto à praia. Encosta-se ao muro azul e branco, com ela ao colo, partilham o olhar o mar, sobre o muro.
É noite. Está frio. Os pais e os irmãos estão em casa. Toca um telefone. O pai atende. Todos choram e gritam. A menina está no quarto do irmão. Ninguém lhe diz, mas ela sabe, o avô morreu. O irmão abraça-a, e ela pode expressar a sua dor, chora.
A avó vive agora sozinha em Alhandra. A menina passa vários fins de semana com ela. Vão à praça de manhã. A avó compra o que a neta mais gosta. Conversam. A avó está triste, sente a ausência do avô. A presença da neta alegra-a. A menina sente-se bem junto da avó. São tranquilos e aconchegantes aqueles dias. Dorme com a avó. Ouve as histórias dela, a cheias de 69, a pobreza da época, os esforços do avô enquanto médico para ajudar a população. Ouvem rádio antes de adormecer e quando acordam.
Os pais chamam a menina. Dizem-lhe que vão viver para Lisboa no próximo ano. Na cidade há uma escola de dança que forma bailarinos profissionais, se ela quiser entrar terá de treinar para as audições. A menina adora dançar (— Quero!).
É Verão. Estamos na Ericeira. A menina treina para a audição. Está determinada em dar o máximo de si. O seu corpo está evoluir rapidamente em elasticidade e força. Está mais magra, mais séria. Muitas vezes não quer fazer as refeições, só fruta. A avó está preocupada. A menina está a ficar diferente, mais afastada dela, menos alegre, menos livre, demasiado responsável.
A menina aprova na audição. Observa os jovens dançando graciosamente nos corredores e nas salas de dança. Ouve os vários instrumentos clássicos das aulas de música. Os alunos de teatro ensaiam nos claustros do edifício velho. A menina está apaixonada pela beleza dos movimentos e dos sons.
Ao longo dos meses a menina vai deixando de ser ela. O seu corpo está cada vez mais magro. O seu olhar está cada vez mais sério e vazio. A sua alma está cada vez menos viva. Quase não come. Os pais acompanham-na a uma psiquiatra. A médica tem a convicção no olhar (— A vossa filha pode morrer). Decidem, irá ser internada.
Tem 11 anos. Está num quarto de hospital. Olha a janela de grades. Sente-se presa, presa no espaço, presa na alma. O tempo corre parado. Todos os dias pergunta (— Quando vou sair? — Quando recuperares peso). Querem salvar-lhe o corpo, e talvez a alma. Continua a tentar não comer e a fazer exercício para perder peso. Dão-lhe medicação para travar o excesso de movimento. Por vezes, não consegue sentir-se a si mesma. Os olhos querem fechar, e ela quer mantê-los abertos. Uma enfermeira doce senta-se ao seu lado, dá-lhe a mão, sente a dor da menina. A menina sente gratidão por aquele cuidado sentido.
Com 12 anos tem alta. Um longo caminho ainda falta percorrer para recuperar a vida. O melhor remédio vai ser a escola, as amizades, o amor.
Com 14 anos está com obesidade. O corpo está mais vivo, apesar em parte ainda doente. A alma está mais saudável, apesar de ainda precisar de mais vida. Na consulta a menina fala do amor pelos avós. Vê uma lágrima cair pelo rosto médica, habitualmente séria. A médica está contente por ter ajudado a despertar aquela adolescente que sorri.
A jovem tem 22 anos. Sente-se profundamente deprimida. A dor é demasiada. Não vê saída dela. Tenta o suicídio. Está a adormecer. Inesperadamente desperta. Ainda quer a vida. Pede ajuda.
A jovem está na universidade. Continua deprimida. Sente que não consegue continuar o curso. Vai desistir. A melhor amiga visita-a (— Se não consegues vens para minha casa, e vamos juntas às aulas. Queres ficar lá enquanto não te sentes capaz? — Sim. Obrigada.). A jovem viveu alguns meses com a família da amiga. Partilhava o quarto com os seus dois filhos pequenos. Naqueles meses, foi o seu lar aquela linda casa de campo junto ao rio. Aquela família ficou no seu coração. Tornou-se a sua segunda família.
A jovem tem 26 anos. Sofre de ansiedade e depressão. Consulta um psicólogo que ao longo do tempo a ajuda a enfrentar-se a si própria, à sua sombra, e à sua luz. Naquela jovem, há uma mulher que quer amar e ter uma família.
Tem 30 anos. As suas relações amorosas são superficiais. Trabalha na área social com pessoas sem casa. Muda de projeto. Faz turnos, faz noites. Trabalha na rua, e de carro de um lado para o outro, muitas vezes sem encontrar as pessoas para ajudar. Sente-se cansada e sem propósito. Está cada vez mais desconfiada do mundo. Procura ajuda psiquiátrica e psicológica. Em poucos meses recupera.
Tem 34 anos. Está grávida, abraçada com o companheiro no sofá. Conversam e riem. Começa a sentir contrações (- Vai nascer. Nem parece verdade). Nasce. É colocado sobre ela. A mulher chora de felicidade pela primeira vez. Está tão apaixonada pelo seu filho.
O casal e o filho vivem numa casa com um terraço sobre o rio e a lezíria. São felizes. A mulher partilha aquela felicidade com a mãe, com os irmãos, com a restante família, com os amigos. É tão bom o amor e a vida.
Olá, Francisca.
O nosso português atrapalha a leitura dos colegas brasileiros e acredito que seja por isso que ninguém comentou.
O seu conto pareceu-me o relato de uma história verídica, ligeiramente fantasiada. Posso estar enganada, mas foi a sensação que tive enquanto lia.
Uma pequena revisão (não ortográfica) pode melhorar bastante o resultado final.
Gosto de encontrar o nosso país nas leituras, você fala na Ericeira, em Lisboa, de Alhandra e eu estou lá, vejo os sítios que me são familiares.
Sei o que é a arquitetura do estado novo, sei como foi o salazarismo.
Para uma portuguesa que gosta de ler da mesma maneira que eu (há muitas formas de ler), as alusões são gratificantes e melhores ainda quando não acompanhadas de explicações e juízos. O seu conto está assim: refere sem transparecer posição pessoal. Gosto disso. Tenho o meu olhar, a minha opinião, gosto de ter assim, pela leitura, uma revisitação às minhas próprias referências, sem mais nada.
Porque, para mim, a leitura é mais um sentido, tal como o paladar e todos os outros, sendo o olfato, o sentido que mais apela à evocação – o olfato e a leitura.
Gostei muito e espero que essa menina continue feliz.
Confesso que só “engoli” bem o final cor-de-rosa, porque acredito que se trata de um caso verídico.
Continue, escreva ficção. Vou gostar de ler.