EntreContos

Detox Literário.

Bento Gonçalves (Anderson Prado)

Às vezes me pergunto se em algum momento se arrependeu das tão repetidas palavras:

─ Vai estudar, sim, senhora!

Talvez no dia em que me viu partir e, dirigindo-se à mamãe, recusou-se a me levar até a rodoviária:

─ Não vou! ─ E seguiu ali, de botas e machadinha fincadas na terra à beira do parreiral.

Meu destino aos dezessete anos? O Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Meu passado? Papai resoluto declarando que roça não era lugar de criança. Meu presente? Papai teimando em não me levar até a rodoviária de Bento Gonçalves.

─ Como não vai, Antelmo?!

─ Não vou!

Com as mãos na cintura e um bico enorme na face, mamãe permaneceu parada um tempo no extremo da visão periférica do velho turrão que seu marido estava se tornando. Da varanda, eu assistia à cena e quase pude perceber a machadinha de papai perdendo um pouco do brio sob o olhar esmagador da esposa.

Eu fora ensinada a ignorar aquelas intimidades: das memórias da infância, veio-me a velha lição:

─ Não é assunto de criança! Enrole o poncho!

Virei as costas e retornei pra dentro de casa. Pouco depois, mamãe também voltou. Quando transportávamos as últimas malas até o táxi, as botas, mais do que papai, apareceram na porta da cozinha batendo-se desajeitadas contra o limpa-pés de ferro:

─ Não posso entrar ─ desculpou-se. ─ Estão sujas.

Percebi a indignidade do velho, repreendido pela esposa e assistindo à última filha partir; querendo aproximar-se, mas sem saber como.

─ Sem problema, pai ─ apressei-me a dizer. ─ Até mais ─ e o abracei.

─ Boa viagem ─ encomendou.

Eu era a caçula. A última a nascer, e também a última a partir. Eu e minhas irmãs deixamos Bento Gonçalves pelo mesmo motivo: os estudos. Mas foi a minha escolha a única a desagradar:

─ Artes Visuais?! O que é isso?

Luíza, sempre impetuosa, veio em meu socorro:

─ É um curso como qualquer outro, pai!

Sem querelas, Luíza havia escolhido Enfermagem. Segunda mais velha de cinco mulheres, havia se formado fazia dez anos.

Além de uma enfermeira, papai se orgulhava de ter formado uma contadora, uma geóloga e, muito em breve, formaria também uma professora, não obstante o susto inicial:

─ Letras é igual português, pai.

─ Ah, tá, pra ser professora, né?!

─ Sim, pra ser professora ─ Ritinha, a imediatamente mais velha do que eu, havia concordado, embora todos soubéssemos, inclusive papai, que o amor dela pelas letras tinha muito mais a ver com livros do que com a possibilidade de vir a dar aula.

Mas Ritinha, ao contrário de mim, soubera manter os pés no chão: escolhera Licenciatura em Letras ao invés de Bacharelado. Fazia estágio em duas escolas diferentes e seguia de cara metida nos livros apenas nas horas vagas. Quanto a mim, não houvera salvação: escolhera Bacharelado e, ainda por cima, em Artes Visuais.

─ Isso é pra quê?

─ Ora, pra quê! Pra fazer melhor o que ela vem fazendo desde sempre! ─ Luíza, a enfermeira, seguira em minha defesa.

─ E dá dinheiro?

─ Ah, pai, fala sério! Não dá pra conversar com o senhor! Ela vai e pronto!

Talvez não seja correto concluir que fui pra faculdade contra a vontade de papai, já que fora a vontade dele, coadjuvada pela de mamãe, que me conduzira todos os dias pra escola distante hora e meia de casa.

Lembro de muitos dias em que, ainda antes do amanhecer, estávamos todos de pé: papai de volta da lida com nossa meia dúzia de reses e se preparando pra adentrar o parreiral; e mamãe se dividindo entre o preparo do café e das crianças mais novas. Pertencíamos à primeira geração da família a conhecer a frequência ininterrupta à escola.

─ No meu tempo, não tinha essa moleza, não! Criança também pegava em cabo de enxada!

─ Seu tempo passou, Antelmo! Lugar de criança é na escola mesmo.

─ Não tô dizendo diferente, estou? São elas que ficam nesse bem-bom e ainda reclamam!

Não foi sem teimosia que nos despacharam todos os dias no ônibus amarelo. Cada uma a seu tempo, fizemos a mesma pergunta durante a safra da uva:

─ Quer ajuda, pai?

─ Não tem aula hoje?

─ Tem.

─ Então termina logo esse café que ônibus não espera em ponto.

Esperava sim. Parava em frente à casa e buzinava. Esperava mais um tempo, e tornava a buzinar. Apenas depois dessa insistência, partia. De fato, assistia razão ao meu pai: eram tempos de facilidades.

Mas, por causa de papai, poucas vezes alguma de nós foi deixada pra trás.

─ Acho que a menina está com febre, Antelmo.

─ Febre nada! Isso é manha de criança pra não ir à escola. Febre não faz vingar semente.

Não sabíamos se falava de nossa educação ou do fato de ele mesmo nunca ter faltado um só dia ao cuidado do parreiral. Nunca o vimos doente ou, pelo menos, nunca o vimos deixar de trabalhar, o que não chega a ser a mesma coisa, mas ajuda entender a vez em que a professora, apavorada, interrompeu a aula pra me levar ao pronto-socorro delirando de febre no banco de trás do carro da diretora.

Acabou que, nos dias seguintes, recebemos em casa a visita de uma moça simpática da assistência social. Pra completo desencanto de papai, minha febre me premiou com um caderno de desenho, uma caixa de giz de cera e um afastamento obrigatório por quatorze dias.

─ O senhor não pode mandar pra escola uma criança nesse estado.

Durante aquelas férias forçadas, pintei o parreiral, os trabalhadores e outras tantas cenas da fazenda. Eram desenhos toscos, infantis, mas nos quais se divisava a leveza e a precisão que um dia distinguiria meus traços.

─ Olha, Antelmo, que lindo o desenho da Giovana!

Os afagos insinceros me mantiveram rabiscando. A partir de certa idade, o tom condescendente cedeu lugar à autêntica admiração.

Contanto que desse conta das tarefas escolares, não se importavam com minha dedicação ao desenho e, pouco mais tarde, à pintura. No Natal, embalávamos as telas e distribuíamos entre os membros numerosos da família.

─ Seu bisavô Guido dizia que o pai dele tinha um irmão pintor famoso em Cremona, na Itália.

─ Mas bah, Alberto, para de contar mentiras pra menina!

─ Que mentiras?! É sério! Inclusive, quando veio pro Brasil, seu tataravô trouxe uma tela que, hoje, valeria milhões.

─ E cadê essa tela, Beto?! ─ alguém sempre zombava de algum canto.

─ Não sei, ninguém sabe ─ defendia-se tio Beto em meio à descrença e ao rumor geral.

Éramos assim: barulhentos. Falávamos alto, batíamos portas, pisávamos forte. E cultivávamos um nada discreto orgulho da nossa origem italiana.

Havia sempre uma história sendo contada. Aos meus ouvidos infantis e crentes, fazia muito sentido.

Pra nós, polenta era comida nobre. Suco de uva às pampas, vinho tomado às escondidas, homens gritando o jogo da mora, mesa farta e cantorias preencheram cada pedaço da minha memória de infância.

De que nem sempre falávamos era de nossos antepassados pobres e famintos deixando pra trás uma Itália mendicante e ainda não unificada, vendendo nas cidades portuárias as últimas bagagens pra comprar passagens em navios superlotados, enfrentando em terras brasileiras uma quarentena sanitária degradante, e recebendo do governo doações de terras.

Ignorávamos os caminhos abertos a facão na mata, as primeiras casas construídas com a madeira das picadas, o muito trabalho e o pouco dinheiro por sucessivas gerações. Nossa tradição italiana provinha da parte mais vil e subdesenvolvida da Europa. O analfabetismo dos que imigraram não era apenas do português.

Ainda assim, foi no Brasil que meus antepassados passaram a ter o pedaço de chão que na Europa lhes fora negado. Essa era a verdadeira origem de nossa pele branca e olhos claros. Foi a uva cultivada a destempo, as primeiras estradas de ferro e o trabalho árduo nos matagais doados pelo governo que relegaram à minha geração não só a tradição do consumo e da produção do vinho, mas também a oportunidade de estudar e, contraditoriamente, se desprender da terra.

Dos mais aos menos afortunados, meus primos aos poucos deixavam a Serra Gaúcha. Médicos, advogados, contadores, professores, trocávamos o campo pela cidade, a incerteza pela estabilidade. Foi por essa época, enquanto meus primos e eu chegávamos todos mais ou menos juntos à maturidade, que meu pai se apercebeu do abandono de sua geração, talvez a última a se dedicar às pequenas e médias propriedades vinicultoras.

Papai, e todos nós, éramos, ao mesmo tempo, senhores de terra e operários. Na entressafra, papai e mais dois trabalhadores cuidavam do parreiral. Durante a colheita, os braços dos adultos da família, dos vizinhos e dos empregados se somavam em torno do mesmo propósito.

Caçula e mirrada, eu observava ─ e pintava ─ tudo isso. Certa tarde, o tom irresignado de papai me fez levantar os olhos da tela em que tentava fixar as cores do parreiral:

─ Não, não, não! Escolha com cuidado o lugar que vai cavar! Tenta manter o alinhamento ─ e tomou a ferramenta das mãos do ajudante. ─ A videira tem raízes profundas; depois, não dá pra arrancar.

Voltei à tela, mas a frase singela, que extraiu um suspiro de enfado do funcionário, ficou registrada na memória, nem tanto por seu significado, mas mais pela presença altaneira de papai comandando os trabalhadores na preparação de um novo terreno, um dos últimos ainda livres na propriedade.

Nunca tomei a videira pelo caule para tentar revelar a profundidade de suas raízes, mas, alguns anos depois, pude atribuir um novo sentido àquelas palavras quando tive de decidir se daria continuidade aos estudos. Na mesma universidade, havia me graduado em Artes Visuais e cursado o mestrado. De repente, estava com vinte e oito anos e diante dos membros da banca de seleção para o curso de doutorado.

─ De onde você é?

─ Bento Gonçalves.

─ Está disposta a se mudar pra Porto Alegre?

─ Ela já mora em Porto Alegre, professora ─ interrompeu o Prof. Dr. Vicente Maria. ─ Ela é nossa aluna do curso de mestrado.

─ É mesmo? Que bom! Está em casa então.

Estava?

─ Bem, é isso. Alguém tem mais alguma pergunta?

Felizmente, não tinham. Depois disso, era aguardar a lista de aprovados.

Voltei pro apartamento que dividia com meu namorado desde o último ano da graduação, em um relacionamento repleto de idas e vindas. Naquele dia, já na cama, pouco antes de dormir, perguntei:

─ Tu gosta daqui?

─ Daqui onde?

─ Porto Alegre.

─ É uma boa cidade.

Marcelo não parecia interessado na conversa. Em seu canto, tentava dormir.

─ Estou pensando em voltar… ─ anunciei, revelando num rompante a profundidade de minhas próprias raízes.

Conquistei-lhe o interesse.

─ Pra Bento Gonçalves?!

─ Sim.

Ele levantou o corpo e se sentou na cama.

─ Tu vai fazer o que lá?! – mais exclamou do que perguntou.

Ao arrumar as malas nas semanas seguintes, percebi que não havia muito com que verdadeiramente me importasse no apartamento. Da bagagem que levei, metade abrigava telas enrodilhadas, cadernos de rascunho e alguns poucos livros.

─ Tem certeza do que está fazendo?

─ Tenho.

─ E essa tela, não vai?

─ É pra você.

─ Obrigado.

─ Por nada… Então, tchau.

─ Tchau.

Marcelo não tirou as mãos do bolso. E eu, arrependida de ter descido antes as malas, não soube o que fazer com as minhas. Tinha sido um bom relacionamento. Ao seu tempo, tivera a delicadeza das coisas frágeis. 

A Rodoviária de Porto Alegre permanecia com a mesma aparência decrépita de todos os anos, tendo, ao menos, o bom préstimo de fazer parecer aprazível o pequeno terminal de Bento Gonçalves. Apesar disso, num e noutro local, o cheiro de partida, nunca o de chegada.

Enquanto em Porto Alegre centenas de táxis laranjas disputavam espaço, ao chegar ao interior, pouco antes do almoço, encontrei apenas três táxis brancos e sonolentos aguardando corrida.

─ Estrada José Benedetti, por favor.

─ Pela Penitenciária ou pela Vinícola?

─ Terceira à esquerda após a Vinícola.

Poucos veículos passavam pela estrada da propriedade de meus pais. De qualquer lugar da casa, era possível ouvir os automóveis se aproximando e se afastando. Quando o motor silenciava no auge de seu ruído, sabíamos que havia parado em frente e que tínhamos que sair à porta.

─ Ué, o que faz aqui? ─ Mamãe me recebeu, confusa e sorridente. ─ Chegou em boa hora, o almoço está quase pronto ─ anunciou, já dentro da casa.

─ Estou mesmo com fome.

─ O Marcelo não veio?

─ Não.

─ E a faculdade?

─ Cadê papai? ─ desconversei.

─ Está trabalhando na poda próximo ao rio… Tu quer chamar ele? O almoço está quase pronto…

Atravessei o quintal, contornei o laguinho, adentrei o parreiral e segui em direção aos limites da propriedade. Pouco antes do início da descida do terreno em direção ao rio, divisei papai e os dois funcionários que sempre o ajudavam na entressafra.

Como na infância e adolescência, não me aproximei em demasia. Encontrei onde sentar e pousei as mãos na terra nua. Não era usual estar àquela distância de papai ou de qualquer outra paisagem da fazenda sem o caderno de rascunhos.

Papai havia notado minha aproximação, já que, naquelas terras, nada lhe passava despercebido, mas foi só quando o Sol ameaça se pôr a pino que ele interrompeu o trabalho e caminhou na direção minha e da casa.

─ Olá.

─ Oi, pai.

─ Seu Antelmo, vamos caminhando na frente ─ interromperam os trabalhadores, cumprimentando-me apenas com um movimento de cabeça.

─ Tá bem, vão lá ─ aquiesceu papai e, voltando-se novamente pra mim, perguntou: – Chegou agora?

─ Há pouco.

─ E o Marcelo?

─ Não vem.

Seguimos através do vinhedo, alternando silêncios com comentários impessoais.

─ Notou as rosas?

─ Foi a primeira coisa que notei.

─ Estão muito bonitas este ano.

─ Estão lindas, pai. Por que mesmo o senhor planta elas? ─ perguntei, mesmo conhecendo a resposta.

─ Por causa dos fungos… Atacam as rosas primeiro… Servem de alerta para os cuidados com as uvas.

─ É um fim bem triste.

─ É um fim útil. Não pode haver melhor.

Abandonei as rosas e olhei de esguelha para o homem que caminhava ao meu lado. Trazia a pele curtida e salpicada de pintas pretas. Era estranho, mas papai parecia ter tido sempre aquela mesma cara, sem nunca ter sido mais jovem. No entanto, eu sabia, e ele também, que não havia mais juventude ali. Ele era um velho cuidando de um velho parreiral.

─ Tu virá também pra Festa da Uva? ─ perguntou uma coisa por outra.

─ Eu vou ficar, pai ─ anunciei.

─ Pra festa? ─ ele perguntou antes de ser interrompido por mamãe à porta da casa:

─ Que demora! A comida tá esfriando!

Na cozinha, entre resmungos, mamãe fingia requentar a comida que nunca sequer chegara a tirar do fogo. Ágil e certeira, misturava os condimentos do prato especial que tinha conseguido preparar.

─ Não te acostume, hein!

─ Não precisava, mãe.

─ Claro que precisava! Não é todo dia que temos visita!

Livrando-se das botas e do chapéu, papai foi ao banheiro ajeitar-se para o almoço.

─ Vamos comer na sala ─ mamãe informou.

Caminhei até a sala e escolhi um assento na mesa ampla. De onde estava, passei os olhos pelo cômodo, enquanto respirava fundo o cheiro de saudade. Nas paredes, porta-retratos se misturavam às telas de diferentes períodos da minha produção. Nelas, traços leves e esparramados confundiam a vida e a história da minha família com a do próprio Rio Grande.

Naquele dia, nem nos anos que se seguiram, papai não tornou a tocar no nome de Marcelo, tampouco mencionou diretamente a mais de década que passei na universidade. Quando julgava que mamãe estava sendo indiscreta em seus infindáveis interrogatórios, ele simplesmente abandonava o cômodo. Não desprezava meu trabalho, ao contrário, o havia distribuído pela casa e, a cada Natal, apesar das mãos brutas, cuidava de embrulhar as telas com que presentearia família e amigos. Por outro lado, seu ânimo redivivo concedia novo gás ao funcionamento da fazenda. Pela primeira vez desde que a última filha partira, encontrava no trabalho cuidado outro que não a própria subsistência. Enquanto isso, eu, timidamente, tomava parte nos negócios:

─ Pai, já pensou em receber turistas?

─ Turistas?

─ É. Pra conhecer a fazenda, as parreiras, degustar as uvas, comer os pratos feitos de polenta… Já tem muito vinicultor fazendo isso… E vem dando certo.

Reticente ao início, papai foi aos poucos se afastando da terra e se concentrando nas atividades da pequena usina de vinho que insisti em instalar na propriedade pra deleite dos turistas. Desde sempre fascinado pelo cultivo da uva, ao longo de sua vida entregue ao refino da cooperativa, papai se encantou pela possibilidade de imprimir seu nome ao rótulo do seu próprio vinho. No esmero que depositava à cada etapa da produção, na privação de sono a que se submetia, na degustação infinita a que se entregava, eu encontrava paralelos com um dia frio e distante em que, caloura na faculdade, ouvi de um professor que o artista era aquele que, transtornado, era capaz de encontrar matizes e nuances onde ninguém mais encontraria.

─ Pai, tu é louco!

─ Vamos! Prova!

─ Eu já provei!

─ E não sentiu a complexidade?

─ Que complexidade, pai?! É só vinho!

Estávamos bêbedos. E nos entendíamos. Sem nunca ter partido completamente, eu havia voltado. No dia seguinte, contra toda procrastinação e preciosismo de papai, teríamos que despachar apenas um dos lotes. No rótulo que as garrafas levariam, estariam estampados alguns de meus trabalhos mais recentes e o sobrenome de papai, que havia, afinal, encontrado em mim, a filha artista e aluarada, alguma sobrevida pra sua fazenda e suas uvas.

─ Bah, só vinho! Vá… ─ e ameaçou abandonar a adega.

─ Que isso, pai?! Volta aqui!

─ Não adianta! Tu não tem sensibilidade!

Apenas sorri, e o observei partir.

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37 comentários em “Bento Gonçalves (Anderson Prado)

  1. Daniel Reis
    19 de junho de 2021

    Um dos textos mais narrativos desse Desafio, no qual o autor construiu com bastante habilidade a história da filha que parte da vida rural e oriundi do Rio Grande do Sul para estudar na cidade grande e depois retorna, com sua decepção amorosa mas ímpeto em profissionalizar a vinícola de seu pai. Me lembrou, e recomendo a leitura, de “Linda, uma história horrível”, do Caio Fernando Abreu, autor gaúcho também que trata do retorno ao lar, mas com uma abordagem bem mais trágica. Na parte técnica, o texto é bem claro e direto, sem firulas, o que eu achei muito bom. O ponto que menos me agradou foi mesmo o destino da história, mas esse pertence aos personagens e ao autor, e não posso querer que fosse diferente. Boa sorte no Desafio!

  2. Fernanda Caleffi Barbetta
    19 de junho de 2021

    Olá, Videira, um belo texto, daqueles feitos para emocionar, para buscar a empatia do leitor, para ganhar desafio. Se vai ganhar, não sei rsrs. Gostei do enredo, dos personagens, da relação familiar bem apresentada. Como descendente de italianos, pude ver um pouco da minha história ali tb.

    Algumas passagens deixaram a desejar, como a questão do doutorado. A inclusão do diálogo na banca de avaliação, na minha opinião, foi desnecessária. O motivo pelo qual ela desistiu do doutorado e resolveu voltar para casa não foi muito bem explicado.

    Ali no meio, quando inclui o diálogo que apresenta o bisavô Guido, achei confuso, precisei ler mais de uma vez, foi um corte abrupto no texto.

    “ Essa era a verdadeira origem de nossa pele branca e olhos claros.” – essa frase no meio do parágrafo ficou solta, não fez sentido para mim.
    ”frase singela” – frase singela naquele contexto não me pareceu uma boa escolha.
    A parte do almoço, quando ela volta para casa ficou confusa porque de início diz que a comida estava quase pronta, depois, que a mãe havia acabado de fazer para ela.

    Papai, e todos nós, éramos – tirar as vírgulas
    mas foi só quando o Sol ameaça (ameaçou) se pôr a pino

  3. cicerochristino
    19 de junho de 2021

    Protagonista vai estudar na capital, longe da casa dos pais e acaba retornando para a Serra, desistindo de prosseguir na academia.
    Ambientação muito bem trabalhada. A descrição das personagens foi muito bem feita (uma família “gringa”, p/ quem conhece, extremamente bem descrita), os elementos culturais e espaciais muito bem expostos. Quanto ao ritmo, achei um pouco arrastado, com uma introdução mais longa do que o recomendável. Tem bastante coesão, mas o final achei um pouco confuso (talvez fosse a intenção com o efeito do vinho).
    Me senti na Serra! Parabéns e Boa sorte!

  4. Regina Ruth Rincon Caires
    19 de junho de 2021

    Bento Gonçalves (Videira)

    Comentário:

    Que lindo texto!

    O autor tem o dom de narrar com crueza, de maneira dura. Isso me leva ao passado, no tempo da educação rígida, das falas secas, dos poucos abraços, da afetividade contida. Era assim. De pai para filho, a austeridade era transferida, o comedimento era de costume. E o conto retrata isso com muita fidelidade. A linguagem é enxuta, a descrição é limitada. Apenas o essencial é falado. Há mais história nas entrelinhas do que na narrativa. E cada leitor constrói o seu entendimento de acordo com a sua vivência.

    Uma bela história de família, não romanceada. Mesmo quando narra sobre a chegada da família, do estrangeiro para a região sul, tudo é descrito sem floreio, de modo realista. O texto é direto, retrata fielmente a lida com os sentimentos num passado ainda recente.

    A leitura gera nostalgia, mas não descreve saudade. Relata, apenas expõe a saga. As emoções são contidas até mesmo na linguagem. O autor demonstrou competência ímpar na construção da narrativa.

    Videira, você construiu um belo enredo, um conto consistente. Lindo trabalho!

    Parabéns!

    Boa sorte no desafio!

    Abraços…

  5. opedropaulo
    19 de junho de 2021

    O conto apresenta uma história bem interessante, em que o tema é atravessado logo a princípio, pela divergência de perspectiva do pai excessivamente pragmático e a filha cujo objetivo profissional é a arte. Imaginei que o texto discutiria o tema do desafio tomando qual é o lugar e a valorização que tem os artistas em nosso país e o que significa uma graduação em uma área que não recebe a atenção que deveria. Quando escrevo “discutir”, digo que se faria perceber pelo aprofundamento das contrariedades entre pai e filha na medida em que a personagem passaria pelas glórias e vicissitudes da área. O texto é muito bem escrito, expressando sentimentos enquanto informa o leitor e sabendo transitar entre esses trechos com a sutileza necessária. O conto não atendeu a essas minhas expectativas, tomando um caminho pela vida pessoal da personagem, ora mostrando como a mesma se conectou com as artes, ora vindo para o futuro, quando retorna para casa e tem uma surpreendente reconexão com o seu pai. Nessa ocasião renova também a da fazenda e complementa essa revitalização com a sua própria arte, em mais uma reviravolta feliz que liga o fim ao início, dando coesão à história. Senti falta de ver a personagem lidando com as frustrações e realizações de sua área, dos pequenos eventos que a fizeram decidir pelo retorno a Bento Gonçalves, mas entendo que a falta de espaço talvez tenha tido a ver com a decisão de mostrar apenas o momento conclusivo desse retorno. Além disso, achei os parágrafos dedicados à origem italiana da família da personagem expositivos em demasia. Acredito que havia uma forma mais sucinta de apresentar essa herança e o significado do ingresso da geração da personagem no ensino superior.

    O texto é excelente, com uma força nostálgica que nos faz sentir em um espaço limitado de palavras toda a trajetória da personagem, mesmo deixando o tema do certame um pouco na tangente.

  6. Bruno Raposa
    18 de junho de 2021

    Olá, Videira.

    Vou começar adjetivando seu conto de uma forma não muito agradável, mas que resume bem minha leitura: achei bem chato, rs. Mas, veja bem, chato não é sinônimo de ruim. Eu reconheço os méritos do texto: ele é delicado e tem uma escrita em que se nota bastante capricho, ainda que não escape de uns escorregões. Mas o enredo um bocado superficial, escolhas narrativas questionáveis e alguns vícios na escrita atrapalharam bastante minha experiência.

    Começando pelos vícios de escrita. Há um evidente excesso de exclamações e dois pontos. São nada menos do que quarenta e cinco exclamações e vinte dois pontos. São incontáveis falas marcadas por exclamações, muitas delas precedidas por dois pontos. Aliás, tem até frase em que os dois pontos aparecem duas vezes. Seria interessante se a pontuação estivesse ali para causar algum efeito estético. Mas a segunda vez em que ela aparece é apenas para preceder – mais uma vez – uma fala.

    Existem recursos menos invasivos do que recorrer o tempo inteiro aos dois pontos. Na maioria das vezes em que aparecem eles sequer são necessários. Pareceu um vício, uma ânsia de sempre anunciar ao leitor que virá uma fala a seguir. Note como nos momentos em que você abre mão da pontuação ela não faz falta alguma:

    “Virei as costas e retornei pra dentro de casa. Pouco depois, mamãe também voltou. Quando transportávamos as últimas malas até o táxi, as botas, mais do que papai, apareceram na porta da cozinha batendo-se desajeitadas contra o limpa-pés de ferro:

    ─ Não posso entrar ─ desculpou-se. ─ Estão sujas.

    Percebi a indignidade do velho, repreendido pela esposa e assistindo à última filha partir; querendo aproximar-se, mas sem saber como.

    ─ Sem problema, pai ─ apressei-me a dizer. ─ Até mais ─ e o abracei.”

    Antes da primeira fala você usou – desnecessariamente – os dois pontos. Antes da segunda, não. E não fez a menor diferença.

    Já a torrente de exclamações gera a estranha sensação de que todas as falas dos personagens são ditas num tom exaltado. Esse efeito piora quando aparecem várias num curto espaço, o que foi recorrente aqui. Outra vez, pareceu um vício. Um recurso fácil para emprestar emoção aos diálogos. Assim como no caso dos dois pontos, há formas menos invasivas de resolver essa questão.

    Falando sobre o enredo, achei a parte mais fraca do texto. Acompanhamos uma história muito simples: garota vai para a faculdade, não encontra satisfação na sua jornada, volta para a casa e se descobre confortável com suas raízes. Nenhum problema nisso. Mas, se a trama não vai nos trazer nada de especial, então é de se esperar que haja um investimento na construção dos personagens e seus conflitos. E é aqui que a narrativa falha.

    Os conflitos propostos são resolvidos de forma extremamente superficial. Sequer entendemos os motivos do desconforto de Giovana em Porto Alegre ou quais suas motivações para voltar à Bento Gonçalves. O término da longa relação com o namorado, que poderia gerar algum desdobramento interessante, é basicamente ignorado pelo texto. Nem mesmo a relação de Giovana com sua arte é aprofundada. A narrativa parece fazer questão de se manter distante dos personagens, sem jamais torná-los realmente interessantes. Terminei a leitura me questionado sobre as razões de estar acompanhando a história dessas pessoas.

    Parte do problema, creio, deve-se às escolhas narrativas questionáveis de que falei no início. São muitas as descrições sobre o ambiente, sobre o ofício do pai e até sobre a história migratória dos antepassados da protagonista, num momento meio aula de história que ficou um tanto deslocado no texto. Dessa forma, o conto gasta muito tempo com pormenores, que, reconheço, enriquecem a narrativa, mas reserva pouco espaço para o que deveria ser o cerne do texto: os conflitos de Giovana, sua busca por adequação, suas relações com a família, a arte e o local onde nasceu. O conto parece se perder em questões secundárias e se desligar do essencial.

    A abordagem do tema do desafio me pareceu bem pálida. Sim, a protagonista é uma artista e há uma clara analogia entre o fazer artístico e a produção de vinho. Mas tudo isso fica num distante segundo plano. Se Giovana não tivesse interesse artístico e partisse para Porto Alegre para estudar qualquer outra coisa, teria feito pouquíssima – ou mesmo nenhuma – diferença. Não é um ponto fraco do texto em si, mas, dentro dos meus critérios de avaliação, o enfraquecem dentro do certame.

    A minha impressão geral é de que o conto se preocupou muito mais com a forma do que com o conteúdo. Num desafio sobre arte, essa é uma boa discussão, rs. Certamente o valor estético do texto vai encantar muitos leitores. Mas, para mim, o conteúdo raso o torna esquecível.

    Desejo sorte no desafio.

    Abraço.

  7. Luis Fernando Amancio
    18 de junho de 2021

    Olá, Vinhedo!
    Seu conto contempla o tema do desafio. A pintura, arte à qual se dedica a protagonista, possui destaque. Ao fim do conto, o conceito de arte é expandido de forma muito sábia: se ser artista é exercer sensibilidade, apreciar um bom vinho é, igualmente, uma arte. Eu, por exemplo, não sou tão bom nesse ofício – aliás, talvez seja ainda pior na literatura, então, 0 a 0.
    Sua narrativa é muito bonita. A escrita é segura, bem traçada. Acho, todavia, que há uma oscilação no tom. Por exemplo, ainda que a elegância na narrativa seja o padrão, encontramos trechos como esse, para o meu gosto pouco inspirados: “Meu destino aos dezessete anos? O Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Meu passado? Papai resoluto declarando que roça não era lugar de criança. Meu presente? Papai teimando em não me levar até a rodoviária de Bento Gonçalves.”
    Essa oposição de perguntas e respostas soa imatura, quase um joguete de colégio. Mas acredito que uma revisão “à frio” resolva com facilidade esses trechos. Há outros momentos assim, que destoam do texto.
    Embora eu tenha alguma preguiça de narrativas engrandecedoras da imigração europeia no Brasil (acho que já foram contadas o suficiente), seu conto me agradou. Ele nos surpreende por ser uma história de retorno, quando estamos aguardando mais um relato nostálgico do abandono da vida no campo. Inclusive, de certa forma, ao fim o vinhedo é inserido na modernidade (o turismo gourmet). Mesmo o retorno é mudança.
    Talvez, mas é só uma opinião, essa volta pudesse ser melhor trabalhada. O que provocou o regresso da jovem para o interior? Fica um pouco abrupto, da garota que sai para estudar e, um corte, temos ela, mulher, deixando Porto Alegre com certa apatia. Não é difícil, evidentemente, imaginar o que ocorreu. Só acredito que o corte poderia ter sido mais suave.
    Em todo caso, um bom conto. Bem mais virtudes do que defeitos, na minha humilde opinião.
    Parabéns pelo trabalho e boa sorte no desafio!

  8. Fabio D'Oliveira
    17 de junho de 2021

    Antes de continuar, acho justo esclarecer como estou avaliando nesse desafio. Além de uma consideração final, guio-me por três fatores: artístico, técnico e criativo. Não estou participando dessa vez, mas decidi ajudar a movimentar os comentários!

    ARTÍSTICO

    Parte da vida de uma artista, que possui uma relação íntima e orgulhosa com a família, mostrando seu caminho até o retorno para casa. Apesar dos contornos da arte estarem presentes no conto, ele não é o foco e poderíamos trocar a vocação da protagonista que funcionaria da mesma forma. Fico dividido nessa questão, sempre.

    Seu texto é uma pequena obra de arte, com uma leitura gostosa e escrita cuidadosa, um artística técnico e bem desenvolvido. Faltou explorar a liberdade de mídias extras, mas tudo bem.

    TÉCNICO

    Excelente.

    Apesar de alguns erros de revisão, o conto está muito bem escrito. Uma narrativa sólida e bem desenvolvida, tanto que a leitura acontece sem qualquer entrave,. construção do texto é impecável, com palavras bem aplicadas, tudo bem pensado, praticamente o trabalho de um perito.

    CRIATIVO

    Bom.

    É criativo. Pega uma história simples e transforma em algo sensível e bonito. Não segue um caminho óbvio, como a vida, e aparenta ser embasado em pesquisas bem executadas. Esse esmero é admirável.

    Admito uma coisa: achei chato. Queria dormir na metade da leitura, hahaha. Por vezes, sentia-me cansado pela repetição de algumas ideias, assim como o desenvolvimento lento dos acontecimentos. É uma história muito bonita, não se engane, apenas não gosto muito desse tipo de literatura. Acredito que, sim, é possível entreter, emocionar e ensinar ao mesmo tempo.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    O conto é excelente.

    Não me conquistou, mas seria uma injustiça não elogiar a beleza e qualidade desse trabalho. Ele é excelente em inúmeras formas. Cabe algumas melhorias, mas sempre cabe, né?

    Parabéns pelo trabalho e boa sorte no certame!

  9. Kelly Hatanaka
    12 de junho de 2021

    Oi Videira.

    Amei o seu conto, muito.

    Ele traz uma nostalgia e uma carga sentimental intensas. A escrita é excelente. Mesmo sendo um conto longo, li todo sem perceber. Tem uma estrutura linear, começo, meio e fim e um fechamento doce. A história é simples e a estrutura idem, e você transformou essa simplicidade toda em ouro.

    Para mim, a última linha teve um plot twist. Durante toda a leitura, interpretei a arte pelo enfoque da pintura. Só na última linha percebi que o pai era também um artista, em seu amor à terra e ao vinho.

    Até agora, este é o meu favorito.

    Kelly

  10. Jorge Santos
    7 de junho de 2021

    Olá Videira. Este foi um dos contos de que gostei mais neste desafio. Numa escrita bastante elegante, o conto narra a história da descendente de uma família de imigrantes italianos que regressa a casa depois de estudar belas artes. Há aqui vários pontos interessantes. Primeiro, a tradição dos imigrantes no Brasil. Do pouco que conheço o vosso país, tenho a ideia de ser um mosaico de culturas feitas pelas diversas fornadas de imigrantes. Não gostei muito do comentário sobre o analfabetismo dos portugueses – Camões deve estar a dar uma volta na tumba, mas enfim… A minha família é maioritariamente de imigrantes (Brasil incluído – nomeadamente Santos). A ideia da manutenção das raízes surge com bastante força e evidência no conto, até mesmo nos traços mais negativos como é o chauvinismo latente. Gostei da forma como a personagem regressa a casa e encontra o seu espaço – curiosamente, também eu usei este recurso no primeiro livro que publiquei, passado numa quinta do Douro. Depois de um período no Porto, toda a família se muda para a quinta no Douro, onde passam dificuldades financeiras até que encontram um investidor interessado em comercializar o vinho que produzem. Lembrei-me imediatamente desta coincidência ao ler o seu conto. De resto, nada a apontar (como é óbvio, não vai receber nota máxima por causa do comentário sobre os meus conterrâneos, capisce?).

    • Videira
      7 de junho de 2021

      Olá, Jorge! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Jorge, independentemente do desafio e da nota que você atribuiu ao conto, desculpe por ter feito parecer algum preconceito com sua nacionalidade! “Português”, no contexto, tem o significado de “língua portuguesa”! Jamais “português” enquanto nacionalidade! A frase deve estar apenas mal construída. Nas próximas edições, vou substituir “do português” por “da língua portuguesa” e eliminar a dubiedade.

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

    • Thiago de Castro
      9 de junho de 2021

      Jorge, olha eu metendo o bedelho!

      Vou fazer um adendo nessa questão do analfabetismo. Quando analisamos as listas e registros de imigrantes que vieram para o Brasil (Disponíveis no Museu da Imigração), principalmente os destinados ao trabalho no campo, boa parte dos portugueses e italianos que chegaram aqui eram agricultores e analfabetos, como consta nos registros. Longe de ser um preconceito, ou crítica, é um dado histórico. Na minha interpretação, tem um segundo ponto que o texto levanta nesse trecho: há, no Brasil, um enaltecimento desse passado imigrante que, por vezes, beira o ufanismo, quando não ideias eugenistas, pois há um preconceito latente com imigrantes de países não europeus, também muito presentes por aqui. Falam com orgulho o sobrenome italiano e português, mas olham com desdém para o imigrante boliviano, peruano, venezuelano e congolês, muitas vezes ignorando que seus antepassados vieram em condições semelhantes por motivos também parecidos: a fuga da fome, uma melhor condição de vida, uma oportunidade para educar seus descendentes. Isso sem contar a xenofobia contra os próprios migrantes nordestinos, principalmente em regiões do sul e sudeste, com forte presença de descentes de italianos e portugueses.

      Percebi o trecho dessa maneira: valorizar o passado imigrante, mas sem romantização ou sobreposição à outros povos, o que, infelizmente, ainda acontece muito!

      Grande abraço!

  11. Elisabeth Lorena
    4 de junho de 2021

    Bento Gonçalves (Videira)

    Conto interessante. De memória recente, quase linear em relação a toda vida escolar do narrador – narradora. Inicia jogando o leitor para uma memória entre infância e adolescência, forçando-o a acompanhar essa viagem. E então trabalha a relação dela, enquanto personagem, com o pai. Da aparente agressividade para manter sua vontade: “─ Vai estudar, sim, senhora!”, à camaradagem “─ Bah, só vinho! Vá… ─ e ameaçou abandonar a adega.” Aqui ainda vale frisar que utilizar o presente para chamar a memória é uma atribuição da oralidade que cai bem em contos de afetividade.
    Entremeio a isso, uma vida acontece. A separação com a partida para a faculdade, o crescimento acadêmico, desde a formação básica ao doutorado que acaba inconcluso. A vida ao ar livre, o abraço a outra arte e a liberdade que a chama.
    O texto tem muita marca de ligação com a figura paterna, o que justifica o final, mas não o antecipa, o que obviamente é um ganho da narrativa. As contradições desse pai são postas desde a frase inicial, que desperta o leitor para a viagem mnemônica, passando pelo cuidado para que estudasse, o desprezo com a saída para a Universidade, mesmo já tendo outros filhos formados – o que depois é justificado pela relação que eles têm. Bate o pé, mas faz o certo, vê partir e provavelmente sofre mais do que podemos pressentir com esse desligamento. Ela não. Ela vai viver suas novas conquistas, melhorar sua arte, ter outro tipo de relacionamento.
    Achei interessante também a situação do pai e mãe, eles conversam e se desentendem até entrarem em acordo, longe dos filhos. Super saudável. E quanta força comunicativa há em “as botas, mais do que papai, apareceram na porta da cozinha” e ainda em “querendo aproximar-se, mas sem saber como”.
    Interessante que a Arte é colocada na vida da personagem e no texto de forma a acompanhar os primeiros anos de estudo. O apoio da família também está posto no texto, primeiro com a condescência e depois com a admiração e respeito.
    A cultura familiar também é abordada, o que cria a relação ambiental com a cidade que dá nome ao texto. Um pouco de história do Brasil com o início da imigração dos italianos para a região Sul do Brasil, a pobreza desses imigrantes, a quarentena. incrível que esse tema é recorrente, meus avós falavam nisso.
    Também tem certa força, quase secura na constatação de que esses seres vindos de uma Itália destruída não eram escolarizados: “ O analfabetismo dos que imigraram não era apenas do português.” Com um pouco de exercício de reflexão, dá para perceber que na maioria dos casos, a imigração sempre opção maior de quem tem menos.
    Também o problema social e cultural do homem do campo surge com a apresentação do sentimento de abandono de suas raízes. Aqui, apresentado a solidão do pequeno produtor de forma individualizada em: “Foi por essa época, (…) que meu pai se apercebeu do abandono de sua geração, talvez a última a se dedicar às pequenas e médias propriedades vinicultoras.” e por ser apresentada assim, ganha força e a figura do pai sai mais uma vez à luz.
    O texto é cru. Bonito sim, bem estruturado, com uma mudança adequada, com surpresa, porém cru. Mesmo quando se trata do retorno, falta sensibilidade – uso aqui a fala do pai. Quero acreditar que seja uma escolha do autor e respeito, mas para uma leitura por deleite, falta um trato de linguagem mais suave, principalmente porque a narradora é uma mulher e uma artista. A narração aproximou ela da irmã, na fala seca e impaciente com o pai que tenta entender a escolha da caçula, como se as duas fossem uma pessoa.
    O enredo é bom, como já salientei acima. As personagens são pouco trabalhadas. O que é uma pena, já que o pai deixa entrever boas promessas. Não consigo ver a narradora, é como se ela falasse de fora, embora as informações soem como real, falha com o intuito de aproximar o leitor melhor dela.
    O enoturismo apontado como iniciativa de outros produtores também é interessante. A ideia de trilhar a narrativa da arte da vinicultura familiar-vinheria e pintura é interessante e merecia um plano de sentido mais elaborado.
    Por último, saliento que gostei dessa fala: “De onde estava, passei os olhos pelo cômodo, enquanto respirava fundo o cheiro de saudade. Nas paredes, porta-retratos se misturavam às telas de diferentes períodos da minha produção.” Embora o texto ficou um pouco a desejar em relação ao lirismo que daria credibilidade à narradora artista, essa parte deu uma refrescada. Pequena, mas ainda assim, valeu.
    Boa sorte.

    • Videira
      7 de junho de 2021

      Olá, Elisabeth! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Que experiência fantástica ter um texto meu analisado com tanto capricho! Detalhes que escaparam à minha própria análise apareceram na sua! Sinto-me impotente e incapaz de retribuir tamanha gentileza!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  12. Fheluany Nogueira
    3 de junho de 2021

    O fio condutor do conto é o vinho, ligado à presença italiana na serra gaúcha e às Artes Visuais. É discutido como será o futuro dos pequenos vitivinicultores e dos artistas (“E dá dinheiro?”) — um paralelo recheado de metáforas, em linguagem ora poética, ora informal, dependendo da situação apresentada.

    O texto, tecnicamente muito bem construído, está permeado de belas imagens; é leve, divertido e traz personagens carismáticos. A leitura provocou-me uma saudade danada da viagem que fiz a Bento Gonçalves e deixei o trem bebinha de vinho e tradição.

    Parabéns pelo trabalho e boa sorte no desafio! Abraço.

    • Videira
      7 de junho de 2021

      Olá, Heluany! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Foi um privilégio saber que meu texto despertou uma lembrança tão querida e tão bonita quanto essa de deixar “o trem bebinha de vinho e tradição”!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  13. gisellefiorinibohn
    2 de junho de 2021

    Olá, Videira!

    Já disse isso antes, e repito: não sou uma boa comentarista. Vou falar do que senti, e de algumas coisas que me saltaram aos olhos.

    Eu poderia dizer só que o conto é lindo, muito bem escrito, e não mentiria. Mas aprendi aqui no EC que a gente precisa criticar também, então vou começar por aí.

    – O texto está todo no passado, e começa no presente. Pra mim, não fez sentido.

    – Se foi dito que “Sem querelas, Luíza havia escolhido Enfermagem. Segunda mais velha de cinco mulheres, havia se formado fazia dez anos”, achei desnecessário repetir isso:
    “Luíza, a enfermeira, seguira em minha defesa.”
    Eu já sabia que Luíza era a enfermeira.

    – Aqui há dois erros de concordância:
    “mas nos quais se divisavaM a leveza e a precisão que um dia distinguiriaM meus traços.”

    – Aqui acho que faltou um “a”:
    “mas ajuda A entender”

    – Achei a motivação dela pra voltar pra casa muito mal desenvolvida, e o lance todo do doutorado bem desnecessário.

    – Essa segunda oração (“Essa era a verdadeira origem de nossa pele branca e olhos claros.”) está muito mal inserida no parágrafo abaixo. Parece um daqueles exercícios “Encontre a frase que não pertence ao texto”:
    “Ainda assim, foi no Brasil que meus antepassados passaram a ter o pedaço de chão que na Europa lhes fora negado. Essa era a verdadeira origem de nossa pele branca e olhos claros. Foi a uva cultivada a destempo, as primeiras estradas de ferro e o trabalho árduo nos matagais doados pelo governo que relegaram à minha geração não só a tradição do consumo e da produção do vinho, mas também a oportunidade de estudar e, contraditoriamente, se desprender da terra.”

    – Ficou difícil visualizar essa cena: a mãe sai para recebê-la fora da casa e de repente já está dentro. Teria sido melhor separar as orações:
    “─ Ué, o que faz aqui? ─ Mamãe me recebeu, confusa e sorridente. ─ Chegou em boa hora, o almoço está quase pronto ─ anunciou, já dentro da casa.”

    – Erro de revisão:
    “mas foi só quando o Sol ameaçaVA se pôr a pino que ele interrompeu o trabalho e caminhou na direção minha e da casa.”

    Agora minhas birras pessoais, que comento só pra ter o que dizer hahaha:

    – Não gosto de diálogos quebrados por explicações, e tem de monte aqui. Pra mim, quebra a fluidez da leitura:
    “─ Sem problema, pai ─ apressei-me a dizer. ─ Até mais ─ e o abracei.
    ─ Boa viagem ─ encomendou.”

    – Não gostei desse trecho, achei muito bobo (sim, meus comentários são toscos!):
    “Meu destino aos dezessete anos? O Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Meu passado? Papai resoluto declarando que roça não era lugar de criança. Meu presente? Papai teimando em não me levar até a rodoviária de Bento Gonçalves.”

    – A narradora tem a linguagem mais casual do mundo, e, de repente, solta um “não obstante”. Não caiu bem:
    “Além de uma enfermeira, papai se orgulhava de ter formado uma contadora, uma geóloga e, muito em breve, formaria também uma professora, não obstante o susto inicial:”

    – Quando a narradora começa a palestrar sobre as raízes italianas, muda totalmente o tom da linguagem. Esquisitíssimo.

    – Essa metáfora achei meio ruinzinha:
    “Da varanda, eu assistia à cena e quase pude perceber a machadinha de papai perdendo um pouco do brio sob o olhar esmagador da esposa.”

    Por que resolvi falar tudo isso? Só pra justificar que não gostei assim, taaaaanto. É um conto bonito, bem escrito, boas imagens, quase perfeito? É. Mas me deu a sensação de ter seguido uma “fórmula de conto pra ganhar concurso”, coisa que eu detesto. Sei lá. Pode ser que hoje eu só esteja de mau humor mesmo.

    De qualquer maneira, boa sorte no desafio! Periga ganhar, viu?

    Pronto. Agora pode vir, Videira! 😊

    • Videira
      3 de junho de 2021

      Olá, Giselle! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Que leitura atenta! Sinto-me dissecada! Imagina se você não é boa comentarista! Das melhores! Disse do que gostou e do que não gostou sem qualquer vaguidão. O oposto a isso (e de mal gosto) seria: alguma coisa não me agradou, mas não sei precisar o quê. Indicando com acuidade e carinho o que lhe agradou e o que desagradou, posso me debruçar sobre seu comentário extraindo dele sábios ensinamentos ou apenas inservíveis opiniões.

      Agradeço pelos apontamentos de caráter técnico! Constarão de futuras revisões! Salvo engano, não estão todos corretos, mas não sou a mais qualificada para me imiscuir no ponto (vou reservar para meu revisor). Apesar de não ter conseguido agradar você completamente, fico lisonjeada pelos curtos, mas inescapáveis elogios.

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  14. Leonardo Philipe
    1 de junho de 2021

    Olá, Videira! Obrigado por compartilhar Bento Gonçalves conosco ♥️

    Dinâmico, envolvente, intimista e cheio de significado. Claramente foi escrito por alguém que pratica a escrita há um bom tempo.

    – PONTOS POSITIVOS: a utilização das exclamações é excelente, enriqueceu muito os diálogos. Falando em diálogos, que aula! Seu conto é um ótimo exemplo de como escrever conversas; são fluidas e verossímeis. A presença da linguagem informal ajudou bastante na construção dos mesmos.

    “─ É um fim bem triste.

    ─ É um fim útil. Não pode haver melhor.”

    Parei a leitura nesse trecho para pensar a respeito… de várias coisas. A Arte é útil?

    Só quem já teve que defender os próprios anseios de vida perante uma família mais conservadora sabe o quanto essas questões sugam nossa energia. Acho que o grande trunfo do seu conto foi conseguir transmitir todo o processo de amadurecimento de uma artista, e as nuances emocionais de todo esse percurso.

    De todos os que li até agora, Bento Gonçalves é O exemplo de como combinar técnica de escrita e inspiração.

    – CONSIDERAÇÕES:

    Em alguns momentos, eu tive a leve impressão de que houve pressa na construção de alguns parágrafos. O excesso de vírgula tirou um pouco do ritmo da leitura.

    Por ser uma narrativa curta, mas que aborda uma história longa, talvez precisasse de um pouco mais de tempo para organizar melhor algumas frases.

    Porém, por ter conduzido a narrativa com maestria, a “pressa” torna-se um detalhe mínimo.

    O final é magnífico!

    Parabéns! ☮

    • Videira
      3 de junho de 2021

      Olá, Leonardo! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Acho que comungamos da preferência pelo mesmo trecho! O diálogo sobre a rosa ficou bastante significativo. Minha intenção era de que a fala sobre a profundidade das raízes da videira fosse a mais simbólica, mas, sem querer, tive a impressão de que o foco se desviou para o diálogo da rosa – e acabei gostando.

      Desculpe pela pressa e pelo excesso de vírgulas! Embora eu não enxergue a pressa, não nego que ela pode ter decorrido da longa trajetória que escolhi contar. Longa demais, talvez, para as três mil palavras permitidas pelo desafio. Sobre as vírgulas, fazem parte do meu estilo, mas prometo me policiar mais!

      Que bom que gostou da verossimilhança dos diálogos!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  15. claudiaangst
    30 de maio de 2021

    Olá, Videira, tudo bem?

    Farei considerações sobre seu conto na forma de A-R-T-E:

    A = A arte em si = Pintura. O tema do desafio foi abordado com sucesso.

    R = Revisão = Quase nada a ser apontado.
    – mas ajuda entender > mas ajuda a entender [não chega a ser um erro]
    – a leveza e a precisão que um dia distinguiria meus traços>a leveza e a precisão que um dia distinguiriam meus traços. leveza e precisão = sujeito composto= plural
    – quando o Sol ameaça se pôr > quando o Sol ameaçava se pôr
    – Naquele dia, nem nos anos que se seguiram, papai não tornou > achei a construção estranha – talvez devesse tirar o “não”

    T =Trabalho de escrita/narrativa = “A videira tem raízes profundas; depois, não dá pra arrancar”. O mesmo posso dizer da escrita apreciada aqui. Nota-se a habilidade de elaborar frases e traduzir imagens com maestria. Linguagem clara e bem trabalhada, sem se perder em rodeios desnecessários. Giovana, nome da minha filha, deixa claro que ainda estava muito ligada as suas origens, fincada no solo da família. A arte a levou para longe, mas também a trouxe de volta para ilustrar a história da família nos rótulos de vinhos. Achei muito bela a passagem do reencontro entre pai e filha. A arte não aparta ninguém, mas ao contrário serve de ligação, de religação com a verdadeira essência.

    E = Então, autor[a] = Uma bela história de família, de resgate das raízes, que nunca foram arrancadas, mas que precisavam ser regadas. Muito bom ler uma narrativa tão bem escrita e que nos aquece a alma.

    Parabéns pela participação e boa sorte no desafio.

    • Videira
      31 de maio de 2021

      Olá, Claudia! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Apesar dos variados comentários recebidos até aqui, o seu é o primeiro a fazer menção mais detalhada à metáfora da videira e suas profundas raízes. Essa (a metáfora) – para além do tema do desafio (Arte) – deveria ser o cerne do conto. No entanto, à medida em que o trabalho se robustecia e aprofundava, outros elementos do texto foram se destacando (conflito familiar, preconceito contra a profissão de artista, agruras da carreira acadêmica, desmazelo com relacionamentos de longo prazo, imigração italiana, esvaziamento do campo etc.). Ainda assim, a metáfora está lá. Foi percebida por todos os leitores até aqui. E ganhou especial destaque neste seu comentário. Giovana, criada entre parreirais e deles extraindo sua inspiração, acabou, como as videiras de que seu pai falava, fincando raízes profundas, não mais podendo ser arrancada de seu solo e sua gente.

      Obrigada pelos apontamentos a título de “revisão”! São valorosos! Apenas em relação ao uso do “não” também tenho dúvidas sobre qual seria a melhor escolha, já que, quando escrevi o texto inicialmente sem ele, ficou-me parecendo que a frase que deveria ser uma negação teria se transmutado numa confusa afirmação (entre a confusa afirmação e a confusa negação, optei pela segunda). Talvez o melhor mesmo seja reescrever essa frase por inteiro, repensando o “nem” e o “não”.

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  16. antoniosbatista
    28 de maio de 2021

    Ambientação= No tema- Artes Plásticas.

    Escrita= Boas frases, bons diálogos, descrições, etc. e tal.

    Enredo= Bom enredo.

    Considerações gerais= Mas bah! Moro perto de Bento Gonçalves (88 km) e nunca fui lá tomar um suco de uva direto da fonte. Capaz que eu vou deixar de provar o vinho direto do tonel, só vou molhar us beiço né, porque não bebo bebida alcoólica, não porque não gosto é que me faz mal pra cachorro. Mas falando do conto; gostei da história e acho que tens bastante material para um romance. Uma história mais extensa, através de gerações, começando lá nos antigamente, no desbravamento da terra, enfrentando índios e depois os estigmas da Segunda Guerra Mundial e por aí vai. Eu aki ensinando o padre a rezar missa!
    Você tem uma boa escrita, constrói muito bem personagens, se percebe que cada um tem sua própria personalidade. Gostei do conto. Boa sorte.

    • Videira
      31 de maio de 2021

      Olá, Antônio! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Você conhece a história da imigração italiana a ponto de ter mencionado um fato que não consegui fazer constar do conto: o impacto que a Segunda Guerra Mundial provocou na história da preservação da cultura daqueles imigrantes no Brasil. Durante os anos sombrios do conflito, muitos dos costumes, dialetos, idioma, músicas e danças se perderam. Para além do constrangimento dos imigrantes de serem provenientes de uma nação inimiga, o governo brasileiro chegou ao extremo de proibir o idioma italiano e seus dialetos, lançando milhares de imigrantes pouco afeiçoados ao português (principalmente os mais velhos de cada família) no mais ensurdecedor dos silêncios. Os trabalhos nos parreirais, desde sempre embalados por cantigas originárias da pátria mãe, passaram a ter como única companhia a fadiga e o constrangimento.

      Antônio, quando pensei em transformar este conto em um romance, não imaginei dar a ele uma extensão tão grande quanto a que você sugeriu, mas reconheço já estar afeiçoada por essa sua ideia, relatando o início de vida da família na Itália e as razões para imigrar, apresentando os anos das primeiras ocupações e conflitos agrários com indígenas, as décadas de contínuo trabalho e acumulo material, passando pelo período tenebroso da Segunda Guerra até chegar ao presente com seu processo de esvaziamento do campo e encontro de novas formas de trabalhar. Se eu seguir por esse caminho, vou lembrar de seu nome nos Agradecimentos!

      Que bom que gostou do trabalho que fiz na construção de personagens, imprimindo a cada um seu próprio traço de personalidade. Giovana é herdeira de seu pai no trabalho junto à terra que os alimenta e os forma; eles são similares no esmero que depositam à cada etapa da produção [do vinho, da arte, da terra, da vida], na privação de sono a que se submetem, na degustação infinita a que se entregam; e também na personalidade calada, reservada e contemplativa. A mãe é uma típica italiana: comanda a casa com ímpeto e vigor; anda e fala rápido, preenchendo todos os espaços; cozinha como ninguém. Luíza, a irmã enfermeira, saiu à mãe: impetuosa, enfrenta o próprio pai na defesa de Giovana. Ritinha, a segunda mais nova, amante dos livros, é parcimoniosa: para evitar conflitos, prefere Licenciatura a Bacharelado, seguindo com a cara metida nos livros apenas nas horas vagas. Os professores da banca de doutorado são vaidosos, impedindo que os entrevistados possam livremente se manifestar durante o processo de seleção. O pai é um homem do campo; concentrado, silencioso, disciplinado; só perde o controle ao final do conto, quando está levemente alto, ainda assim, apenas para defesa de suas uvas, seu vinho, sua terra, sua arte, sua herança e seu nome.

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

      • antoniosbatista
        31 de maio de 2021

        Acho que para um romance assim, que atravessa gerações, o ideal é acrescentar um mistério que não foi resolvido lá na Itália na chegado ao Brasil, um objeto de arte, ou uma fotografia, um tesouro enterrado, por exemplo, um mistério que seria desvendado por um dos descendentes atualmente. Acho que algo do tipo seria o mote do romance, a espinha dorsal da história. Algo que prenda o leitor do começo ao fim.

  17. Mauricio Piza (@mtplopes)
    28 de maio de 2021

    Conto delicioso, muito agradável de ler. A única coisa que me incomoda, é que acho a guinada um pouco inexplicável. Entendo a volta para as raízes e até a volta para aquilo que a encantava nas paisagens que pintava, com o abandono da vida acadêmica, que afinal de contas não foi o que a motivou para começar; tanto que foi para bacharelado e não para licenciatura. Mas fica difícil de entender o total abandono da arte no final, como uma página virada e pronto. A não ser que os quadros distribuídos nas paredes e dados de presente nos Natais sejam os que ela foi fazendo depois. Mas isso efetivamente não está dito na história. Fica uma sensação de algo não resolvido na premissa toda da história. A arte vira só uma coisa que a afastou de sua verdadeira vocação que era cuidar da fazenda. Difícil de acreditar. Parece substituição de uma vida não vivida por outra vida não vivida. O conto tem cara de autobiográfico, mas independente disso, o personagem enquanto personagem de um conto deixa a sensação algo não declarado e não resolvido.

    • Videira
      28 de maio de 2021

      Olá, Maurício! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Maurício, não sei se conseguiria pensar numa maneira de me deixar mais feliz do que ler que meu conto seria “delicioso, muito agradável de ler”. Há coisa melhor que uma escritora possa ouvir? Se há, desconheço. Queria mesmo que este meu textinho fosse “agradável de ler”. Há estratégias para isso, sabia? Primeiro, coloque os personagens em movimento: o primeiro parágrafo é curto, logo seguido de uma fala, um diálogo. Depois, mantenha os personagens em movimento: crie uma história, um enredo, e faça seu leitor se interessar por ele. Siga firme nessa trilha. Alterne parágrafos curtos com diálogos curtos. Não escreva texto, escreva música. Tudo tem de se encaixar, tudo tem de estar ligado. Não deixe pontas soltas. Uma ação justifica outra. Não descreva ambientes e paisagens. A vinícola não pode ser verde, extensa, antiga, tradicional, nada disso. Ela tem que ser o que ela é: uma plantação de uvas. Seu leitor pode imaginar quase tudo sem sua ajuda. Não escreva frases longas, mas também não escreva frases curtas: alterne-as. Ah, diálogos têm de ser enxutos. As falas têm de ser enxutas. O final tem de ser recompensador. Não precisa de reviravoltas desconcertantes, mas precisa deixar no leitor uma sensação boa, positiva. Seu leitor merece ser recompensado por ter chegado ao final de sua extensa trama.

      Maurício, gosto de deixar algumas coisas abertas. Isso faz parte do diálogo que gosto de estabelecer com meu leitor. Uma obra de arte revela sua competência ao não se esgotar em si mesma, ao manter com o público um permanente e inesgotável diálogo. Agora, é claro que às vezes isso me coloca em armadilhas. Outras vezes, eu simplesmente erro, exagero, deixo a coisa não só aberta, mas também incompleta. Enfim, esse imbróglio todo é para dizer que achei que tivesse deixado claro que a protagonista nunca deixo a pintura, mas, pensando bem, lendo e relendo esse seu comentário, de fato seria também possível extrair do texto o significado de que ela abandonou a arte. Explico meu ponto sem abrir mão do seu: se telas eram embaladas e distribuídas todos os anos, elas continuavam a ser produzidas, caso contrário, uma hora se esgotariam. E não é só isso: a protagonista passou a ilustrar as garrafas de vinho comerciadas pela família (“No rótulo que as garrafas levariam, estariam estampados alguns de meus trabalhos mais recentes”). Esses trabalhos recentes nada mais são do que a continuidade de sua produção artística. De toda sorte, compreendi o seu ponto. E até concordo com ele. Na próxima revisão, irei explicitar que a protagonista continuou produzindo sua própria arte, assim como os rótulos para as garrafas, da mesma maneira como seu pai seguiu firme e forte na “arte da vinicultura”. O texto é sobre reencontro, sobre reconciliação. Não haveria reencontro e reconciliação se qualquer dos personagens fosse ou se sentisse privado de seus anseios e necessidades. Pai e filha são, agora, artistas juntos, na produção de vinho fino, na elaboração do rótulo e, também, quando a filha pinta e o pai distribui as telas entre familiares e amigos a cada Natal, não obstante suas mãos brutas. Por outro lado, o pai se envaidece pela possibilidade de deixar e divulgar pelo mundo seu nome, sua marca (“Desde sempre fascinado pelo cultivo da uva, ao longo de sua vida entregue ao refino da cooperativa, papai se encantou pela possibilidade de imprimir seu nome ao rótulo do seu próprio vinho.”), da mesma maneira que um artista se envaidece por ver seu nome no seu próprio trabalho ganhando vida e sabores pelo mundo, agradando a uns paladares um pouco mais, a outros um pouco menos, mas sem nunca perder a consciência que que ofereceu ao público “uva fina”, de paladar delicado, fruto do melhor de seu trabalho, esforço e noites mal dormidas. Pai e filha passam a comungar a mesma obra de arte: são as garrafas contendo o vinho produzido pelo pai e os rótulos elaborados pela filha. É uma outra arte: a do encontro. Obrigado pelo apontamento! Irá contribuir para melhorar este meu trabalho!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  18. Anderson Prado
    27 de maio de 2021

    Olá! Tudo bem?

    Seguindo os passos da melhor revisora de todos os tempos, a dileta Claudia Roberta Angst, farei considerações sobre seu conto na forma de A-R-T-E:

    A = A arte em si = A arte aparece com sucesso no conto: a protagonista é uma pintora.

    R = Razões para ODIAR o conto (porque sou desses) = A protagonista começa com uma idade e termina com outra: ficou empolado. E o conto é melhor do que o meu.

    T = Trabalho de escrita/narrativa = A escrita é excelente.

    E = Então, autor[a] = Os parágrafos curtos e intercalados por diálogos torna a leitura fluida, leve, agradável. O conto trata temas relevantes: conflito entre gerações, história da imigração italiana etc.

    Parabéns pela participação e boa sorte no desafio!

    • Videira
      28 de maio de 2021

      Olá, Anderson! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Anderson, muito obrigada por ter adjetivado minha escrita como excelente! Bem, esforcei-me para acertar. E fico feliz por ter conseguido passar por seu crivo.

      “Os parágrafos curtos e intercalados por diálogos” são propositais. Assim, também aqui o seu comentário me felicita. Um dos principais focos de minha atenção é tornar o texto agradável ao leitor. Nas poucas vezes em que me dediquei a outros fins, acabei me arrependendo. Gosto de ser lida. E gosto que sintam prazer, e não enfado, ao me lerem. Admiro quem foca em outros fins (subverter os cânones da arte, elaborar pensamentos e enredos complexos, inovar em estrutura textual ou narrativa, promover ataques políticos etc.), mas o que eu gosto mesmo é de ser lida. E lida com prazer, não com enfado. Genialidade demais é bom, mas cansa. Os leitores mais importantes e valorosos que possuo (meus pais) gostam de histórias simples. Acho que este meu conto entrega o quão importante meus pais são pra mim.

      Anderson, não me ficou claro se suas “razões para odiar” são verdadeiras ou só uma brincadeira (já que você parece “ser desses”). Mas, de fato, a protagonista começa com dezessete anos (“Meu destino aos dezessete anos? O Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.”) e, na cena da entrevista do doutorado, ela já está com vinte e oito anos (“De repente, estava com vinte e oito anos e diante dos membros da banca de seleção para o curso de doutorado.”). Eu diria mais: na cena final do conto, embora a idade não seja mencionada, a protagonista já estava um pouquinho mais velha (já que havia voltado à fazenda e, até, implementado melhorias na propriedade, agora não mais apenas cultivadora de uvas, mas também produtora de vinhos). Achei que havia me desincumbido bem da tarefa de viajar do tempo, indo da adolescência para a infância e da infância para a vida adulta, mas, se você considerou “empolado”, empolado está! Prometo que, quando transformar este conto em um romance, trabalharei melhor as diferentes fazes da vida da protagonista, incluindo os anos de inadequação que passou em Porto Alegre e na universidade. Por enquanto, fiz o melhor que pude com três mil palavras. De toda sorte, obrigado pelo apontamento!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

  19. Luciana Merley
    26 de maio de 2021

    Bento Gonçalves

    O que achei? Achei uma abordagem preciosa da Arte enquanto busca por Beleza e significado.

    Coesão – Alguns sentimentos brotam na leitura do seu texto: a nostalgia, a maravilhosa herança cultural Italiana, o cuidado familiar, o amor à terra, a busca pelo abstrato nas coisas cotidianas, pela beleza… Uma mistura de sentimentos, mas que não levam o texto para outras bandas, ao contrário, o mantém firme numa estrada de palavras, lembranças e afetos muito bem conduzidos.
    A parte da banca de doutorado pareceu-me um pouco inconsistente, tendo em vista que um candidato já teria obrigatoriamente um mestrado e não pareceria tão fora de lugar (apesar de que a maioria das bancas tem mesmo muito professor vaidoso e petulante).

    Ritmo – É suave. acompanhando o sentimentos anteriormente descritos. Do tipo que eu poderia ler por um dia inteiro.

    Impacto – Fiquei encantada. E, não por coincidência, encantamento é o que sentimos diante de uma verdadeira obra de arte, não é mesmo? Seu texto trouxe uma definição de arte há muito perdida, que é exatamente a expressão do ser, o encontro consigo mesmo, a beleza, não somente como estética, mas como um valor inteiro, em si mesmo.
    A relação com o pai me encantou especialmente. A dor desconcertante pela partida da filha, e que ele tentava disfarçar, foi um trecho muitíssimo bem escrito, com figuras e diálogos exatos que conduziram-me a muitas das minhas partidas.

    Maravilhoso. Parabéns.

    • Videira
      28 de maio de 2021

      Olá, Luciana! Tudo bem?

      Muito obrigada por sua leitura e comentário!

      Luciana, preciosa é a sua leitura! Mil vezes obrigada! Fiquei felicíssima por você ter encontrado no meu texto “uma abordagem preciosa da Arte enquanto busca por Beleza e significado” e, mais, por ter encontrado nele “a beleza, não somente como estética”, já que uma de minhas principais preocupações enquanto escritora e como autora deste texto em específico é ser/ter sido conservadora demais. Sim, porque foi como me vi aqui: conservadora. É um conto com um enredo linear e tradicional. Ele possui início, meio e fim. A linguagem, apesar de poética e lírica em alguns momentos, tem seu principal foco na transmissão de uma história, de um enredo, de fatos e eventos, e na construção de personagens. Os significados e sentidos estão no texto, mas entregues à confiança do leitor, à sua inteligência. Leitores pouco versados encontrarão um enredo aprazível e uma leitura agradável. Leitores versados como você encontrarão “beleza e significado”, encontrarão “a busca pelo abstrato nas coisas cotidianas”; irão se debruçar sobre os muitos significados ocultos contidos no conto; irão aprender e se maravilhar com um pouco da história da imigração italiana, especialmente no Sul do país, dentre tantos apontamentos e conclusões que seria possível extrair do texto.

      Peço desculpa pelo deslize na cena da banca de doutorado. Eu não havia percebido. Até acho que seria possível ler sem considerar um erro, mas, depois que você lançou luzes sobre o ponto, confesso que não consigo mais ler sem enxergar o erro. De fato, em determinado momento digo que a protagonista havia concluído o mestrado (“Na mesma universidade, havia me graduado em Artes Visuais e cursado o mestrado.”) e, em outro momento, digo que ainda seria aluna (“Ela é nossa aluna do curso de mestrado.”). Assim, irei corrigir o texto para colocar a fala do professor no passado, deixando claro que o curso de mestrado teria sido terminado e que, portanto, ela é uma candidata apta para o doutorado. (Em tese, existe a possibilidade de cursar o doutorado sem ter concluído ou, mesmo, sequer cursado o mestrado, mas, como isso não é usual, prefiro afastar a dúvida, colocando a fala do professor no tempo passado.). Obrigada pelo apontamento!

      Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
      Abraço!
      Videira.

      • Luciana Merley
        1 de junho de 2021

        Eu é que peço desculpas por essa chatura imensa no apontamento. Mas é que, num texto tão bem conduzido, qualquer estranheza rouba a cena para si. E essa estranheza, como você bem apontou, é de facílima correção. Quanto ao estilo, meu sonho é conseguir construir textos com começo, meio e fim nesse nível. Assim como para a música, a pintura, a arquitetura…quanto mais tradicional (para mim) mais com arte se parece. Um abraço.

      • Luciana Merley
        1 de junho de 2021

        Em tempo…você não foi “conservadora demais”. Você acertou em cheio em descrever a arte enquanto caminho para um significado maior. O conceito Conservador de arte é exatamente a busca pela Beleza enquanto Valor.

  20. thiagocastrosouza
    26 de maio de 2021

    Resumo: Giovana deixa Bento Gonçalves para estudar Artes Visuais em Porto Alegre. Deslocada após uma década de estudos, decide se reencontrar na cidade de origem.

    Comentário:

    O que dizer? Conto pé no chão, com elementos biográficos, de ascensão, queda e reconciliação, mas longe de grandes tragédias ou traumas. O primeiro arco está na saída da cidade natal e a formação acadêmica bem sucedida, o segundo no desmembrar do relacionamento e o terceiro no retorno. Gostei porque o conto fez um caminho suave, nostálgico e contemplativo por esses três arcos. O tema do desafio está inserido na forma como a protagonista enxerga o mundo, atuando nas brechas, seja como pintora ou como empreendedora (podemos chamar assim?), quando retorna a Bento Gonçalves. Apesar de leve, há profundidade nas reflexões de Giovanna, o passado italiano, a percepção como fruto de uma gente que veio com muitas dificuldades para cá, fazer a vida, e os frutos recolhidos, os preconceitos, o distanciamento e apego com o passado. Gostei porque coloca o artista como consequência da própria experiência, e a arte como uma força de expressão desta; Giovanna pinta os trabalhadores, os parreirais, a infância, sai de casa formada por esse universo e retorna para ele, transformando-o e transformando-se em mútua relação.

    Vou até ser um pouquinho pedante aqui, mas o conto dialoga com a percepção que tenho de cultura e, consequentemente, de arte: cultura é toda a natureza transformada pelo homem e que, dialeticamente, o transforma. Essa transformação se dá através do trabalho, e não à toa a palavra cultura está ligada ao “colo”, de colonizar, de cultivar a terra, de se estabelecer nela e retirar dela o alimento, a subsistência. Também remete ao cultivo dos mortos, os antepassados que nos ensinaram a trabalhar e sobreviver nessa mesma terra que um dia nos consumira.

    Enfim, fui longe aqui. Mas quanto mais penso no seu texto, mais acho ele carregado de significados submersos em um enredo simples, mas bastante honesto e pessoal. Ando sensível com assuntos de família, imigração e genealogia.

    Parabéns e boa sorte!

    • thiagocastrosouza
      26 de maio de 2021

      Culto aos mortos, quis dizer. 😉

      • Videira
        28 de maio de 2021

        Olá, Thiago! Tudo bem?

        Muito obrigada por sua leitura e comentário!

        (Desnecessário dizer que fiquei encantada com o comentário! Você é um excelente leitor e comentador!)

        Fiquei contente que você tenha achado meu texto “carregado de significados submersos em um enredo simples”. Na minha opinião, uma verdadeira obra de arte não se esgota em si mesma. Ela é construída através de uma permanente interlocução entre artista e público. Tento trazer isso para meus textos. E às vezes sou bem-sucedida.

        Não gosto de explicitar sentimentos. Por exemplo, na cena inicial, em momento algum digo o que assolava o pai. Porém, narrei suas ações e entreguei ao leitor a tarefa de extrair significados. Ele estava feliz, triste, orgulhoso, decepcionado, ressentido, desconfortável?

        A estratégia de não entregar todas as respostas segue pelo texto.

        Na cena da dissolução do relacionamento (a qual temi fazer soar abrupta), procurei inserir elementos que demonstrassem que o casal não vinha bem há tempos (“em um relacionamento repleto de idas e vindas”): o desinteresse com os assuntos do outro – coisa que costuma ocorrer em relacionamentos longos (“Marcelo não parecia interessado na conversa. Em seu canto, tentava dormir.”); o desapego da protagonista com os bens do apartamento (“Ao arrumar as malas nas semanas seguintes, percebi que não havia muito com que verdadeiramente me importasse no apartamento.”). Mas, ao mesmo tempo, ainda restou um carinho entre eles (ela deixa um quadro; e ele aceita). É uma despedida triste, porém necessária (não para possibilitar o desenvolvimento do enredo, mas em decorrência da própria história do casal).

        Falo das rodoviárias e seus cheiros de partida (esses ambientes têm sempre cheiros ruins – de fumaça, de combustível queimado, de borracha, de gente mal banhada e mal dormida, de perfumes misturados, de tecido velho). É o cheiro de partida, porque o cheiro de chegada é outro.

        A cena da rosa é uma de minhas preferidas. O emprego delas na vinicultura é real. Elas sempre são plantadas por perto das parreiras. Como as rosas são frágeis, morrem primeiro quando fungos atacam, indicando aos vinicultores que precisam reforçar os cuidados com as uvas. Mas é o diálogo final nessa cena que me comove. A filha declara “É um fim bem triste [para as rosas].” E o pai, homem velho de “pele curtida e salpicada de pintas pretas”, atalha “É um fim útil. Não pode haver melhor.” É uma declaração de princípios. É o homem vencendo a morte, a decrepitude, a doença e a solidão, tudo através do trabalho, no fim útil. Há um outro sentido oculto nessa cena e nesse diálogo: observou que, ao fim do texto, a arte encontra um “fim útil”? Ela passa a estampar os rótulos das garrafas. Há ainda um último sentido: observou que a própria artista passa a conciliar sua arte com seu trabalho na fazenda? É um outro fim “útil”. Mas não pense que ilustrar as paredes ou ser distribuída entre familiares e amigos também não seja um fim útil! Ou, mesmo, dar vazão a anseios e angustias (ainda que seja apenas um anseio por beleza e significado) também não seja útil!

        Pai e filha começam a tentar algum entendimento. Ele quer perguntar se ela voltou para ficar, mas lhe falta coragem. Então ele pergunta sobre a vinda dela para a festa da uva: “Tu virá também pra Festa da Uva? ─ perguntou uma coisa por outra.” Ela responde o que ele verdadeiramente quer saber: “Eu vou ficar, pai ─ anunciei.” Mas, ele, incrédulo, talvez comovido, parece não querer entender, ou querer reforçar o entendimento: “Pra festa? ─ ele perguntou antes de ser interrompido por mamãe à porta da casa”. Esse começo de entendimento está no texto, mas não é dito expressamente (também não consta expressamente a falta de coragem do pai, nem sua incredulidade ou eventual comoção).

        Mas o pai quer e aceita a presença da filha. Ele não quer desagradá-la, ofende-la. Ao mesmo tempo, ele é um homem do campo. Discreto, poucas palavras (é apenas quando está bêbedo que ele se permite algum rompante e, aí, já estamos na cena final do conto). Ele não pergunta sobre Marcelo, não pergunta sobre a universidade, e se irrita com a tagarelice da esposa.

        A família possui um passado de trabalhadores imigrantes. Foi com muito esforço que atingiram o conforto material. Têm tudo o que precisam para viver bem. Pela primeira vez, a preocupação dos filhos não precisa ser com fazer dinheiro imediato. Mas o pai não percebe com facilidade essa nova realidade. A herança imigrante e trabalhadora lhe oprime e angustia. Ele quer que as filhas façam renda. Daí seu desespero quando as percebe enveredando pela arte, essa quase que sua completa desconhecida. Para ele, ao menos no início do enredo, arte se contrapõe a trabalho. Apenas aos poucos ocorre a guinada. De repente, para além de produtor de uvas, ele se torna um meticuloso “artista”, debruçando-se sobre minúcias da produção do vinho. Ao mesmo tempo, sua filha artista diletante (no início) e lúdica (mais adiante), faz o caminho oposto e, ao final, ao menos parcialmente, dá fim comercial ao seu ofício artístico ilustrando os rótulos das garrafas. É um encontro. Uma conciliação. Não só entre pai e filha, mas também entre o lúdico e o comercial.

        Aliás, promover encontros é um de meus fortes. Gosto deles. Outro “significado submerso” do texto reside na conciliação de “classes”. Percebeu? Em um país dividido como o nosso, em que as figuras “patrão” e “empregado”, “branco” e “preto” são sempre postas em posição de conflito, trouxe para o texto um patrão que também é operário (“Papai, e todos nós, éramos, ao mesmo tempo, senhores de terra e operários.”). Aqui, patrão não é vilão (porque eles nem sempre são). Também joguei luzes sobre a origem da pele branca e dos olhos claros da família (“Essa era a verdadeira origem de nossa pele branca e olhos claros.”). Foi uma tentativa de conciliação. Vã, possivelmente. Mas uma tentativa. Entendo o conflito, suas razões de ser, mas não me entrego a ele.

        Thiago, exagerei aqui, né? Bom demais dialogar com sua inteligência, menino! Mais uma vez, obrigada pela leitura e pelo maravilhoso comentário! Sei que você percebeu todas as “matizes e nuances” que trouxe nesta resposta, mas foi sua delicadeza de declarar que meu texto está “carregado de significados submersos em um enredo simples” que me incentivou a conversar sobre este ponto com você.

        Sucesso no desafio, no EntreContos e na sua carreira!
        Abraço!
        Videira.

      • thiagocastrosouza
        28 de maio de 2021

        Videira, acho muito difícil um autor falar de todas as camadas que seu próprio texto carrega, mas você o fez muito bem!

        Adorei o diálogo e aprendi com ele também. Sou fissurado em processos criativos e sua resposta foi um deleite sobre os caminhos que percorreu para fazer o texto. As vezes, percebo um movimento semelhante no meu processo de escrita; há pesquisa, há estudo, há aprofundamento em determinadas questões, mas tudo isso acaba se diluindo na narrativa, nos gestos dos personagens, nos diálogos e enredo, de modo que um conto, aparentemente simples, revela-se como cheio de substância, pois o autor ou autora está tão tomado pelos temas que o fez escrever, tão mergulhado que, talvez até de maneira inconsciente, todo esse universo aparece de maneira orgânica em poucas linhas.

        Depois, tudo faz sentido.

        Tenho um chute de autoria para esse conto e, terminando o desafio, voltaremos a conversar. Caso seja estreante por aqui, o convite para a conversa se mantém.

        Grande abraço!

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Publicado às 24 de maio de 2021 por em Artes e marcado .
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